sábado, 28 de junho de 2014

SERMÕES DO CURA D'ARS (I)

SOBRE AS TENTAÇÕES

As tentações são necessárias para que possamos perceber que não somos nada por nós mesmos. Santo Agostinho diz-nos que deveríamos agradecer a Deus tanto pelos pecados dos quais Ele nos preservou, como pelos pecados que Ele, por caridade, nos perdoou. Caso venhamos a cair nas ciladas do demônio, nós pensamos que somos capazes de nos levantarmos novamente, confiando muito mais nas nossas promessas e resoluções do que na força de Deus. Isto é uma grande verdade! Quando nós não temos nada do que nos envergonhar, quando todas as coisas estão correndo bem e de acordo com os nossos desejos, nós ousamos pensar que nada poderia nos derrubar. Nós esquecemos facilmente do nosso próprio nada e de nossa fraqueza interior. Chegamos mesmo a protestar, que estamos prontos a morrer do que permitirmos sermos vencidos. 

Nós vemos o esplêndido exemplo de São Pedro, que disse ao Senhor que ainda que todos se escandalizassem Dele, ele não se escandalizaria. Coitado! Para mostrar-lhe, como o homem entregue às suas próprias forças, não é absolutamente nada, Deus fez uso, não de reis, príncipes ou armas, mas sim da voz de uma simples empregada na noite da prisão de Jesus, que confrontou Pedro com um monte de interrogações. E nesse momento Pedro protesta dizendo que nem sequer conhecia o Senhor, e fez de contas que nem sabia do que ela estava falando. Para assegurar aos presentes, de um modo ainda mais veemente de que ele não conhecia Jesus, ele chegou mesmo a jurar! Ó Senhor, o que não somos capazes de fazer quando nós estamos entregues a nós mesmos! 

Existem pessoas, que fazem questão de dizer, o quanto eles invejam os santos que fizeram grandes penitências! Eles chegam a acreditar que poderiam fazer o mesmo! Às vezes quando lemos sobre a vida de alguns mártires, nós gostaríamos, nós pensamos, estarmos prontos para sofrer tudo que eles sofreram por amor a Deus. Chegamos ao ponto de pensar: é um momento de sofrimento muito curto para a recompensa que vamos receber no Céu! Mas o que faz Deus para nos ensinar a nos conhecermos, ou melhor, para reconhecermos que não somos absolutamente nada? 

Eis o que Ele faz: Ele permite que o demônio se aproxime um pouquinho mais de nós. E nesse momento, veja o que acontece com os cristãos que há apenas uns minutos atrás invejavam aquele eremita que vivia retirado no deserto, alimentando-se somente de ervas e raízes e que fez a firme resolução de submeter seu corpo a duras penitências. Coitado! Uma leve dor de cabeça, a simples espetada de um espinho, o faz se condoer todo por si próprio! Não importando o quão grande e forte ele possa aparentar. Ele se aborrece, reclama da dor. A poucos momentos atrás, estava disposto a fazer todas as penitências dos anacoretas (monges do deserto) e agora, o menor contratempo o faz cair no desespero! 

Agora vejamos esse outro cristão, que parece querer entregar toda sua vida a Deus. Que possui um ardor que tormento algum poderia apagar! Um pequeno escândalo... uma palavra de calúnia... e até mesmo uma fria receptividade ou pequena injustiça cometida contra ele... uma gentileza retribuída com ingratidão... imediatamente desperta nele todos os sentimentos de ódio, vingança e descontentamento, a ponto de frequentemente, ele desejar nunca mais ver o seu próximo ou pelo menos tratá-lo de um modo frio, de forma a demonstrar o quanto aquela pessoa o ofendeu. E quantas vezes, isso se torna o seu primeiro pensamento ao acordar, assim como o pensamento que sempre o impede de dormir em paz? Coitado! Meus caros amigos, nós somos umas coisas pobres, e por isso deveríamos contar muito pouco com nossas próprias resoluções. 

Cuidado se você não sofre tentações! A quem o demônio mais persegue? Talvez você ache que as pessoas que são mais tentadas, são indubitavelmente, os beberrões, os provocadores de escândalos, as pessoas imodestas e sem vergonha que deitam e rolam na sujeira e na miséria do pecado mortal, que se enveredam por toda espécie de maus caminhos. Não, meu caro irmão! Não são essas pessoas! Ao contrário, o demônio os deixa de lado, ou seja, ele se apóia nelas enquanto elas vivem, porque do contrário ele não teria tanto tempo para fazer o mal. Isso porque, quanto mais tempo essas pessoas viverem, mais seus maus exemplos arrastarão outras almas para o Inferno. 

