A alma interior, abençoada por ser amada profundamente por Jesus Cristo quer, por sua vez, ser testemunha da afeição que dedica a Ele. Sabe que Ele habita no Tabernáculo. E, impulsionada pelo amor, ela se põe em oração diante dEle todas as noites para O louvar, mortificar e adorar, no silêncio do coração.
A alma interior recolhe-se em si, fecha a porta do santuário e fica completamente só em presença de Deus. A alma está verdadeiramente face a face com o seu Deus que permanece, antes de tudo, como uma presença divina nos corações. Parece à alma, e é verdade, que ela não precisa fazer mais nada senão uma coisa: amar. E assim ama por horas sem se cansar. Se pudesse, ficaria ali para sempre, para amar para sempre.
Enquanto a alma interior dialoga com Jesus, ao pé do Tabernáculo, a lembrança de suas ações do dia lhe vem à mente. Ela se pergunta se procedeu bem em tudo. Certifica-se das faltas que lhe escaparam no momento da ação. Reconhece que não disse bem aquela palavra, não executou bem determinada ação, não aceitou com alegria aquele sofrimento ou aquela contradição. E reconhece então que carece de graça aos olhos de seu Amado Salvador.
Ela se dá conta de suas imperfeições: tem algumas manchas nas mãos e no rosto. E isso lhe causa dor, principalmente por Ele, que merecia ser mais amado e melhor servido. Lágrimas de arrependimento sobem do coração aos seus olhos. Compreende que, para reparar isso, é preciso amar muito mais. E, sob o aguilhão da dor, seu amor por Jesus é vivificado, torna-se mais forte e mais ardente do que nunca; sua chama é purificadora. E assim como o fogo faz desaparecer os menores vestígios de ferrugem, o ardor da caridade apaga também as menores imperfeições. A alma interior não ignora que isso ocorre e, assim, se alegra profundamente. E ela fica imersa então em uma paz perfeita.
O que pode ser mais suave para a alma interior do que a sombra de Jesus-Hóstia? É ali que a alma deve reclinar-se; é ali que Ele a espera em silêncio. Sim, há uma sombra espiritual na Custódia, tal como também está no Tabernáculo. Mas nem todo mundo a vê e nem todos se recolhem sob o influxo dela. Mas quem nela se deleita, sabe os frutos que se colhem. No silêncio e na paz, alimenta-se a alma de um pão substancial, que é o próprio Cristo Jesus. E, pouco a pouco, a própria alma se transfigura por este alimento divino no próprio Jesus.
Sua aparência permanece a mesma ou quase a mesma, mas o que há de mais íntimo e profundo nela torna-se algo muito diferente. É Ele quem agora pensa, fala e trabalha por ela; é Ele quem vive por ela. Poderia haver algo mais suave para a alma do que se ver assim transformada no seu próprio Salvador, à sombra da Hóstia?
MARIA, NOSSA MÃE
Maria é verdadeiramente a nossa mãe. Ela nos dá vida, e a protege e defende. O seu papel materno consiste principalmente em gerar Jesus dentro de nós. Ela não pode dar a quem não está preparado e, por isso, ela mesma faz essa preparação. Esta doação externa do Menino Jesus, tantas vezes feita em favor dos santos, é apenas um símbolo desta realeza de Maria. Se não, de que serviria esse gesto, por mais terno que fosse, se fosse tão somente exterior?
Considera a Santíssima Virgem como nossa Mãe, como Mãe de cada um de nós em particular. Fale com ela como uma pessoa viva. Nesse grau de intimidade, pode haver nuances infinitas, como as que encontramos nos santos; podemos nos dirigir e pertencer a ela pelos seus vários títulos.
Maria é a sua mãe. Faça todas as suas ações sob a intercessão de sua graça, em sua amável companhia e sob sua doce influência. Pense nela sempre e renuncie às suas maneiras de ver e fazer as coisas para fazer as dela. Tente isso. Persevere. Peça a ela para lhe conceder Jesus e gerar o Bom Jesus em sua alma.
É uma excelente prática de amor nos oferecer a Deus pelos sentimentos íntimos de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem, sem maiores detalhes, pois não os conhecemos. Em momentos de fadiga, simplesmente repouse nos braços de nossa Mãe Celestial. Viva sob o olhar do Divino Mestre e de sua Mãe Santíssima. Tenha confiança nesse amor de Mãe: manifeste frequentemente a ela essa devoção.
Nosso coração, para ser forte, precisa permanecer manso. Seja suave e forte: força e doçura, ternura e firmeza não podem ser dosadas matematicamente. Isso é uma arte e tanto que a Santíssima Virgem possuiu plenamente. Ela sabia que o amor se prova pelo sacrifício e pelas obras, e que a melhor prova de amor que podemos dar a Deus e às almas é a nossa própria imolação.
Podemos ganhar tudo pela nossa devoção a Maria: modelo de perfeição e de boa Mãe! Ela não se sentia apegada a nada neste mundo. Ela foi totalmente transformada em Jesus e por Jesus, que lhe comunicou suas virtudes e a sua vida. E esta vida era uma vida totalmente escondida em Deus. Ela não via nada exceto Ele, ela não queria nada exceto Ele. Sua alma respirava por Ele a cada momento. Em síntese, ela era um só ser em Deus. Qui adhaeret Domino, inus spiritus est [Aquele que está unido a Deus, forma um mesmo espírito com Ele (1 Cor 6,17)]. Deus habitou em Maria. Maria viveu em Deus. Tudo isso era verdade. Mas tudo isso estava escondido.
