quarta-feira, 21 de maio de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXIII)


Exame sobre a Humildade para com Deus - Parte I

102. O primeiro ato de humildade, diz São Tomás [2a 2æ, qu. clxi, art. 2 ad 3 ; et qu. clxii, art. 5], consiste em nos submetermos inteiramente a Deus com a maior reverência pela sua Majestade infinita, diante da qual somos como nada: 'Todas as nações estão diante dEle como se não tivessem existência alguma' [Is 6,17]. Mas alguma vez consideraste o teu nada diante de Deus? E que todo o ser que tens, vem de Deus? E que, por necessidade intrínseca, dependes tão inteiramente de Deus que, sem Ele, não podes fazer nada de bom - 'porque sem Mim nada podeis fazer' [Jo 15,5] - que, sem Deus, não pensas, nem dizes, nem fazes nada de bom?

Isto é artigo de fé. 'Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor senão pelo Espírito Santo' [1Cor 12, 3]. 'Não que sejamos capazes por nós mesmos de ter algum pensamento, como de nós mesmos. Nossa capacidade vem de Deus' [2Cor 3, 5].  'Porque é Deus quem, segundo o seu beneplácito, realiza em vós o querer e o executar' [Fp 2,13]. Não basta dizer apenas que sei todas estas coisas, mas é necessário realizá-las para se tornar realmente humilde.

O Doutor Angélico ensina que a razão pela qual a humildade tende principalmente a tornar a alma submissa a Deus é porque esta virtude está mais próxima das virtudes teologais, e como não basta apenas saber em que coisas devemos acreditar ou esperar, mas que também é necessário que façamos atos de fé e de esperança, assim também devemos fazer atos semelhantes de humildade. O próprio Cristo ensinou a humildade do coração, e o coração não deve ficar ocioso, nem deixar de produzir os atos necessários. E que atos de humildade praticais perante Deus? Com que frequência os fazeis? Quando os fizeste? Há quanto tempo não os fazeis?

Seria absurdo esperar a recompensa que é prometida aos humildes sem ser humilde ou pelo menos sem o desejo de ser humilde; e sem fazer atos de humildade; humildade de coração sem que o coração se humilhe a si mesmo - que loucura! E sois suficientemente tolos para acreditar que isso pode ser feito? Às vezes, pronunciais certas palavras que parecem tender para a vossa humilhação; dizeis que sois um miserável desprezível, que não servis para nada, mas dizeis essas coisas sinceramente, de coração? Se receias mentir a ti mesmo, confirmando-as na tua mente, ouve o que São Tomás [Loc. cit. art. 6 ad 1] nos diz para nossa instrução, que cada um pode dizer e crer de si mesmo, com verdade, que é um miserável desprezível, remetendo para Deus toda a sua capacidade e talento.

103. Mas como devemos fazer estes atos práticos de humildade perante Deus? Vou dar-vos alguns exemplos. Podes imaginar-te agora na presença de Deus como um condenado que se humilha e implora misericórdia para o perdão dos seus pecados: 'Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia' [Sl 1,1]; ou como um mendigo miserável e necessitado que se humilha e pede uma esmola para o ajudar na sua necessidade: 'O pão nosso de cada dia nos dai hoje'; ou como o doente junto ao tanque de Betsaida, que se humilha perante o Salvador para ser curado da sua doença incurável: 'Senhor, não tenho ninguém...' [ Jo 5,7]; ou como aquele cego que se humilhou para que sua escuridão pudesse ser iluminada: 'Senhor, para que eu possa ver'; ou como a mulher cananeia que se humilhou e exclamou: 'Tem piedade de mim, Senhor, ajuda-me!' [Mt 15,22.25] e não se envergonha de se comparar aos cães que não são dignos de comer o pão do seu dono, mas se contentam em comer as migalhas que caem da sua mesa. A humildade do coração é ingênua e, da mesma forma que o nosso coração ama sem precisar de ser ensinado a amar, ele humilha-se sem precisar de ser ensinado a humilhar-se.

104. Há casos em que somos obrigados a fazer atos de virtude - como atos de fé, a esperança e caridade - que alguma necessidade, circunstância ou dever do nosso estado de vida nos exija, e há casos em que devemos fazer atos de humildade no nosso coração. Em primeiro lugar, é necessário humilharmo-nos quando nos aproximamos de Deus com a oração para obter alguma graça, porque Deus não olha, nem atende, nem dá a sua graça senão aos humildes. 'O Senhor olha para os humildes' [Sl 137,6 ]; 'sempre vos foram aceitas as preces dos mansos e humildes' [Jd 9,16]; 'Deus dá sua graça aos humildes' [Tg 4,6]. Quando, pois, vindes pedir a Deus alguma graça do corpo ou da alma, lembrai-vos sempre de praticar esta humildade?

