PE. ANTÔNIO VIEIRA
(...) 'Não hei de pregar hoje ao povo, não hei de falar com os homens, mais alto hão de subir as minhas palavras; ao vosso peito divino se há de dirigir todo o sermão. É este o último dos quinze dias contínuos, em que todas as igrejas desta metrópole, a esse mesmo trono de vossa potente majestade, têm representado suas deprecações; e pois o dia é o último, justo será que nele se acuda também ao último e único remédio. Todos estes dias se cansaram debalde os oradores evangélicos em pregar penitência aos homens; e pois eles se não converteram, quero eu, Senhor, converter-Vos a vós. E tão presumido venho da vossa misericórdia, que ainda que sejamos nós os pecadores, vós haveis de ser hoje o arrependido (...)
Muita razão tenho eu de o esperar. Olhai, Senhor, que já dizem os hereges insolentes com os sucessos prósperos que vós lhes dais ou permitis: já dizem que, porque a sua, que eles chamam religião, é a verdadeira, por isso Deus os ajuda, e vencem; e porque a nossa é errada e falsa, por isso nos desfavorece, e somos vencidos. Assim o dizem, assim o pregam, e ainda mal, porque não faltará quem os creia. Pois é possível, Senhor, que hão de ser vossas permissões argumentos contra vossa fé? É possível que se hão de ocasionar de nossos castigos blasfêmias contra vosso nome? Que diga o herege que Deus está holandês? Oh! não o permitais, Deus meu, por quem sois! Não o digo por nós, que pouco ia em que o destruísseis; por vós o digo, e pela honra do vosso santíssimo nome; por vós o digo, e pela honra do vosso santíssimo nome, que tão impudentemente se vê blasfemado: Propter nomen tuum.
Já que o pérfido calvinista, dos sucessos que só lhe merecem nossos pecados, faz argumentos da religião, e se jacta insolente e blasfemo de ser a sua a religião verdadeira; veja ele na roda dessa mesma fortuna, que o desvanece, de que parte está a verdade. Os ventos e tempestades que descompõem e derrotam as nossas armadas, derrotes e desbaratem as suas: as doenças e pestes que diminuem e enfraquecem os nossos exércitos, escalem as suas muralhas, e despovoem os seus presídios; os conselhos que, quando vós quereis castigar, se corrompem, em nós sejam alumiados, e neles enfatuados e confusos. Mude a vitória as insígnias, desafrontem-se as cruzes católicas, triunfem as vossas chagas nas nossas bandeiras, e conheça humilhada e desenganada a perfídia, que só a fé romana, que professamos, é fé, e só ela a verdadeira e a vossa (...)
Parece-vos bem, Senhor, parece-vos bem isto? Que a mim, que sou vosso servo, me oprimais e aflijais, e aos ímpios, e aos inimigos vossos, os favoreçais e ajudeis? Parece-vos bem que sejam eles os prosperados e assistidos de vossa Providência; e nós os deixados de vossa mão, nós os esquecidos de vossa memória, nós o exemplo de vossos rigores, nós o despojo de vossa ira? Considerai, Deus meu, e perdoai-me se falo inconsideradamente. Considerai a quem tirais as terras do Brasil, e a quem as dais. Tirais estas terras àqueles mesmos portugueses (e completo eu: seus filhos católicos brasileiros) a quem escolhestes entre todas as nações do mundo para conquistadores da vossa fé, e a quem destes por armas, como insígnia e divisa singular, vossas próprias chagas. E será bem, supremo Senhor e Governador do universo, que às sagradas quinas de Portugal, e às armas e chagas de Cristo, sucedam as heréticas listas de Holanda, rebeldes ao seu rei e a Deus? Será bem que estas se vejam tremular ao vento vitoriosas, e aquelas abatidas, arrastadas, e ignominiosamente rendidas? E que fareis, ou que será feito de vosso glorioso nome em casos de tanta afronta? (...)
Assim fostes servido que entrássemos nestes novos mundos, tão honrada e tão gloriosamente; e assim permitis que saiamos agora com tanta afronta e ignomínia.(...) Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastamos os ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas há baixio no Oceano, que não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios e portugueses? E depois de tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e tão lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranham das feras e monstros marinhos, - que as terras que assim ganhamos, as hajamos de perder assim? (...)
Ganhá-las para as não lograr, desgraça foi, e não ventura: possuí-las para as perder, castigo de vossa ira, Senhor, e não mercê nem favor de vossa liberalidade. Se determináveis dar estas terras aos piratas da Holanda, por que lhas não destes enquanto eram agrestes e incultas, senão agora? Tantos serviços vos tem feito esta gente pervertida e apóstata, que nos mandastes primeiro cá por seus aposentadores, para lhes lavrarmos as terras, para lhes edificarmos as cidades, e depois de cultivadas e enriquecidas, lhas entregardes? (...)