ENCONTRAR JESUS NOS SEUS AMIGOS
Existem santos na terra, mesmo em nossos dias, e vós, ó Jesus, vivei neles! Eles têm olhos como os vossos olhos; a aparência deles é a vossa; o coração deles é como o vosso coração. É bom conhecer alguém que seja como vós no nosso caminho. Ficamos felizes só por vê-lo e, mais ainda, quando estamos junto dele e, muito mais, em sua intimidade! Ele fala pouco e ouve com paciência. Mas, sobretudo, ama.
Compreendemos, sentimos que é assim. Em sua companhia, percebemos a necessidade do silêncio, do recolhimento, da oração. Não está recolhido para si, mas para Vós. Fica ali, e quase não percebemos, pois ele se esquece de si mesmo. Não só nos faz pensar em Vós, mas a nos aproximarmos de Vós e em Vós sermos um. Essa é a sua graça; parece que uma virtude misteriosa irradia do seu coração para apoderar-se do nosso e, assim, arrastar-nos até o Vosso Divino Coração. Começamos a entender realmente o que seja Vos amar e como é doce Vos amar pela comunhão com os santos.
O que nos encanta também olhar para os que Vos amam é a pureza e a simplicidade desse amor: claro, límpido, brilhante. Um amor que não provém da carne, que é ignorada. Ignorada não apenas porque não é olhada, mas porque nem é vista. Ao percebermos isso, se realmente tendemos à perfeição, nos regozijamos porque esse olhar nos faz muito bem. Pois parece nos comunicar algo de sua pureza. Sentimo-nos elevados, enobrecidos, livres e espiritualizados. De repente, horizontes desconhecidos se descortinam diante de nós. O amor de Deus pode transformar tudo! Quem poderá nos dar esse amor? Quem nos poderá legar essa liberdade verdadeira? Com que fervor a esperamos pela concessão da Vossa bondade, ó meu Deus!
O ESPÍRITO DE ORAÇÃO
A oração é, segundo a definição de Santa Teresa, uma conversa de amizade íntima em que a alma dialoga sozinha com Deus e não se cansa de expressar seu amor por Aquele por quem sabe ser amada. Estar a sós com nosso Deus para dizer a Ele que o amamos: isso é a oração. Daí se tem o claro entendimento da inteligência de que nada vale sem o espírito de oração, aquela inclinação constante de cada alma, coração, inteligência e vontade para o diálogo com Deus.
Deus é pouco conhecido. E é ainda menos amado. É nesta conversa íntima que o coração adquire uma afeição cada vez mais sólida e profunda por Ele, uma afeição que cresce sem cessar. Toda a nossa ocupação deve ser essa: a de estarmos a sós na presença de Deus. Tudo nos deve falar sobre Ele: o grão de areia em que se pisa, a corrente de um riacho, a flor exposta ao nosso olhar, o canto de um pássaro, a estrela que brilha no céu à noite, um sofrimento, uma alegria, uma ordem. Tudo nos deve fazer pensar nEle, levar-nos até Ele, vê-lo em todos os lugares. Porque é dEle todas as coisas e tudo Ele tem suas mãos, envolvendo e em tudo penetrando, criando e continuando a criação. E, mais do que tudo, pela graça Ele habita no mais íntimo do nosso coração.
Ele não se contenta em nos tornar os seus filhos, mas quer viver em intimidade conosco. Ele está dentro de todos nós para que nossos corações possam amá-lo como se ama alguém que está verdadeiramente presente. E todo o nosso desejo deve ser o de penetrar nas profundezas de Deus por meio da nossa inteligência, de conhecê-lo não só pelas suas obras, mas em si mesmo, na medida do que isso seja possível, permitindo-nos, assim, no recolhimento e no silêncio, que Ele nos abra os olhos e nos fale ao coração. Deixando que nos ensine... deixando que Ele nos diga: 'Eu sou o tesouro, a misericórdia e a sabedoria. Eu sou o bem, a verdade, a vida, a beleza, a bondade e o amor. Eu sou este tudo e, ao mesmo tempo, sou a Trindade em sua intimidade mais perfeita e mais profunda, sem distinção alguma, a não ser pela relação de origem [ou seja, o Pai gera; o Filho é gerado; o Espírito Santo é quem procede; de forma que ao Pai atribui-se a criação, ao Filho atribui-se a redenção e ao Espírito Santo atribui-se a santificação].
Deixa, então, o seu coração se expandir em amor. O amor divino é uma coisa misteriosa. Não podemos dá-lo a nós mesmos, mas Deus se derrama na alma silenciosa, na alma de oração. Sem dúvida, esse amor nem sempre é consciente e sentido, mas como é real! E quer tudo dirigir e a tudo envolver; está sempre presente como uma fonte de calor, como uma língua de fogo. É aquele fogo interior de que fala São João da Cruz que, submerso na alma, a queima e a incendeia.
