quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

SERMÃO SOBRE O AMOR (II)

PARTE II

Mas agora, meus irmãos, voltemo-nos para uma outra categoria dos santos. Tenho falado daqueles, que, de um modo admirável e algumas vezes miraculoso, foram defendidos do pecado e conduzidos de degrau em degrau, graça após graça, desde a juventude até a morte; mas agora suponhamos que Deus quis derramar a luz e o poder do Seu Espírito sobre aqueles que mal empregaram o seu auxílio, e que em si deixaram secar a graça que lhes fora dada, ficando por isso à mercê de uma multidão de demônios de que tiveram que libertar-se; que vivem sob o jugo de hábitos obstinados, de paixões complacentes e de falsas opiniões; que serviram satanás, não como crianças antes do batismo, mas segundo o seu querer e a sua razão, com as suas faculdades inteiramente responsáveis, de corações lúcidos e vivos. 

Reconduziria o Senhor estas almas a si, independentemente delas ou mediante o seu querer? Transformá-los-á com o seu Verbo que os formou e os fará morrer ou os ressuscitará e entrará nas suas almas, e se dirigirá a elas para as persuadir e para as ganhar? Sem dúvida que poderia compeli-las, constrangê-las, uma vez que é o Senhor absoluto. Poderia por uma santa violência forçar a sua entrada e neles modelar depois a estatura da santidade; poderia substituir qualquer processo de conversão e fazer nascer das pedras filhos de Abraão. 

Mas o Senhor quis que as coisas fossem de outro modo; senão por que se teria Ele próprio manifestado sobre a terra? Por que se cercou, quando da sua vinda, de tantos sinais sensíveis, persuasivos e irrecusáveis? Por que mandou os seus Anjos anunciar que Ele seria encontrado como um menino em uma manjedoura, ao peito de uma Virgem, em Belém? Por que andou espalhando o bem por toda a parte por onde passava? Por que morreu em público, à face do mundo, com sua Mãe junto de si, e o discípulo amado? Por que nos diz agora que é glorificado nos céus com uma multidão de santos que são os nossos intercessores junto do seu trono? 

Por que veio até nós mediante a maternidade de uma Virgem, a mais perfeita imagem depois de si, de tudo o que tem o sabor da beleza, da ternura, da delicadeza e da serenidade no mundo dos homens? Por que se manifesta, por uma muito misteriosa e inefável condescendência sobre os nossos altares, fazendo-se pequenino e humilde. Ele, que é o Senhor dos Céus e da Terra? O que mostra tudo isto senão que, quando as almas se afastam, Ele as resgata por meio delas próprias, 'por cordas humanas', segundo a nossa natureza, como diz o profeta, conquistando-nos de fato segundo à sua Vontade, salvando-nos a despeito de nós mesmos - e, ainda assim, por nós mesmos, de modo que as razões e afeições do Velho Adão, que propiciaram 'os instrumentos da iniquidade para pecar', haveriam de se tornar, sob o poder de sua graça, em 'instrumentos da justiça de Deus'?

Sim, meus irmãos, sem dúvida Ele nos puxa a si 'por cordas humanas' e o que são estas cordas senão, como diz o profeta no mesmo versículo, 'os enleios' ou 'os fios do amor'? É a manifestação da glória de Deus na face de Jesus Cristo; é a visão dos atributos e das glórias e das perfeições do Senhor onipotente; é o esplendor da sua santidade, a doçura da sua misericórdia, a claridade do seu Reino, a majestade da sua lei, a harmonia da sua Providência, a música mágica da sua voz, dEle que é antagônico da carne e o campeão da alma contra o demônio e o mundo. 

Tu me seduziste, Senhor, diz o profeta, e eu fui seduzido; Tu és mais forte do que eu, e a tua força prevaleceu; 'lançaste a tua rede com perícia e os seus fios sutis estão enredados em torno de cada afeto do coração, e as suas malhas manifestaram o poder de Deus, fazendo cativa a inteligência para o serviço de Cristo'. Se o mundo tem os seus fascínios, mais os tem o Altar de Deus vivo; se as pompas e as vaidades do mundo encadeiam os olhos, bem maior espanto há de trazer a visão dos anjos subindo e descendo pela escada erguida entre o céu e a terra; se a vista do mundo embriaga, e os seus encantos enfeitiçam a alma, eis que Maria intercede por nós, e com os seus olhos castos oferece o Filho Eterno à nossa humana ternura, enquanto os cânticos dos querubins se elevam em todas as direções exaltando a graça que nEle acham. 