Quando rezamos, e sobretudo quando dizemos o 'Pai Nosso', dirigimo-nos a Deus; e quantas vezes, ao dizerdes as vossas orações, vos dirigis a Deus com menos respeito do que se estivésseis a falar com um dos vossos semelhantes? Quantas vezes, quando estais na igreja, que é a casa de Deus, ouvis um sermão, que é a Palavra de Deus, e assistis às funções do serviço sem qualquer reverência? A humildade de coração, diz São Tomás [2a 2æ, qu. clxi, art. 2] é acompanhada pela reverência exterior, e faltar a esta é faltar à humildade e é, portanto, um pecado de orgulho.

105. Mas quanto mais essencial é para nós a graça que pedimos a Deus, tanto mais necessária é a humildade. Antes de ires ao tribunal da penitência, humilhas-te e pedes a Deus que te dê a dor dos teus pecados, necessária para a validade do sacramento? Como esta dor deve ser sobrenatural, é certo que nunca a poderias alcançar por ti mesmo, por mais que te esforçasses por senti-la. Só Deus pode dá-la, e é igualmente certo que não se trata de uma dívida que Ele tem para convosco, mas de uma grande graça que lhe apraz conferir-vos por sua bondade e sem qualquer mérito da vossa parte. Se, porém, desejais receber esta graça, deveis pedi-la com humildade, protestando de coração que não a mereceis, que não sois dignos de a receber e que só a esperais pelos méritos de Jesus Cristo. Mas praticais esta humildade, que é, pode-se dizer, de preceito para vós, porque é um meio essencial para obter a contrição?

106. O mesmo se pode dizer das vossas resoluções, que são igualmente necessárias para tornar válida a confissão. A confissão deve ser constante e eficaz, mas não o pode ser sem a ajuda especial de Deus. Pensais alguma vez em humilhar-vos e pedir esse auxílio, sabendo e confessando a vossa instabilidade e fraqueza, e que não sois capazes, por vós mesmos, de manter a menor resolução, nem de manhã à noite, nem mesmo de uma hora para outra? É por isso que caís tantas vezes nas mesmas faltas, porque vos falta a humildade. O homem verdadeiramente humilde é totalmente desconfiado de si mesmo e, pondo toda a sua confiança em Deus, é por Ele ajudado da maneira mais admirável: 'Humilha-te perante Deus e espera pelas suas mãos' [Eclo 13,9].

Quantas vezes não dizeis: 'Tomei esta firme resolução e tenciono mantê-la, não tenho medo de a quebrar', confiando iniquamente em ti mesmo, sem reconhecer de modo algum a ajuda divina? Cuidado para que não sejas contado entre os réprobos 'que foram destruídos confiando na sua própria força' [Eclo 16,8]. Se, mesmo que seja só um pouquinho, te apossares de ti mesmo, esse pouquinho pode ser a causa de uma grande ruína, segundo a predição de Jó: 'Levantam-se, subitamente já não existem; caem; como os outros' [Jó 24,24].

107. E como praticais a humildade na vossa confissão sacramental? É na vossa confissão que deveis humilhar-vos como um malfeitor culpado na presença do vosso Juiz. 'Humilha a tua alma diante de um ancião'  [Eclo 4, 7] Esse conselho vem do Espírito Santo. Quantas vezes não tentamos parecer inocentes no próprio ato de nos acusarmos de culpa - ora desculpando os nossos pecados, ora encobrindo ou diminuindo a sua malícia, ora pondo a culpa nos outros em vez de a assumirmos nós próprios? É uma verdadeira falta de humildade, e daquela humildade que não é de conselho, mas de preceito. Deveis dizer com Davi: 'Eu disse: confessarei ao Senhor a minha iniquidade' [Sl 31,5]. A vergonha que vos impede de confessar o vosso pecado com clareza e franqueza provém unicamente do orgulho.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

terça-feira, 20 de maio de 2025

'COMO EU VOS AMEI'

O Senhor Jesus manifesta um novo mandamento aos seus discípulos, que se amem mutuamente: 'Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros' (Jo 13,34). Mas este mandamento já não estava escrito na antiga lei de Deus, onde se lê: 'Amarás o teu próximo como a ti mesmo' (Lv 19,18)? Por que então o Senhor chama novo o que é evidentemente tão antigo? Será um novo mandamento pelo fato de nos revestir do homem novo, depois de nos ter despojado do velho? Na verdade, ele renova o homem que o ouve, ou melhor, aquele que lhe obedece; não se trata, porém, de um amor puramente humano, mas daquele que o Senhor quis distinguir,acrescentando: 'Como eu vos amei' (Jo 13,34).