Devemos empreender a busca de Deus, chamá-lo, correr para Ele e dizer-lhe sem cessar, de manhã à noite: 'Onde estais, ó meu Deus? Entregai-vos a mim pois vos quero, vos chamo, vos procuro e porque preciso de Vós. Vós não sereis mais feliz por causa de mim mas eu só poderei ser feliz por meio de Vós. O meu coração foi feito para Vós e viverá inquieto enquanto não repousar em Vós. Ele sofre quando percebe que não o ama, que não o possui inteiramente'. Esse é o espírito de oração: uma troca contínua de conhecimento e de amor, face a face, num diálogo de corações.
Pode existir vida mais bela do que esta? Isso implica o alheamento do mundo e a imposição do silêncio; quem se distrai com ruídos externos não consegue ouvir a voz interior; é impossível. O silêncio provê a liberdade da alma para se abrir com Deus, falar com Ele e contemplá-lo; porque é necessário, deve ser praticado e não apenas em termos do silêncio exterior, mas também pelo silêncio interior. Silencie a sua imaginação, do que se ocupa e do que se preocupa, do que se deve fazer; desligue-se de tudo isso. Liberte o seu coração das mil ninharias inúteis que o possam oprimir.
Sacrifica tudo e então serás livre. No fundo, se não amais a vós mesmos, amareis mais e, necessariamente, amareis a Deus. O amor há de vos elevar e vos unir a Deus. Tereis uma uma vida de oração, ou seja, uma vida de intimidade com Deus, sempre mais amado e sempre melhor amado. Não busqueis outra coisa. Que a vossa vida seja uma vida de recolhimento, imitando a Santíssima Virgem. O que ela fez, durante toda vida, senão dialogar com a Santíssima Trindade? Ele viveu apenas para o seu Jesus, ela pensou apenas em seu Jesus, seu Deus e seu Filho. Era também a verdadeira Esposa do Louvor. Viveu pela oração e, pode-se dizer, que morreu em oração. Uma alma de oração se aparta, se recolhe, se desprende, se mortifica e a tudo renuncia: tudo para encontrar a Deus; por outro lado, essa alma se dá a Deus. Então, um foco de luz ilumina, uma fonte de energia se expande, uma fagulha de amor incendeia. Não se precisa buscar ou se inquietar como isso haverá de acontecer.
Pelo simples fato de possuirdes uma alma de oração, sereis contados no número daquelas almas verdadeiramente mortificadas e apostólicas, que espraiam pelo mundo inteiro um pouco mais do conhecimento de Deus, e um pouco mais de caridade.
A CARIDADE PARA COM O PRÓXIMO
Sem a bondade que a caridade nos dá, não pode haver consolo. Se vamos visitar alguém que não sofre, essa pessoa não entenderá as nossas aflições, nossas confidências serão maçantes e sentiremos que os nossos sofrimentos não foram compartilhados. Se visitarmos, porém, alguém que está sofrendo, essa pessoa nos ouvirá pela sua própria experiência; somente as almas verdadeiramente caridosas podem compreender e, assim, compartilhar as dores dos outros. Não buscam coisas que consolam mas, como diz São Paulo, fazem-se tudo por todos.
Apesar da nossa boa vontade, temos a tendência de nos fazer sofrer mutuamente, nos confrontando e nos magoando ainda que sem querer, mas de uma forma muito efetiva: in multis offendimus omnes [em muitas coisas penamos todos]. Devemos ser fortes para nos imolar pela salvação dos nossos irmãos, para carregar a nossa cruz e a cruz dos outros. Temos que ser fortes para sempre amar com todo o nosso coração os nossos irmãos e o nosso Deus. Se nos empenharmos em adquirir, por múltiplos atos de caridade, uma maior pureza e uma maior simpatia e aquela generosidade, que não se paga com palavras e nem se alimenta de ilusões mas de imolações e sacrifícios, nossos corações serão cada vez mais semelhantes ao coração da Bem-aventurada Virgem Maria.
Nós valemos, sobretudo e acima de tudo, pelo coração. 'Ao entardecer da vida, seremos examinados no amor' [São João da Cruz]. Deus nos perguntará como usamos o nosso poder para amar. Seremos medidos não pela inteligência, mas pelo amor. Se, ao longo de nossa existência, procuramos tornar o nosso coração acolhedor, preenchendo-o de mansidão e compreensão, o nosso poder de amar tornar-se-á cada vez mais forte, vigoroso e capaz de suportar as cruzes mais pesadas.
Anseie agradar a todos o tempo todo. Faça valer todas as suas pequenas obras. Reflita sempre antes de falar e aja de forma a evitar o que se chama de projeção do seu ego sobre o ego alheio, o que distorce os pontos de vista. Minimiza as fragilidades do outro, reais ou aparentes, e realce as suas qualidades. Desta forma, você vai ver tudo sob a verdade, tal como Deus vê: 'Senhor, fazei-me ver como Vós para que eu ame como Vós amais'.
Coloque nos olhos o olhar da caridade. Não se importe se, às vezes, ocorrer um pequeno erro objetivo; o dano nunca irá muito longe. Imponha sempre atentar para as boas intenções dos outros. Se errar nisso, é melhor errar assim. Toda comparação, quando sacrifica uma das partes, tende a ser odiosa. Não faça tais comparações. Coloque-se sempre numa posição inferior, sem se preocupar em medir a posição e o valor do outro.