Será que a esperança de Deus é sem emoção, será que a caridade de Deus é insensível e sem êxtase? 'Como são amáveis os teus tabernáculos, Senhor dos Exércitos', diz o profeta; 'a minha alma se regozija e desvanece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne se alegram no Deus vivo. Um só dia nos teus átrios melhor é que mil; prefiro ser objeto na casa do meu Deus do que morar nas tendas dos pecadores'. Assim é, como disse o grande penitente e doutor da Igreja, Santo Agostinho: 'Não basta ser conduzido pela vontade, mas também levado pelo sentido da alegria. O que é que significa ser conduzido assim pelo prazer? Alegra-te na presença do Senhor, Ele te dará o que o teu coração lhe pedi'. 

Há um certo prazer do coração para o qual doce é o pão dos céus. Além disso, se o poeta disse: 'Todos somos levados pelo nosso prazer', não por necessidade, mas por prazer, não por dever, mas por deleite; quão mais ousado seria dizer que o homem é levado a Cristo, quando a verdade o delicia e se alegra na perfeição, e se deleita com a justiça e se regozija com a vida eterna, sendo que tudo isso é Cristo? Será que os sentidos são suscetíveis de prazer e a inteligência não? Se assim é, donde vem dizer-se: 'Os filhos do homem viverão na esperança ao abrigo das suas asas; eles se embriagarão com a riqueza da tua casa, e das fontes da tua alegria lhes matarás a sede; porque em ti está a felicidade da vida, e na tua luz veremos a luz'? 

'Aquele que o Pai chamou, venha até mim'. E a quem chamou o Pai? Aquele que disse: 'Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo'. Estende-se à ovelha um ramo verde e ela vem. O menino apressa-se à vista da fruta que lhe oferecemos; é chamado aquele que come, aquele que corre ao chamamento do amor vem sem que o seu corpo se doa, trazido pelo impulso do seu coração. Se então é verdade que a contemplação das delícias do mundo atraem aquele que ama, será que Cristo nos não seduz a nós quando revelado pelo Pai? Que mais do que a verdade atrai o espírito do homem? A alma anseia por descansar à sombra da sua paz.

Estes são os meios de que Deus se serve para fazer um santo de um pecador. Toma-o tal qual é, usa-o contra si próprio. Canaliza as suas afeições e purifica o amor carnal, inspirando-lhe a caridade sobrenatural. Não como se se tratasse de uma simples criatura irracional, compelido por instintos e condicionada por estímulos externos, sem vontade própria, e para quem um prazer é igual a qualquer outro, da mesma espécie, só que de intensidade diferente. Já afirmei que faz parte do glorioso plano da sua graça que ele venha ao coração do homem e o persuada e nele prevaleça, ao mesmo tempo que nele opera um nascimento de novo. 

Não despreza em nada a natureza original a que o ordenou; trata-o como homem e deixa-lhe o poder de agir de uma ou de outra maneira. Apela para todos os seus poderes e faculdades, para a sua razão, para a sua prudência, para a sua consciência moral. Acorda o seu temor e desperta a sua ânsia de amar. Esclarece-o sobre a perversidade do pecado, ao mesmo tempo que sobre a misericórdia de Deus; mas ainda e em resumo, o princípio animador da nova vida, que o ilumina e o sustém, é o fogo da caridade. Só ela é suficientemente forte para destruir o homem velho, para dissolver a tirania dos hábitos, para consumir a malícia da concupiscência e para queimar as sólidas raízes do orgulho.

E, desta maneira, o amor surge-nos como a graça que distingue aqueles que eram pecadores antes de serem santos; não que o amor não seja a vida de todos os santos, daqueles que nunca precisaram de converter-se, como a Santíssima Virgem, São João Batista ou o Apóstolo São João e de todos aqueles, muitos, que são as primícias de Deus e do Cordeiro; porém, enquanto que naqueles, que nunca pecaram, esse amor é contemplativo ao ponto de se identificar com a santidade do próprio Deus, naqueles em quem Ele se estabelece como princípio da convalescença e de recuperação, vem com tal força e potencial de devoção de entrega, de disponibilidade, de cuidado e de zelo, de atividade e de boas obras, que chega para conferir um caráter visível às suas vidas, e permanece aos nossos olhos associado à ideia que deles fazemos.