É este amor que nos renova, transformando-nos em homens novos, herdeiros da nova Aliança, cantores do canto novo. Foi este amor, caríssimos irmãos, que renovou outrora os antigos justos, os patriarcas e os profetas e, posteriormente, os santos apóstolos. Ainda hoje é ele que renova as nações e reúne todo o gênero humano espalhado pelo mundo inteiro, formando um só povo novo, o corpo da nova esposa do Filho Unigênito de Deus. É dela que se diz no Cântico dos Cânticos: 'Quem é esta que sobe vestida de branco?' (cf Ct 8,5). Vestida de branco, sim, porque renovada; e renovada de que modo, senão pelo mandamento novo?

Por isso os membros desta esposa sentem uma solicitude mútua. Se um membro sofre, todos sofrem com ele; se um membro é honrado, todos os outros se alegram com ele. Pois ouvem e praticam a palavra do Senhor: 'Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros'. Não como se amam aqueles que vivem na corrupção da carne; nem como se amam os seres humanos apenas como seres humanos; mas como se amam aqueles que são filhos do Altíssimo. Deste modo, tornam-se irmãos do Filho unigênito de Deus, amando-se uns aos outros com aquele mesmo amor com que ele os amou, e por ele serão conduzidos à plenitude final, onde os seus desejos serão completamente saciados de bens. Então nada faltará à sua felicidade, quando Deus for tudo em todos.

Quem nos dá este amor é o mesmo que diz: 'Amai-vos uns aos outros como eu vos amei'. Foi para isto que ele nos amou, para que nos amássemos mutuamente. E com o seu amor, deu-nos a graça, para que, vivendo unidos em recíproco amor, como membros ligados por tão suave vínculo, formemos o Corpo de tão sublime Cabeça.

(Santo Agostinho, em 'Dos Tratados sobre o Evangelho de São João')

OS PAPAS DA IGREJA (VII)

 



segunda-feira, 19 de maio de 2025

FRASES DE SENDARIUM (LII)

 

'O meu coração e o Coração de Jesus são a mesma coisa' 

(Santa Gemma Galgani)

Encerra tua alma nas chagas abertas do Imaculado Coração de Jesus: oceano de compaixão e abismo de misericórdia que tudo sublima e tudo perdoa. A infinita misericórdia de Deus é o bálsamo e refúgio de todos os pecadores.

domingo, 18 de maio de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Bendirei o vosso nome, ó meu Deus, meu Senhor e meu Rei para sempre' (Sl 144)

Primeira Leitura (At 14,21b-27) - Segunda Leitura (Ap 21,1-5a) -  Evangelho (Jo 13,31-33a.34-35)
 
  18/05/2025 - QUINTO DOMINGO DA PÁSCOA

O NOVO MANDAMENTO


Deus, em sua infinita misericórdia, destinou ao homem, não apenas a plenitude de uma felicidade puramente natural mas, muito mais que isso, por desígnios imensuráveis à condição humana, a plenitude da eterna felicidade com Ele. E, para nos tornar co-participantes de sua glória, nos escolheu, um a um, desde toda a eternidade, como criaturas humanas privilegiadas e especiais, moldadas pelo infinito amor do divino intelecto. Glória aos homens bem-aventurados que, nascidos e criados pelo infinito amor, foram e serão redimidos pelo amor de Cristo para toda a eternidade!

Neste Quinto Domingo da Páscoa, somos chamados a vivenciar este amor de Deus em plenitude. Jesus encontra-se no Cenáculo, pouco antes de sua ida ao Horto das Oliveiras e da sua prisão e morte na cruz. E acaba de revelar aos seus discípulos amados, mais uma vez, a identidade do amor divino entre Pai e Filho, regida pelo Espírito Santo: 'Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele' (Jo 13, 31). Do amor intrínseco à Santíssima Trindade, medida infinita do amor sem medidas, Jesus vai nos dar o princípio do amor humano verdadeiro e recíproco ao amor divino: 'Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros' (Jo 13, 34).