Não discuta sabendo que nada de bom poderá resultar disso. Entenda-se com os outros sob a ótica da generosidade e do sobrenatural. As pequenas concessões podem fazer um grande bem, principalmente quando se trata de almas que tendem a um grande ideal sem ver a todas da mesma maneira. Dilatentur spatia caritatis (a caridade expande os corações) e os liberta. Busque colocar a coerência no seu pensamento e, depois, em sua vida. Quanto a se colocar na mente de X ou Y... isso não é da sua conta, só Deus pode atuar assim. Deixe isso para Ele e conserve a paz.
Os juízos da caridade são, muitas vezes, os mais próximos da verdade. O melhor seria não julgar de forma alguma, nem mesmo interiormente, ou julgar com verdadeira indulgência. Tente ver a verdade nas declarações dos outros antes de fazer qualquer reserva! Faça tão somente as críticas e observações que sejam necessárias e oportunas. E mesmo assim, certifique-se de que, com elas, tem-se a esperança de colher algum fruto, pelo menos no futuro e, caso contrário, abstenha-se de fazê-lo.
Deixe em todos a impressão de que você possui um elevado conceito sobre a pessoa. Recolha-se diante o outro, mas sem parecer assim. Coloque o outro à frente; dê espaço para o outro falar, interesse realmente pelo que diz. Nosso zelo deve ser ardente, mas iluminado. Se acharmos que ele se torna por demais emocionado, devemos moderá-lo, porque tenderá a ser cego. Esse é o conselho da razão e da experiência. Não se atenha a causas secundárias, nos atos ou nas intenções dos outros, mas atente a tudo sob o olhar de Deus, que lhe pede humildade, paciência e caridade.
Devemos sempre distinguir o objetivo do subjetivo, o exterior do interior, pois somos tentados a querer e a ver cada coisa sob o nosso ponto de vista, quando só Deus conhece a verdade que existe em tudo. O julgamento pertence somente a Deus. É isso que temos que repetir continuamente para nós mesmos a fim de compreender, ou pelo menos suportar, o que, às vezes, nos parece tão contraditório na vida cotidiana.
A alma interior nunca faz pouco caso de nada e nem de ninguém. Ela não se prende aos defeitos dos homens ou às minúcias das coisas ou, se os veem, não os expõem com uma risada irônica e perversa. Sem dúvida sorri às vezes, mas sempre com um sorriso cheio de mansidão, benevolência e graça. Normalmente se expressa com palavras calmas e ponderadas. Sentimos que está resguardada pelo olhar e pela intimidade com Deus. Assim ela atua efetivamente em todas as suas ações e conversas, em todos os seus pensamentos, em toda a sua vida. É muito importante nos libertar do que nos afasta do outro, para corrigir o nosso modo de ser. Que ressonância tem as nossa palavras e as nossas ações na alma dos outros? Essa é a grande questão que devemos responder.
SILÊNCIO E SOLIDÃO DO CORAÇÃO
Enquanto existir alguém ou alguma coisa entre a alma e Deus, a união perfeita não será possível. E somente ela nos pode dar a verdadeira paz. Temos que fazer de nós um vazio. A alma verdadeiramente apaixonada por Deus sente prazer em viver nas alturas de si mesma, em profunda solidão. Não há melancolia ou tristeza nisso, mas a convicção muito clara de que, para encontrar Deus, para falar com Ele e para amá-lo, torna-se necessário, ao mesmo tempo, isolar-se e elevar-se.
Deus só mora nas alturas ou, melhor dizendo, nas profundezas da alma. É para lá que você deve ir para encontrá-Lo. De resto, não há maneira mais segura de agradar a Deus e obter as suas graças do que se colocar nesse isolamento silencioso nas alturas.
A menos de orientação contrária e segura que venha de Deus, afaste, portanto, todas as criaturas dos seus pensamentos quando você dialoga com Jesus. Deus deseja comumente uma alma 'solitária'. Assim, depois de ter rogado pelas almas que lhe são confiadas e pedir por elas junto a Nosso Senhor, recolha-se apenas à oração. Confie ao Senhor o perdão de suas dívidas e vá em frente. É necessário que a memória de alguém não se torne um obstáculo à imposição da graça em sua alma. Peça a Jesus para participar da afeição que Ele tem por você, de tal modo que a sua afeição provenha unicamente dessa fonte e tudo terá bom termo. E remova de si tudo o que você sente que não provém de lá.
Alegra-me encontrar uma alma que, embora sofrendo com o isolamento, o aceita. Nada me pode ser mais convincente porque ainda não conheci ninguém que avance na vida interior sem passar por essa prova. É dolorosa, mas necessária. Recorde-se das palavras de Santa Teresa que disse que, para receber tais favores, Deus precisa apenas de uma alma pura e inflamada do desejo de recebê-los. Parece, então, que se tem um coração submerso em lágrimas, em profundo sofrimento, mas... a recompensa está por vir.
