terça-feira, 3 de maio de 2016

A HERANÇA DA GRAÇA

Quando nos incorporamos no Filho, uma perfeita intimidade com Ele é o legítimo objeto da nossa esperança, a finalidade dos nossos desejos e dos nossos esforços. Ele cresce em nós e dilata o nosso ser, de maneira a tornar-nos cada dia com mais capacidade para o divino. O homem renovado pela graça tira todas as suas faculdades das riquezas abundantíssimas do Verbo, enquanto se despoja de si próprio para se revestir da santidade de Cristo. A incorporação inunda-nos de dons sempre novos: a força do Espírito Santo, o poder divinizante da graça, a glória de que esta vida de união está já secretamente cheia: 'Vós, pois, como escolhidos de Deus, santos e amados, revesti-vos de entranhas de misericórdia, de benignidade, de humildade, de modéstia e de paciência' (Col 3,12) e 'Embora se destrua em nós o homem exterior, todavia o interior vai-se renovando de dia para dia' (II Cor 4,16).

A fusão da alma com Cristo opera-se no próprio fundo do ser e no princípio do tempo: os símbolos tirados da união de substâncias criadas não pedem traduzir esta unidade incomparável e sempre nova forjada pelo amor: 'Para que sejam todos um, como tu, Pai, o és em mim, e eu em ti, para que também eles sejam um em nós' (Jo 17,21). Deus não põe de parte o que começou; pelo contrário, não cessa nunca de o aperfeiçoar na alma: Ele quer que Cristo cresça em nós até à plena harmonia da idade adulta. O seu Espírito aproxima-se constantemente do Pai para nos unir mais intimamente a Ele: 'Porque todos aqueles que são conduzidos pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus. Porque vós não recebesses o espírito de escravidão para estardes novamente com temor, mas recebesses o espírito de adoção de filhos, mercê do qual chamamos, dizendo: Abba - Pai' (Rom 8,14-15).

À medida que o conhecimento de Deus cresce dentro de nós, torna-se mais viva a nossa fé no Pai. Quanto mais clara é para nós a evidência de que Deus é caridade, mais pronta fica a nossa alma para se perder nos abismos desse amor. Participamos do amor do Pai pelo Filho, e é com Cristo que repousamos no seio do Pai: 'Livrou-nos do poder das trevas e transferiu-nos para o reino do Filho do seu amor' (Col 1,13). Deste modo, a vida partilhada com Cristo introduz-nos na pátria da Sua eterna glória: 'Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci; e estes conheceram que tu me enviaste. Eu fiz-lhes e far-lhes-ei conhecer o teu nome, a fim de que o amor, com que me amaste, esteja neles, e eu neles' (Jo 17,25-26).

Todos os homens podem viver desta inebriante verdade se se deixarem libertar por ela, se, deixando de fazer das criaturas objeto do seu desejo, as atravessarem a correr como frágeis degraus, como meios inteiramente ordenados para a finalidade divina: 'Nós conhecemos e cremos na caridade que Deus tem por nós: Deus é caridade' (I Jo 4, 16).  Deus procura arrancar-nos cada vez mais a nós próprios, a fim de que já não vivamos para nós, mas d'Ele e para Ele. A minha vontade, o meu coração, o meu espírito foram substituídos pela vontade, pelo coração, pelo espírito de Cristo; eu e Ele somos um em espírito, e eu estou identificado com Ele pelo amor: é esta a experiência e a alegria dos santos: 'Já não vivo, é Jesus que vive em mim!' (Gal 2, 20).

Nada encoraja e fortifica o coração como esta verdade: 'Todas as coisas são vossas, o mundo, a vida, a morte, presente e futuro; tudo é vosso; mas vós sois de Cristo e Cristo de Deus' (I Cor 3,22-23). É esta, com efeito, a herança de Cristo, a obra que Ele realizou livremente morrendo por nós: 'Eis-vos purificados, santificados e justificados em nome de Jesus Cristo, pelo Espírito de Deus' (I Cor 6,11). Tudo devemos à graça e somos apenas o que ela permite que sejamos, mas podemos torná-la ineficaz com as nossas infidelidades. Velar pelo seu crescimento dentro de nós é o objeto digno do nosso esforço: 'O vosso trabalho não é vão no Senhor' (I Cor 15,58) e 'Vigiai, permanecei firmes na fé, sede viris e fortes' (I Cor 16,13).

As fraquezas terrestres hão-de pesar sempre sobre nós enquanto vivermos neste mundo. Os heróis e os gigantes da santidade suspiraram sempre sob a lei do pecado, que, como nós, nunca deixaram de sentir: 'Infeliz de mim! Quem me livrará deste corpo de morte?' (Rom 7,24). O remédio para a nossa fraqueza é o realismo da fé: um olhar franco sobre a nossa própria miséria e sobre as riquezas de Deus. Cristo operou em nós uma obra sublime - a infusão de uma outra vida.

A fé ilumina-nos com uma luz infinitamente mais brilhante que o dia, a caridade abre-nos um horizonte que a natureza não pode sequer suspeitar. O cristão é um homem novo e o ar que ele respira interiormente não é deste mundo; a sua existência foi recomeçada segundo um plano divino. Embora ele continue a arrastar o peso do corpo e das suas inclinações inferiores, revestiu-se já de outra Pessoa: 'Despojai-vos do homem velho com todas as suas obras, e revesti-vos do novo, daquele que renovando-se continuamente à imagem daquele que o criou, atinge o conhecimento perfeito. Nesta renovação não distingue entre o escravo e o homem livre, é Cristo que é tudo em todos' (Col 3,9-11) e 'O homem que está em Cristo é uma nova criatura; passaram as coisas velhas; eis que tudo se fez novo. E tudo isso vem de Deus' (II Cor 5,17).

O coração é novo, são novos o espírito e a vontade; sim, o homem é novo a partir do momento em que se abriu inteiramente para a graça. E aquilo que Deus lhe dá, a vida divina, não pode ser-lhe arrancado por nada que tenha sido criado, se ele o não consentir: 'Quem nos separa, pois, do amor de Cristo? A tribulação?  A angústia?  A fome?  A nudez?  O perigo?  A perseguição?  A espada? Mas de todas estas coisas saímos vencedores por aquele que nos amou. Porque eu estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a força, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo nosso Senhor' (Rom 8,35-39).

(Excertos da obra 'Intimidade com Deus', de um cartuxo anônimo)