De fato, se o demônio tivesse perseguido esse velho companheiro obsceno e sem-vergonha, ele teria encurtado a duração de sua vida em 15 ou 20 anos, de forma que ele não teria destruído a virgindade daquela garota ali, seduzindo-a para a inominável mira de suas indecências. Ele não teria novamente seduzido aquela mulher casada e nem ensinado suas más lições àqueles rapazinhos, que talvez as continue a praticar até o final de suas vidas. 

Se o demônio tivesse incitado a este ladrão ali na frente, a roubar em tudo quanto é ocasião, ele teria ido acabar na forca e não teria tempo pra induzir seu vizinho a seguir seu mau exemplo. Se o demônio tivesse encorajado esse beberrão ali, a se embebedar incessantemente com o vinho, ele já teria morrido a muito tempo atrás nas suas libertinagens, e não teria tempo de fazer com que outros seguissem seu mesmo caminho. Se o demônio tivesse tirado a vida deste músico ali, ou daquele organizador de bailes, ou daquele dono de cabaré, em algum tipo de tumulto ou assalto, ou em qualquer outra ocasião, quantas almas não seriam poupadas da danação eterna! 

Santo Agostinho nos ensina que o demônio não importuna muito essas pessoas; pelo contrário, ele até as despreza e cospe sobre elas. Assim, você me perguntaria: então quem são as pessoas mais tentadas? São estas, meus caros amigos, observem-nas atentamente. As pessoas mais tentadas são aquelas que estão prontas, com a graça de Deus, a sacrificar tudo pela salvação de suas pobres almas, que renunciam a todas as coisas que a maioria das pessoas buscam ansiosamente. E não é um demônio só que as tenta, mas milhões de demônios procuram armar-lhes ciladas. 

Uma vez, São Francisco de Assis e todos os seus religiosos estavam reunidos numa área plana e aberta, onde eles tinham erguido algumas choupanas de palha. Buscando um meio de fazer com que todos fizessem penitências extraordinárias, São Francisco ordenou que fossem trazidos todos os instrumentos de penitência, e seus religiosos os trouxeram aos feixes. Nesse momento, havia um jovem homem a quem Deus concedeu a graça de poder ver o seu Anjo da Guarda. De um lado, ele viu todos esses bons religiosos que buscavam satisfazer sua sede por mais penitências e, do outro, o Anjo permitiu-lhe ver uma legião de 18 mil demônios, que estavam se reunindo em conselho para ver de que modo eles poderiam subverter esses religiosos pela tentação. Um dos demônios disse: 'Vocês não percebem mesmo! Esses religiosos são tão humildes; Ah! que virtude espantosa! são tão desapegados de si próprios, tão apegados a Deus! Eles possuem um superior que os guia, de forma que é impossível ser bem sucedido em qualquer ataque que façamos a eles. Vamos esperar até que o superior deles morra e então introduziremos entre eles jovens sem nenhuma vocação que trarão um certo relaxamento de espírito para a ordem, e aí sim, nós os venceremos'. 

Mais tarde, quando esse homem entrou na cidade, ele viu um demônio sentado sozinho no portão de entrada da cidade e que tinha a tarefa de tentar todos os habitantes daquele lugar. Esse santo perguntou ao seu Anjo da Guarda porque motivo, para tentar apenas aquele grupo de religiosos, haviam tantos demônios, ao passo que, para toda aquela cidade, havia apenas um sentado à sua entrada. Seu bom Anjo respondeu-lhe então, que aquelas pessoas não precisavam de tentação, uma vez que já estavam entregues aos seus próprios pecados, ao passo que aqueles religiosos buscavam fazer tudo que era bom, apesar de todas as ciladas que os demônios podiam armar para eles. 