Uma alma que não se isola não progride. Não pode subir. Quando vejo uma alma que não sabe se recolher, digo a mim mesmo: 'Não irá em frente, pois é como um camelo carregado, mito rica de si mesma'. A alma, porém, quando se vê abandonada e ferida por todas as criaturas, é como um cervo sitiado por todos os lados e que, diante de todas as saídas bloqueadas, precipita-se em direção ao lago próximo. Diante de um sofrimento, corra para Deus.
Quando Deus quer falar a uma alma, Ele a isola de tudo e a imerge em uma profunda solidão; então, ilumina a sua inteligência com algo que ela desconhece por completo. É desse algo misterioso que todo o conhecimento explícito emergirá no devido tempo, como uma tradução para a linguagem humana das realidades divinas. Tradução que não é arbitrária, pois é controlada de dentro por algo que, sendo intangível em si mesmo, é, no entanto, muito real. Ainda assim, o melhor está ainda por vir.
PARTE II - A AÇÃO DE DEUS
O DESEJO DE PERFEIÇÃO
O desejo de perfeição deve ser constante porque, não sendo assim, os nossos esforços não se somariam. Em nossa vida haveria lacunas, hiatos e coisas talvez piores. Quando um homem está construindo uma casa e é obrigado a interromper a obra por falta de materiais ou de recursos, engana-se em pensar que basta ter de novo materiais ou recursos para retomar a construção interrompida no mesmo ponto. Não é assim, pois durante este tempo de paralisação da obra, os agentes físicos estarão intervindo, e a chuva, o vento, a neve, o gelo, o calor e o frio terão exercido sua influência negativa sobre a casa. A construção será toda afetada, eventualmente irá ruir e até mesmo as suas próprias ruínas poderão vir a desaparecer.
Isso também é o que acontece na vida espiritual, quando uma alma deixa que o desejo de perfeição seja refreado em seu coração: ela pensa que deve ser capaz de recuperar o seu impulso inicial; mas não, não é isso que ocorre, a alma se queda em um abismo porque os obstáculos entre Deus e a alma vão se acumulando. Na busca da perfeição, 'quem não avança, retrocede'. É verdade que uma alma, apesar dessas interrupções, pode recuperar o seu fervor original e reparar os seus períodos de imprudência, pois Deus é misericordioso. Mas essa é uma missão de misericórdia e, na vida espiritual, é preciso ter sabedoria e prudência. Reparai no exemplo das virgens sábias e nas virgens imprudentes: estas últimas também amavam, mas o amor delas não era constante o suficiente.
A alma que deseja realmente encontrar a Jesus, iluminada pela ação do Espírito Santo, entende que é muito importante não perder tempo em buscas vãs. Os menores atrasos constituem para ela uma angústia ou um martírio porque nunca é cedo demais para encontrar a Deus.
O DESEJO DA UNIÃO PLENA COM DEUS
Podemos pedir uma união profunda com Deus, mas com uma condição: que seja oculta. Devemos aspirar a isso. Na união com Deus, existem vários graus e vários estágios a percorrer. Mas impõe-se subir sempre. Podemos crescer constantemente nessa intimidade. Os teólogos, mesmo os mais severos, dizem que uma alma, que já recebeu alguns valores místicos, pode aspirar à sua continuação.
O que pode ser mais perfeito do que essa união, uma vez que a perfeição consiste em se retomar o seu princípio para nela encontrar a sua realização? O que poderia ser mais profundo se tudo acontece no íntimo da própria alma, naquele santuário interior onde Deus habita? O que poderia ser mais puro, visto que essa união supõe harmonia, o afastamento de tudo o que difere dAquele que é a própria santidade e uma vez que se realiza entre dois espíritos? O que poderia ser mais precioso se, por meio dela, Deus se doa à alma com todos os seus tesouros? Onde encontrar, então, mais luz, mais calor, mais energia, mais paz e mais alegria? Mihi autem adherere Deo bonum est - mas para mim o bem é estar unido a Deus (Sl 72, 28).
Sem dúvida, não convém impor-se a Deus; o que só é inútil e prejudicial. Ele convida 'de fato' a quem lhe agrada. Mas espera que nós o busquemos, que peçamos e chamemos por Ele, que preparemos a nossa alma com um amor delicado e generoso, perseverante e despojado; Ele tem o direito de o fazer. Então, esse é o nosso dever Veni Domine Jesu - Venha, Senhor Jesus: velar docemente com Ele e, com Ele, desejar sempre a paz.
O CONVITE PROVÉM DO INTERIOR DA PRÓPRIA ALMA
Mas como realmente colocar-me em Vossa Presença? Onde estais? Qual é o caminho que me leva até Vós? E ouço a Vossa resposta: 'Estou dentro de ti! Se queres me encontrar, vem até onde eu habito e, então, dar-me-ei por inteiro a ti!' Sim, 'estás dentro de mim, na parte mais íntima da minha alma!' Se eu pudesse entender essas poucas palavras! Se eu soubesse me despojar de tudo, deixar tudo, para então caminhar até Vós, aproximar-me de Vós, para alcançar pelo menos a porta do Vosso Santuário, ó Santíssima Trindade!