Era assim o Grande Apóstolo, sobre o qual a Igreja está construída, e que eu coloquei no princípio em contraste com o seu companheiro São João; se o contemplarmos depois da sua primeira chamada, ou durante o seu arrependimento, ele, que entre todos os Apóstolos foi que negou o Senhor, veremos que é o que mais se distingue pelo seu amor por Ele. Foi por este amor de Cristo, que fluía da sua impetuosidade e exuberância para o amor dos irmãos, que ele foi escolhido para ser o principal pastor do rebanho. 'Simão, filho de João, amas-me mais do que os outros?' A prova foi-lhe feita pelo Senhor; e a recompensa foi: 'apascenta as minhas ovelhas'. E é maravilhoso que o Apóstolo que Jesus amava tenha sido assim ultrapassado no seu amor a Jesus por um irmão que não era virgem como ele; porque não foi a João que Jesus fez esta pergunta nem foi ele quem assim respondeu, mas Pedro.

Reparemos numa passagem anterior da mesma narrativa; aí também os dois Apóstolos aparecem do mesmo modo contrastados nos seus caracteres. Assim, quando estavam no barco e o Senhor lhes falou da praia, e 'eles não sabiam que era Jesus', primeiro, 'o discípulo que Jesus amava disse a Pedro: é o Senhor'; e logo 'Simão Pedro cingiu a sua túnica e lançou-se ao mar' para chegar mais depressa ao pé de Jesus. São João contempla e São Pedro age.

Portanto, à vista de Jesus, o coração de Pedro ilumina-se e logo se lança após Ele; assim também, uma vez, quando viu o seu Senhor caminhando sobre as águas, o seu primeiro impulso foi, como mais tarde, saltar do barco e precipitar-se ao seu encontro: 'Senhor, se és tu, manda-me ir ter contigo sobre as águas'. E quando caiu no seu grande pecado, foi o próprio olhar de Jesus que o fez vir a si: 'E o Senhor voltou-se e olhou para Pedro; e Pedro lembrou-se da Palavra do Senhor e, saindo, chorou amargamente'. Por isso, noutra ocasião, quando muitos dos discípulos abandonaram o Senhor, e Jesus perguntou aos doze: 'Também quereis ir?', São Pedro respondeu: 'Senhor para quem haveríamos de ir? Só tu tens as palavras da vida eterna e nós acreditamos e sabemos que Tu és o Cristo, o Filho de Deus'.

Assim também era aquele outro Grande Apóstolo, que, de muitas maneiras, costuma ser associado a São Pedro, o Doutor dos Gentios. Quando do milagre da sua conversão, o Senhor lhe apareceu na estrada de Damasco para onde ele se dirigia com a intenção de condenar à morte os cristãos — que nos diz ele? 'Se somos loucos, é para Deus que somos; se somos sensatos é para vós; porque o amor de Cristo nos compele. Assim, que se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo'. E ainda: 'Estou crucificado com Cristo, já não sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim; e ainda que na carne, vivo pela fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim'. E ainda: 'Sou o último dos Apóstolos, porque persegui a Igreja de Deus. Mas pela sua graça sou o que sou; e ela não foi vã em mim, antes trabalhei mais abundantemente do que eles, não eu, contudo, mas a graça de Deus comigo'. E ainda, em outra passagem: 'Se vivemos, no Senhor vivemos; se morremos é no Senhor que morremos; quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor'. 

Vemos, meus irmãos, o caráter do Amor de São Paulo; um amor fervoroso, ávido, enérgico, dinâmico, cheio de grandes obras, 'forte como a morte' como diz o Rei Sábio, uma chama que 'muitas águas não podiam esconder, nem os regatos afogar', que permaneceu fiel até ao fim, quando pôde dizer: 'Combati o bom combate, cheguei ao fim da corrida, guardei a fé; daqui em diante me está reservada a coroa da justiça que o Senhor me dará naquele dia, o Justo Juiz'.

(Excertos da obra 'Purity and Love', do Cardeal Newman)