Sim, como Cristo nos amou. Na nossa impossibilidade humana de amar como Cristo nos ama, isso significa amar sem rodeios, amar sem vanglória, amar sem zelos de gratidão, amar de forma despojada e sincera aos que nos amam e aos que não nos amam, a quem não conhecemos, a quem apenas tangenciamos por um momento na vida, a todos os homem criados pelos desígnios imensuráveis do intelecto divino, à sombra e imersos na dimensão do infinito amor de Cristo por nós.

Nesta proposição distorcida e acanhada do amor divino, o amor humano se projeta a alturas inimagináveis de santificação, e expressa a sua identificação incisiva no projeto de redenção de Cristo: 'Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros' (Jo 13, 35). Eis aí a essência do novo mandamento: amar, com igual despojamento, toda a dimensão da humanidade pecadora, a exemplo de um Deus que se entregou à morte de cruz para nos redimir da morte e mostrar que o verdadeiro amor não tem limites nem medida alguma.

sábado, 17 de maio de 2025

100 ANOS DA CANONIZAÇÃO DE SANTA TERESA DE LISIEUX

Há 100 anos, no dia 17 de maio de 1925, o Papa Pio XI celebrou a Canonização Solene de Teresa de Lisieux, como 'Santa Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face'.


'... Damos graças a Deus por hoje nos ser permitido, como Vigário do Seu Filho Unigênito, repetir e inculcar em todos vós, a partir desta Sede da Verdade e durante este rito solene, uma recordação muito salutar dos ensinamentos do Divino Mestre. Depois de os discípulos o terem interrogado sobre quem era o maior no Reino dos Céus, Ele, chamando uma criança, colocou-a no meio deles e pronunciou estas memoráveis palavras: 'Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus' (Mt 18,2).

Teresa, a nova santa, tendo absorvido vivamente esta doutrina evangélica, traduziu-a na prática da vida cotidiana; de fato, com a palavra e com o exemplo, ensinou às noviças do seu mosteiro este caminho da Infância Espiritual, e a todos através dos seus escritos, escritos que se espalharam pelo mundo e que, depois de lidos, continuam a ser lidos uma e outra vez pelo máximo benefício e alegria que dão à alma. De fato, esta jovem que desabrochou na clausura do Carmelo, e que juntou ao seu nome o do Menino Jesus, fez sobre si a sua imagem; então deve dizer-se que quem venera Teresa, venera e louva o exemplo divino que ela copiou em si mesma.

Hoje, portanto, esperamos que nas mentes dos fiéis surja o desejo de praticar esta Infância Espiritual, que consiste nisto: que tudo o que a criança pensa e faz por natureza, nós o façamos no exercício da virtude. As criancinhas não são perturbadas pelos pecados e cegas pelas paixões e gozam de paz na posse da sua inocência (e sem meios de engano ou hipocrisia exprimem sinceramente os seus pensamentos e ações, de modo que se mostram como realmente são), de modo que Teresa mostrou uma natureza mais angélica do que humana, e conquistou a simplicidade da criança, segundo a Lei da Verdade e da Justiça.

A Menina de Lisieux guardou sempre na memória o convite e as promessas do seu Divino Esposo: 'Quem for pequeno (Pv 9,4) venha a Mim. Será acolhido no meu regaço e, carregados no colo, como uma criança que a mãe consola, sereis consolados' (Is 66,12-13), de modo que Teresa, consciente da sua fraqueza, se confiava à Divina Providência para que, contando unicamente com a sua ajuda, pudesse alcançar a perfeita santidade de vida, mesmo quando passava por dificuldades, e de uma absoluta, mas alegre, abdicação da própria vontade...'

(Excertos do Sermão de Canonização de Santa Teresa de Lisieux, pelo Papa Pio XI, em 17 de maio de 1925) 

sexta-feira, 16 de maio de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (XIV)

P. 31 - Isto é muito forte, de fato. Mas como este é um caso em que muitos pretendem dar grande ênfase, de onde vem o peso que parece ter para estes em favor daqueles que até mesmo morrem em uma religião falsa?