É DEUS QUEM ESCOLHE E ATRAI A ALMA
Sois Vós, ó Deus, que escolheis livremente as almas em quem quereis fazer morada permanente, que quereis separar de tudo; purificar, enriquecer, elevar-se, receber-Vos e viver em Vós, para que Vos contemplem de certo modo como Vós mesmos vos contemplais, para que Vos amem como Vós vos amais, para que vivam - sem desconfiança, mas realmente - a Vossa Trindade Santa: 'Não me escolhestes, mas eu vos escolhi ...'.
Sim, só Vós, ó meu Deus, sois quem começa, realiza e termina esta bela obra. É certo que Vós pedis o consentimento e a colaboração da alma para isso acontecer. Mas sois Vós quem mostrais primeiro à alma possuir no fundo de si mesma aquela pérola preciosa, aquele tesouro escondido do Evangelho, ainda desconhecido por ela da sua verdadeira riqueza.
Ela não buscava a verdadeira bem-aventurança onde realmente estava, pois vivia principalmente pelo exterior e no exterior. Não vivia pelo interior e no interior porque não sabia. 'Se conhecesses o dom de Deus!..' Mas, aos poucos, instruístes e a iluminastes para alcançar o entendimento pleno. Seus olhos, atordoados e extasiados, se abrem. Horizontes infinitos e totalmente novos passam a ser refletidos sob uma luz doce e agradável.
E embora essa mesma luz, na maioria das vezes, não seja projetada em outras realidades distintas da fé, capta melhor essas realidades para serem vistas e vividas. Vós, ó meu Deus, já não sois para a alma um ser distante, vislumbrado confusamente e pensado abstratamente, mas o Deus vivo e presente, a Verdade, a Beleza, a Bondade perfeita e concreta, a Realidade plena. A alma então entende, de uma maneira sensível, que Vós sois tudo e que não há nada para ela fora de Vós e a única e verdadeira riqueza é Vos possuir por completo. Então passa a Vos desejar com fervor ardente e irresistível que, ao mesmo tempo, a assombra e a enleva.
PRESENÇAS E AUSÊNCIAS DE DEUS
A vida espiritual, exceto em sua última fase, desenvolve-se assim: nós a perdemos, procuramos de novo e a reencontramos: 'Vós estais aí, meu Deus; fico feliz em saber que Vós estais presente'. Sim, Deus trabalha assim. Ele vem e depois se afasta de nós para ser procurado novamente. Ah, quando você vai compreender que se deve ir até Ele apenas pelo que Ele é e não pela alegria que a sua presença pode nos proporcionar?
Devemos receber as graças de Deus sem muito entusiasmo natural, para não nos sentirmos abatidos quando a graça sensível diminuir. Fiquemos sempre tranquilos porque Deus não age exceto na serenidade. Quando Jesus se esconde, devemos buscá-lo de todo o coração. Não podemos viver sem Ele e, no entanto, nem sempre podemos estar com Ele. Devemos, pois, procurá-lo e procurá-lo sem tréguas.
Nós vamos encontrar Jesus naquela alma escurecida que iluminamos, naquela alma entristecida que consolamos, naquela alma abatida que encorajamos ou ainda naquela alma abençoada de Deus que admiramos e invejamos. Também o encontraremos no Tabernáculo, onde se esconde e onde se doa; nós o encontraremos em nós mesmos, bem no fundo de nosso coração. Ali Ele está de forma misteriosa, que não sendo uma presença eucarística é, no entanto, muito real. No fundo, a maneira de encontrar Jesus, em todos os lugares, é levá-lo sempre conosco, quer o sintamos ou não.
Não se canse de buscar a Deus. Diga a Ele para frequentemente se esconder bem no seu íntimo para que você possa perceber, sem o som das palavras, que Ele está ali e ali Ele está por você. Permita que ilumine, fortifique e console a sua alma. Peça a Ele para guiar a sua vida do íntimo em que se encontra, oculto e revelado ao mesmo tempo. Seu sofrimento vem do que você não vê. Faça com frequência esta oração dos cegos: 'Senhor, faça que eu veja!'. E assim, por meios que desconhecemos, uma intervenção sobre os seus defeitos, uma leitura ou uma palavra de Deus irá iluminá-lo e dar-lhe a luz que você procura.
O que transparece como obstáculo é o medo. Por humildade ou por timidez, temos medo de Deus. Nada vemos nEle senão a infinita grandeza, a onipotência e a majestade, e tendemos a esquecer a bondade, a misericórdia, a infinita condescendência daquele Deus que se fez homem por amor a nós. Ele disse: 'Venham todos a mim' (Mt 11,28) e tememos ir até Ele. Ele como que nos revela: 'Eis aqui o Coração que tanto amou os homens', e tememos ser amados por Ele. Modicae fidei! [homens de pouca fé!].
NECESSIDADE DAS PURIFICAÇÕES PASSIVAS
Para amar a Deus e para amar as almas de maneira adequada, precisamos de um coração puro e desinteressado. Pureza dos sentidos e pureza de espírito e de intenção: essas são as duas condições e também os dois frutos da verdadeira afeição.
O amor que Deus infunde em nossas almas é totalmente espiritual; é uma participação do seu Espírito. Uma vez que Deus nos fez compostos de corpo e alma, de matéria e espírito, toda afeição sobrenatural deve normalmente afetar nossa sensibilidade. Não é só a alma que ama, é todo o homem. E se o pecado original não viesse perturbar a ordem estabelecida entre as nossas faculdades, não teríamos que nos preocupar em regular nossa sensibilidade de acordo com a lei da razão e da fé. Esse ordenamento ocorreria por si mesmo e muito bem.