Meus caros irmãos, a primeira tentação com a qual o demônio tenta qualquer um que começou a servir melhor a Deus chama-se 'respeito humano'. Aquela pessoa acometida pelo respeito humano, não ousará mais a ser vista em todo lugar, passará a se esconder de todos aqueles com os quais ela andava misturada na busca de uma vida de prazeres. Se alguém lhe disser que ela está muito mudada, imediatamente ela ficará envergonhada! Aliás, o que as pessoas vão dizer dela, é a sua contínua preocupação. Chega a um ponto de perder a coragem de fazer qualquer boa ação diante dos olhos alheios. Se o demônio não consegue fazê-la retroceder na caminhada espiritual através do respeito humano, ele infundirá nela um extraordinário medo, dizendo-lhe que suas confissões não servem para nada, que seu confessor não a entende, que seja lá o que ela fizer, será sempre em vão, que ela irá para a condenação eterna do mesmo modo ou que ela obteria o mesmo resultado (a salvação) no final, deixando tudo correr solto ao invés de continuar a lutar, afinal as ocasiões de pecado já demonstraram ser demais para ela! 

Por que será, meus irmãos, que quando alguém não dá a mínima importância à salvação de sua alma, ele parece não sofrer a menor tentação? Mas assim que ele resolve mudar de vida, em outras palavras, assim que ele deseja reformar sua vida para que Deus venha morar nele, imediatamente todo o inferno cai em cima dele? Ouçamos o que nos diz Santo Agostinho a esse respeito: 'Do modo como o demônio se comporta em relação ao pecador: Ele atua como um carcereiro que possui muitos prisioneiros trancados em sua prisão, mas como ele não carrega ou não possui a chave que poderia libertá-los dali, ele tranquilamente pode sair sossegado, certo de que nenhum deles tem como fugir. Este é o modo como ele age com aqueles pecadores que nem sequer consideram a possibilidade de deixar o pecado para trás. Ele nem sequer se dá ao trabalho de tentá-los. Ele vê tais pessoas como perda de tempo, não apenas porque elas não pensam em deixá-lo, mas também porque ele não deseja multiplicar suas cadeias. Por outro lado, seria inútil tentá-los. Ele permite que eles vivam em paz enquanto estiverem vivendo no pecado mortal. Ele esconde do pecador a situação em que ele se encontra, o mais que ele pode, até a morte, e quando acontece dele pintar um quadro da vida daquele pecador, ele o faz de uma maneira tão aterrorizante, que o infeliz pecador súbito cai no desespero. Mas com qualquer um que se decidiu a mudar de vida, que se decidiu a entregar-se completamente à Deus, é toda uma outra história!'
Enquanto Santo Agostinho vivia no pecado e na maldade, ele não tinha porque se preocupar com as tentações. Ele acreditava se encontrar em paz, como ele mesmo nos conta. Mas no momento que ele resolveu dar as costas para o demônio, ele teve que travar um combate contra ele a ponto de perder sua respiração na luta. E isso durou cinco anos! Ele chorou as lágrimas mais amargas e fez as mais severas penitências. Ele chegou ao ponto de dizer: 'Eu discutia com ele em minhas cadeias! Um dia eu achei que tinha sido vitorioso, no próximo dia lá estava eu de novo, prostrado no chão. Esta guerra cruel e obstinada durou cinco anos. No final, Deus me concedeu a graça de vencer o combate contra o meu inimigo'. 

Você pode ver também a luta que São Jerônimo teve que empreender, quando ele se decidiu a viver apenas para Deus e também quando planejou visitar a Terra Santa. Quando ele ainda estava em Roma, concebeu um desejo novo de trabalhar pela sua salvação. Ao sair de Roma, ele se retirou para um deserto para se entregar a todos os exercícios que o amor por Deus o inspirasse a fazer. Então o demônio, prevendo como sua conversão iria influenciar tantas outras pessoas, se encheu de fúria e desespero. São Jerônimo não foi poupado da menor tentação. Eu não acredito que exista um santo que foi mais tentado do que ele. 