O erro deles decorre da ideia que formam para si mesmos das chamadas boas obras e de não observarem a grande diferença que existe entre as boas ações morais naturais e as boas obras cristãs sobrenaturais, que por si só levarão o homem ao céu. Por mais corrompida que seja a nossa natureza pelo pecado, ainda assim há poucos ou nenhum da semente de Adão que não tenha certas boas disposições naturais, sendo alguns mais inclinados a uma virtude, outros a outra. Assim, alguns têm uma disposição humana e benevolente; alguns têm um coração terno e compassivo para com os outros em dificuldades; alguns são justos e retos em seus negócios; alguns são temperantes e sóbrios; alguns são brandos e pacientes; alguns também têm sentimentos naturais de devoção e reverência pelo Ser Supremo. Ora, todas essas boas disposições naturais, por si mesmas, estão longe de ser virtudes cristãs, e são totalmente incapazes de levar um homem ao céu. De fato, elas tornam aquele que as possui agradável aos homens e obtêm estima e consideração daqueles com quem vive, mas não têm qualquer utilidade perante Deus no que diz respeito à eternidade. Para nos convencermos disso, basta observar que boas disposições naturais desse tipo são encontradas em muçulmanos, judeus e pagãos, bem como entre os cristãos; no entanto, nenhum cristão pode supor que um muçulmano, judeu ou pagão, que morre nesse estado, obterá o reino dos céus por meio dessas virtudes.

Os fariseus, entre o povo de Deus, eram notáveis por muitas dessas virtudes: tinham grande veneração pela lei de Deus; faziam profissão aberta de piedade e devoção; davam grandes esmolas aos pobres; jejuavam e oravam muito; eram assíduos em todas as observâncias públicas da religião; eram notáveis por sua estrita observância do sábado e tinham aversão a toda profanação do santo nome de Deus; contudo, o próprio Jesus Cristo declara expressamente: 'Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus' (Mt 5,20). Dizem-nos que um deles subiu ao templo para orar e que era, aos olhos do mundo, um homem muito bom, levava uma vida inocente, livre dos crimes mais grosseiros que são tão comuns entre os homens, jejuava duas vezes por semana e dava o dízimo de tudo o que possuía; no entanto, o próprio Cristo nos assegura que ele foi condenado aos olhos de Deus. Tudo issonos prova que nenhuma das boas disposições da natureza acima mencionadas é capaz, por si só, de levar qualquer homem ao céu. E a razão é que 'não há outro nome dado aos homens debaixo do céu pelo qual possamos ser salvos, a não ser o nome de Jesus' (At 4,12) e, portanto, nenhuma boa obra, qualquer que seja ela, realizada apenas pelas boas disposições da natureza, pode jamais ser coroada por Deus com a felicidade eterna. 

Para obter essa gloriosa recompensa, nossas boas obras devem ser santificadas pelo sangue de Jesus e se tornarem virtudes cristãs. Ora, se examinarmos as Sagradas Escrituras, encontraremos duas condições absolutamente necessárias para tornar nossas boas obras agradáveis a Deus e conducentes à nossa salvação. Primeiro, que estejamos unidos a Jesus Cristo pela verdadeira fé, que é a raiz e o fundamento de todas as virtudes cristãs; pois São Paulo diz expressamente: 'Sem fé é impossível agradar a Deus' (Hb 11,6). Observe-se a palavra impossível; ele não diz que é difícil, mas que é impossível. Portanto, mesmo que um homem tenha tantas boas disposições naturais e seja tão caridoso, devoto e mortificado quanto os fariseus, se ele não tiver verdadeira fé em Jesus Cristo, não poderá entrar no reino dos céus. Recusaram-se a crer nele e, portanto, todas as suas obras de nada valeram para a sua salvação e, a menos que a nossa justiça exceda a deles neste ponto, como o próprio Cristo nos assegura, nunca entraremos no seu reino celestial. 

Mas mesmo a fé verdadeira, por mais necessária que seja, não basta por si só para tornar as nossas boas obras disponíveis para a salvação; pois é necessário, em segundo lugar, que estejamos em caridade com Deus, na sua amizade e graça, sem o que mesmo a fé verdadeira nunca nos salvará. Para nos convencermos disso, basta ouvirmos São Paulo, que diz: 'Ainda que eu tivesse toda a fé, a ponto de remover montanhas, ainda que distribuísse todos os meus bens para alimentar os pobres, ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse caridade, isso de nada me aproveitaria' (ICor 13,2). Assim, se um homem for pacífico, regular, inofensivo e religioso em seu caminho, caridoso para com os pobres, e o que mais lhe aprouver, ainda assim, se ele não tiver a verdadeira fé de Jesus Cristo e não estiver em caridade com Deus, todas as suas virtudes aparentes não servem para nada; é impossível para ele agradar a Deus por meio delas e se ele viver e morrer nesse estado, elas não lhe aproveitarão em nada. Por isso,  é manifesto que aqueles que morrem numa religião falsa, por mais inaceitável que seja sua conduta moral aos olhos dos homens, ainda assim, como eles não têm a verdadeira fé de Cristo, e não estão em caridade com Ele, eles não estão no caminho da salvação; pois nada pode nos valer em Cristo, senão 'a fé que opera pela caridade' (Gl 5,6).