Mas, uma vez que a ordem foi perturbada, a primeira tarefa que se impõe é restaurá-la. Visto que nossos sentidos buscam satisfação independentemente da razão e, muitas vezes contra ela, eles devem ser disciplinados primeiro por esforço paciente e perseverante. Eles são servos, não senhores. Eles têm que informar e executar, e não lhes cabe comandar e muito menos perturbar. Todas as vezes que eles tendem a se afastar do caminho certo, temos que trazê-los de volta, de bom grado ou à força. E a melhor maneira de domesticá-los é privando-os: no início, eles murmuram, grunhem e até buscam se revoltar. Mas se a vontade permanece firme, termina a insubordinação. Aos poucos, eles tendem a se calar e a obedecer. Em troca, de vez em quando, a vontade permite que chegue até eles, na medida do possível, um pouco daquela felicidade com que o amor divino a inebria e isso é, para os sentidos, uma prova antecipada das alegrias mais puras que o Céu lhes reserva após a ressurreição.
Mas a graça continua a sua obra, atuando de fora para dentro, dos sentidos para a memória e, sobretudo, para a imaginação. A luta torna-se mais difícil e também mais demorada. O inimigo que temos de derrotar é um inimigo de incrível agilidade e mobilidade. No momento em que julgamos que o temos finalmente dominado, ele foge do controle. E, no entanto, é da maior importância submetê-lo ao regime do amor. Em particular, cabe à imaginação dispor os materiais necessários com os quais o nosso espírito possa realizar todas as suas obras. Por sua vez, o espírito os utilizará para dar relevo, cor e vida aos seus pensamentos, aos seus desejos, às suas vontades. As ordenações do espírito passam pela imaginação e cabe a ela colocar em movimento todas as faculdades de sua execução.
Nunca é demais dizer o quanto é importante para a alma que deseja servir a Deus, tanto interna como externamente, disciplinar este poder precioso mas terrível, submetendo-o a mortificações. É necessário, portanto, que a imaginação também aprenda - sobretudo ela - não a preceder mas a seguir, não a mandar mas a obedecer, a não buscar o que lhe agrada, mas a se contentar com o que lhe é dado. Se a Vossa graça, ó meu Deus, visando purificá-la mais profundamente, a faz mergulhar longos dias em amargura, sofrimento e trevas, ela deve aceitar esta provação como um justo castigo por seus desvios, como um redirecionamento necessário para os seus caminhos oblíquos e tortuosos, e como uma preparação essencial para o papel que doravante terá de desempenhar sob as ordens do vosso amor. Esta educação divina durará o tempo que for necessário para que os fins que Deus busca sejam assegurados. Mas, por outro lado, quanto enleio para a alma interior quando, uma vez concluída esta tarefa, se vê libertada finalmente da inoportuna - para não dizer louca - sujeição à imaginação, e torna-se então rainha em sua própria casa, e ali reina obedecida, respeitada, amada!
Mesmo quando a sensibilidade estiver bem submetida às ordens do amor de Deus, não estará proferida a última palavra de sua obra purificadora. O trabalho mais necessário ainda não foi feito ou, pelo menos, ainda não terminou. Pois a desordem entrou no homem e se estabeleceu nele por meio das faculdades superiores e será, portanto, necessário que a graça se eleve novamente àquelas alturas, para penetrar nas profundezas humanas, para reparar o que o pecado destruiu e para restabelecer em harmonia o que era divisão e confronto. Em vez de se tornar a medida das coisas, a inteligência terá que se adaptar a elas. Ela deverá ingressar na escola das realidades divinas e aprender com as mentes mais dóceis e penetrantes que as estudaram ao longo dos séculos, num esforço profundo de vê-las como Deus que as criou as vê, isto é, de dentro! Deve sobretudo submeter-se à Vossa própria escola, ó meu Deus, Vós que sois a Verdade eterna.
O que pressupõe conhecer sobretudo é Vos conhecer. Mas ninguém Vos conhece como Vós mesmo e, assim, só Vós podeis dizer realmente quem sois. É claro que as as criaturas falam muito sobre Vós mas como vão revelar o que, no fundo, ignoram, ou seja, a Vossa vida íntima? Também é verdade que, por Vossa bondade, dignastes enviar-nos os Vossos profetas e o Vosso próprio Filho amado para que Vos explicasse. Mas era absolutamente necessário que Ele e todos os profetas usassem palavras humanas para cumprir tal missão sagrada, pois falavam então como homens se dirigindo a outros homens. Como explicitar o Ser Infinito que sois por algumas palavras da pobre linguagem humana! Vós as extrapolam em muito e, assim, o que elas nos falam de Vós, longe de suprir os nossos anelos, apenas os excitam e os avivam cada vez mais.