Mas pois vós, Senhor, o quereis e ordenais assim, fazei o que fordes servido. Entregai aos holandeses o Brasil, entregai-lhes as Índias, entregai-lhes as Espanhas, entregai-lhes quanto temos e possuímos, ponde em suas mãos o mundo: e a nós, os portugueses e espanhóis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos, acabai-nos. Mas só vos digo e lembro, que estes mesmos que agora desfavoreceis e lançais de vós, pode ser que os queirais algum dia, e que os não tenhais (...) Holanda vos dará os apostólicos conquistadores que levem pelo mundo os estandartes da cruz. Holanda vos dará os pregadores evangélicos que semeiem nas terras dos bárbaros a doutrina católica, e a reguem com o próprio sangue. Holanda edificará templos, levantará altares, consagrará sacerdotes, e oferecerá o sacrifício de vosso santíssimo corpo. Holanda enfim vos servirá e venerará tão religiosamente, como em Amsterdã, Meldeburgo e Flesinga, e em todas as outras colônias daquele frio e alagado inferno se está fazendo todos os dias...
Se acaso for assim, e está determinado em vosso secreto juízo que entrem os hereges na Bahia, o que só vos represento humildemente, e muito deveras, é que, antes da execução da sentença, repareis bem, Senhor, no que vos pode suceder depois, e que o consulteis com vosso coração enquanto é tempo; porque melhor será arrepender agora, que quando o mal passado não tenha remédio. Bem estais na intenção e alusão com que digo isto, e na razão fundada em vós mesmo, que tenho para o dizer. Também antes do dilúvio estáveis vós mui colérico e irado contra os homens e, por mais que Noé orava em todos aqueles cem anos, nunca houve remédio para que se aplacasse vossa ira. Romperam-se enfim as cataratas do céu, cresceu o mar até o cume dos montes, alagou-se o mundo todo: já estará satisfeita vossa justiça.
Senão quando, ao terceiro dia, começaram a aboiar os corpos mortos, e a surgir e aparecer em multidão infinita aquelas figuras pálidas, e então se representou sobre as ondas a mais triste e funesta tragédia que nunca viram os anjos, que homens, que a vissem, não os havia. Vistes vós também, como se o vísseis de novo, aquele lastimosíssimo espetáculo, e posto que não chorastes, porque ainda não tínheis olhos capazes de lágrimas, enterneceram-se porém as entranhas de vossa divindade com tão intrínseca dor (Tuctus dolore dordis intrinsecus) que do modo que em vós cabe arrependimento, vos arrependestes do que tínheis feito ao mundo, e foi tão inteira a vossa contrição, que não só tivestes pesar do passado, senão propósito firme de nunca mais o fazer. Este sois, Senhor; e pois sois este, não vos tomeis com vosso coração. Para que é fazer agora valentias contra ele, se o seu sentimento, e o vosso, as há de pagar depois? Já que as execuções de vossa justiça custam arrependimentos à vossa bondade; vede o que fazeis, antes que o façais, não vos aconteça outra. E para que o vejais com cores humanas, que já vos não são estranhas, dai-me que eu vos represente primeiro ao vivo as lástimas e misérias deste novo dilúvio; e se esta representação vos não enternecer, e tiverdes entranhas para o ver sem grande dor, executai-o embora.
Imaginemos pois (o que até fingido e imaginado faz horror) imaginemos os que vêm a Bahia e o resto do Brasil a mão dos holandeses; que é que há de suceder em tal caso? Entrarão por esta cidade com fúria de vencedores e de hereges; não perdoarão a estado, sexo, nem a idade; com os fios dos mesmos alfanjes medirão a todos. Chorarão as mulheres, vendo que se não guarda decoro à sua honestidade: chorarão os velhos, vendo que se não guarda respeito às suas cãs: chorarão os sacerdotes, vendo que até as coroas sagradas os não defendem; chorarão finalmente todos, e entre todos mais lastimosamente os inocentes, porque nem a esses perdoará a desumanidade herética. Sei eu, Senhor, que só por amor dos inocentes dissestes vós alguma hora que não era bem castigar Nínive. Mas não sei que tempos, nem que desgraça é esta nossa, que até a mesma inocência vos não abranda. Pois também vós, Senhor, vos há de alcançar parte do castigo, também a vós há de chegar.