Isto foi o que ele escreveu a um de seus amigos: 'Meu caro amigo, eu quero confidenciar-lhe sobre minhas aflições e o estado ao qual o demônio procura reduzir-me. Quantas vezes nessa vasta solidão, na qual o calor do sol se faz insuportável, quantas vezes os prazeres de Roma parecem me assaltar! A dor e a amargura, das quais minh'alma se encontra repleta, fazem me derramar rios de lágrimas dia e noite sem parar. Eu procurei me esconder nos lugares mais isolados para lutar contra minhas tentações e chorar pelos meus pecados. Meu corpo está todo desfigurado e coberto com uma veste rude em trapos. Eu não tenho outra cama a não ser o chão nu e minha única comida é um cozido de raízes e água, mesmo quando estou doente. Apesar de todos esses rigores, meu corpo ainda se recorda dos sórdidos prazeres dos quais Roma inteira está envenenada, meu espírito ainda se encontra no meio daqueles companheiros de prazer e aventuras com os quais eu tão imensamente ofendi a Deus. Nesse deserto, ao qual eu mesmo me condenei para evitar o inferno, junto dessas rochas sombrias, onde eu não tenho outra companhia, a não ser escorpiões e os animais selvagens, meu espírito ainda queima dentro do meu corpo morto, com um fogo de impurezas. O demônio ainda assim, ousa a me oferecer prazeres para que eu os prove. Eu me contemplo tão humilhado por essas tentações e o único pensamento que me faz morrer de pavor é não saber quais austeridades às quais eu ainda devo submeter o meu corpo para uni-lo com Deus. Eis porque eu me atiro ao chão, aos pés do meu crucifixo, banhado em minhas próprias lágrimas, e quando eu não posso mais chorar, eu pego algumas pedras e bato no meu peito com elas, até que o sangue saia pela minha boca, implorando por misericórdia, até que Deus tenha piedade de mim. Será que existe alguém, capaz de entender a miséria do meu estado, desejando tão ardentemente agradar a Deus e amar somente a Ele? Ainda assim, eu estou sempre pronto a ofendê-lo. Que dor isso representa para mim? Ajude-me, meu caro amigo, com o auxílio de suas orações, de forma que eu me torne mais forte para repelir o demônio, que jurou me levar para a condenação eterna'. 

Meus caros amigos, são esses os combates a que são submetidos os grandes santos de Deus. Coitados de nós! Como somos dignos de pena por não sermos assaltados ferozmente pelo demônio! De acordo com todas as aparências, podemos dizer que somos amigos do diabo: ele nos faz viver numa falsa paz, ele nos embala no sono, deixando-nos com a pretensão de que recitamos algumas boas orações, distribuímos algumas esmolas e que fizemos menos más ações do que os outros. De acordo com o nosso padrão, meus caros irmãos, se perguntarmos, por exemplo, àquele sustentador do cabaré ali, se o demônio o tem tentado, ele simplesmente dirá que nada o incomoda absolutamente! Pergunta a esta garota ali, esta filha da vaidade, quais são os combates que ela tem que travar contra o inimigo, e ela vai responder-lhe sorrindo que ela não tem nenhuma luta e que, aliás, ela nem sabe o que é ser tentada. Assim vocês verão, meus caros amigos, que a tentação mais terrível de todas, é exatamente não ser tentado. E vocês verão ainda mais! Vocês verão o estado daqueles a quem o demônio está preservando para o inferno. Eu ousaria dizer ainda, que ele tem o máximo cuidado em não atormentar tais pessoas com a recordação de suas vidas no passado. Do contrário, seus olhos poderiam se abrir para seus pecados! 

O maior de todos os males não é ser tentado porque há então motivos para acreditar que o demônio está apenas esperando nossas mortes para nos arrastar para o inferno. Nada poderia ser mais fácil de ser entendido. Apenas considere o cristão que está tentando, ainda que seja de um modo pequeno, salvar sua alma. Tudo em volta dele parece incliná-lo para o mal, ele dificilmente consegue levantar os olhos sem ser tentado, apesar de todas as orações e penitências! E mesmo assim, um pecador empedernido, que passou uns 20 anos chafurdando na lama do pecado ainda tem a coragem de dizer que não é tentado! Este está num estado muito pior, meus caros amigos, muito pior! Isso é o que deveria fazer você tremer de pavor: não saber o que são as tentações, pois dizer que você não é tentado, é o mesmo que dizer que o demônio não existe ou que ele perdeu todo seu raio de ação sobre as almas cristãs. 

São Gregório nos diz: 'Se você não sofre tentações é porque o demônio é seu amigo, seu líder e seu pastor. E ao permitir que você passe sua pobre vida na tranquilidade, no final de seus dias, ele lhe arrastará com todos os outros para as profundezas do abismo'. Santo Agostinho diz-nos que a maior tentação é não sofrer tentações, pois isso apenas significa que uma pessoa assim, é uma pessoa que foi rejeitada por Deus, abandonada por Deus, e deixada inteiramente à mercê de suas próprias paixões.