P. 32 -  Mas sendo tudo isto tão evidente, como é que hoje em dia alguns, que se professam membros da Igreja de Cristo, parecem por em causa esta verdade, advogando continuamente a favor daqueles que não são da sua comunhão, propondo desculpas para eles e usando todos os seus esforços para provar uma possibilidade de salvação para aqueles que vivem e morrem numa falsa religião?

Este é um daqueles artifícios de que o inimigo das almas faz uso nestes tempos infelizes para promover sua própria causa e que há motivos para temer que tenha, por várias razões, encontrado seu caminho até mesmo entre aqueles que pertencem ao rebanho de Cristo, pelas seguintes razões:

(i) como eles vivem entre aqueles que praticam falsas religiões e muitas vezes têm as conexões mais íntimas com eles, eles naturalmente e muito louvavelmente contraem um amor e afeição por eles. Isso faz com que, a princípio, não queiram pensar que seus amigos deveriam estar fora do caminho da salvação. Depois, passam a desejar e esperar que não seja assim. Daí chegam a questionar o fato de ser assim e, a partir daí, é fácil agarrarem-se a qualquer pretexto para se persuadirem disso; 

(ii) princípios fundamentais podem ser encontrados em todos os lugares nestes nossos dias; uma misericórdia não pactuada, por assim dizer, é encontrada em Deus para muçulmanos, judeus e infiéis, que nunca foi ouvida entre os cristãos. Isso é revestido com o caráter ilusório de uma maneira liberal de pensar e sentimentos generosos e tornou-se moda pensar e falar dessa maneira. Ora, a moda é um persuasivo muito poderoso, contra o qual mesmo as pessoas de bem nem sempre estão à prova; e quando alguém ouve esses sentimentos todos os dias ressoando em seus ouvidos e qualquer coisa que pareça contrária a eles ser ridicularizada e condenada, ele naturalmente cede à ilusão e desvia sua mente de querer examinar a força desses sentimentos, por medo de descobrir sua falsidade. Quando, por medo de sermos desprezados, desejamos que qualquer coisa seja verdadeira, é muito fácil acreditar que ela seja verdadeira e, sem um exame mais aprofundado, qualquer demonstração sofística da razão a seu favor é adotada como conclusiva;

(iii) o interesse mundano também muitas vezes concorre com sua influência dominante para produzir o mesmo fim. Um membro da Igreja de Cristo vê seu amigo separado dela mas com poder e crédito no mundo, capaz de ser de grande interesse para ele, e sabe que, se ele abraçasse a verdadeira fé, perderia toda a sua influência e se tornaria incapaz de servi-lo. Isso o faz esfriar em desejar seu amigo ser realmente um homem de fé. Isso faz com que ele não tenha um real desejo pela sua conversão; mas o pensamento de que seu amigo não está no caminho da salvação o aflige e o sujeito então começa a desejar que ele possa ser salvo como ele se encontra em sua própria religião. Por isso, começa a esperar por isso e adota de bom grado qualquer prova que o faça pensar que sim. É verdade, de fato, que todas estas razões teriam pouca influência sobre um membro sincero da Igreja de Cristo, que compreende a sua religião e tem um sentido justo do que ela lhe ensina a este respeito; 

(iv) o grande infortúnio de muitos que adotam essas maneiras frouxas de pensar e falar é que são ignorantes dos fundamentos de sua religião e não examinam o assunto minuciosamente e, uma vez infectados pelo espírito dos tempos, eles nem estão dispostos a examinar e até mesmo consideram impróprio se qualquer amigo zeloso tentar desiludi-los; agarrando-se a esses sofismas miseráveis que são alegados em favor de sua maneira frouxa de pensar, recusam-se a abrir os olhos para a verdade ou mesmo a considerar as próprias razões que a legitimam.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)