Entrarão os hereges nesta igreja e nas outras, arrebatarão essa custódia em que agora estais adorado dos anjos, tomarão os cálices e vasos sagrados, e aplicá-los-ão às suas nefandas embriaguezes; derribarão dos altares os vultos e estátuas dos santos, deformá-las-ão a cutiladas, e metê-las-ão no fogo: e não perdoarão as mãos furiosas e sacrílegas, nem às imagens tremendas de Cristo crucificado, nem às da Virgem Maria. Não me admiro tanto, Senhor, de que hajais de consentir semelhantes agravos e afrontas em vossas imagens, pois já as permitistes em vosso sacratíssimo corpo; mas nas de Virgem Maria, nas de vossa santíssima mãe, não sei como isto pode estar com a piedade e amor de filho.
No Monte Calvário esteve esta Senhora sempre ao pé da cruz, e com serem aqueles algozes tão descorteses e cruéis, nenhum se atreveu a lhe tocar, nem a lhe perder o respeito. Assim foi, e assim havia de ser, porque assim o tínheis vós prometido pelo profeta: Flagellum non apropinquabit tabernaculo tuo. Pois, filho da Virgem Maria, se tanto cuidado tivestes então do respeito e decoro de vossa mãe, como consentis agora que se lhe façam tantos desacatos? Nem me digais, Senhor, que lá era a pessoa, cá a imagem. Imagem somente da mesma virgem era a arca do testamento, e só porque Oza a quis tocar, lhe tirastes a vida. Pois se então havia tanto rigor para quem ofendia a imagem de Maria, por que o não há também agora? Bastava então qualquer dos outros desacatos às coisas sagradas, para uma severíssima demonstração vossa, ainda milagrosa. Se a Jeroboão, porque levantou a mão para um profeta, se lhe secou logo o braço milagrosamente, como aos hereges, depois de se atreverem a afrontar vossos santos, lhes ficam ainda braços para outros delitos? Se a Baltasar, por beber pelos vasos do templo, em que não se consagrava vosso sangue, o privastes da vida e do reino; por que vivem os hereges que convertem vossos cálices a usos profanos? Já não há três dedos que escrevam sentença de morte contra sacrílegos?
Enfim, Senhor, despojados assim os templos, e derribados os altares, acabar-se-á o culto divino: nascerá erva nas igrejas como nos campos, nem haverá quem nelas entre. Passará um dia de Natal e não haverá memória de vosso nascimento: passará a Quaresma e a Semana Santa, e não se celebrarão os mistérios de vossa paixão. Chorarão as pedras das ruas, como diz Jeremias, como choraram as de Jerusalém destruída: Viae Sion lugent, eo quod non sint, qui veniant ad solemnitatem. Ver-se-ão ermas e solitárias, e que as não pisa a devoção dos fiéis, como costumava em semelhantes dias. Não haverá missas, nem altares, nem sacerdotes que as digam: morrerão os católicos sem confissão nem sacramento: pregar-se-ão heresias nestes mesmos púlpitos, e em lugar de São Jerônimo e Santo Agostinho, ouvir-se-ão neles os infames nomes de Calvino e de Lutero: beberão a falsa doutrina os inocentes que ficarem, relíquias dos portugueses: e chegaremos a estado que, se perguntarem aos filhos e netos dos que aqui estão: Menino, de que seita sois? Um responderá, eu sou calvinista; outro, eu sou luterano. Pois isto se há de sofrer, meu Deus?
Quando quisestes entregar vossas ovelhas a Pedro, examinaste-lo três vezes, se vos amava: Diligis me, diligis me, diligis me? E agora as entregais desta maneira, não a pastores, senão a lobos? Sois o mesmo, ou sois outro? Aos hereges o vosso rebanho? Aos hereges as almas? Como tenho dito, nomeei almas, não vos quero dizer mais. Já sei, Senhor, que vos haveis de enternecer e arrepender, e que não haveis de ter coração para ver tais lástimas e tais estragos. E se assim é, (que assim o estão prometendo vossas entranhas piedosíssimas) se é que há de haver dor, se é que há de haver arrependimento depois, cessem as iras, cessem a execuções, agora; não é justo vos contente antes o de que vos há de pesar em algum tempo'.
(Excertos do sermão proclamado pelo Pe. Antônio Vieira na Igreja de Nossa Senhora d'Ajuda da cidade da Bahia, no ano de 1640, diante o Santíssimo Sacramento exposto, frente à grave e iminente ameaça de invasão dos holandeses protestantes calvinistas no nordeste brasileiro no século XVII, que foram posteriormente contidos e expulsos do Brasil - texto adaptado)