O ideal seria, então, que pudéssemos entrar na Vossa escola e nos tornássemos Vossos discípulos diretos, uma vez que quereis ser o nosso Mestre. Mas, para tal, impõe-se uma rigorosa purificação de nossas faculdades superiores, até o mais íntimo de nossa alma. Porque sois, meu Deus, puro espírito e espírito de santidade. E para ser admitido na Vossa escola, para Vos ouvir, para Vos compreender, para gostar de Vós, temos também de ser criaturas puramente espirituais. Entretanto, uma vez que a nossa alma esteve mergulhada por tanto tempo na matéria, revestiu-se de todas as suas formas. E, assim, já não sabe mais compreender e gostar, senão de acordo com aquilo que está na ordem das coisas sujeitas aos sentidos. E de tanto viver sob o sensível, esqueceu-se de sua própria vida que é a vida espiritual. É necessário, então, que a infusão do Vosso amor possa purificá-la e então restaurá-lo por dentro. Obra difícil e de transformação dolorosa, mas preciosa e necessária.
DEUS CRIA O VAZIO NA ALMA
Vós, ó meu Deus, separais progressivamente a alma de tudo o que não vem de Vós. Em torno dela e em si mesma, cria-se o vazio e nada além de Vós passa a dizer alguma coisa para ela. Os seus próprios exercícios de piedade são desprovidos de qualquer encanto. Eles por si só não a satisfazem mais. Ao perceber isso, a alma se inquieta mas continua a realizá-los, embora com pouca satisfação e pouco sucesso, e não os abandona por crer que, assim, ela pode pensar e se aproximar de Vós.
Pensar em Vós e se aproximar de Vós passa a ase uma experiência dolorosa e deliciosa para a alma. No íntimo, Vós exerceis sobre ela uma atração misteriosa da qual ela só se encontra vagamente consciente e que não permite que se dedique mais às suas orações como antes. Isso porque agora o Vosso amor a envolve suavemente e a dispõe num recolhimento totalmente novo para ela. Quão feliz ela se sente, apesar de sua inquietação! Assim ela gostaria de permanecer sempre sob esse misterioso encantamento, cuja origem e cuja natureza mal acabou de compreender.
Se pudesse, certamente diria: Domine bonum est nos hic esse (Mt 17,40) - 'Senhor, é bom estarmos aqui'. E assim, quando o encanto se desfaz, seu maior desejo é desfrutá-lo novamente. Vós, porém, geralmente não concedeis de imediato tal desejo. Entretanto, se a alma souber salvaguardar-se nesse recolhimento interior, Vós não tardareis a visitá-la outra vez. Então volvereis mais frequentemente e cada vez permanecereis mais tempo. Ah se pudésseis ficar o tempo todo...
Mas por que não? Não é esse o Vosso desejo, ó meu Deus, e o fim que perseguis constantemente, apesar das inquietações e das resistências mais ou menos conscientes da alma? Você sois a felicidade plena e quereis que toda criatura seja capaz de comungar o mais cedo possível das Vossas bem-aventuranças! Esperar pelo fim da vida é esperar por demais o Vosso amor. E é por isso que o Vosso amor invade aos poucos a alma fiel. Começa por apreender a sua vontade, o poder de amar e, depois, todas as demais faculdades, para uni-las numa coisa só ou pelo menos para não permitir que a perturbem. E se for necessário para os seus desígnios, busca imobilizar os próprios sentidos para que a alma, por causa do que bem espiritual maior que possui, possa doar-se em todo o seu amor.
Vós restituireis a harmonia mais tarde, quando tiverdes feito a conquista total e quando a alma e Vós se tornarem dois seres, unidos em um único espírito e em um único amor. Esta será a hora da união perfeita e permanente. Vós vivereis no íntimo da alma e a alma viverá em Vós com a sua própria vida. E depois disso não haverá mais nada que não seja o Céu.
DEUS ABRASA A ALMA
O amor de Deus é uma chama ardente. Antes de transformar a alma, Deus a desfaz, queima, consome. Tudo o que é contrário a Ele deve desaparecer. Este período da vida interior é particularmente doloroso. É um momento de purificação: a alma é lançada no cadinho; todas as suas escórias sobem do fundo à superfície e então a alma vê toda a sua fealdade e se ressente do sabor cruel de tanta amargura. Às vezes, fica com a impressão de que essas manchas são inerentes a si mesma e que nunca poderá se ver livre delas. Mas, no fundo, a alma é bela porque é pura, e a percepção desse mal a horroriza.
Para quem simplesmente visse o efeito dessas duras tribulações, pareceria ver apenas a alma calcinada por este fogo misterioso, tenebroso, sem forma e sem beleza, que a desfigura e deforma. Todos os pensamentos que pouco a pouco tomaram conta de sua mente e moldaram sua imagem, todos os afetos que se infiltraram em seu coração e o tornaram semelhante ao seu ser, todas as lembranças que permearam sua memória até então, desaparecem por completo. Durante a provação, tudo foi ceifado, arrancado e queimado.
A alma não é mais a mesma e, nesse sentido, torna-se irreconhecível. Ficou deformada por uma fealdade que resulta da privação de uma falsa beleza. Mas, na verdade, foi embelezada pela verdadeira beleza, por privar então da própria Beleza de Deus. Apenas o que é substituído foi destruído. E a alma interior, despojada de tudo o que formava a sua aparente riqueza, começou a se revestir da própria Beleza de Deus.
Para unir, o amor de Deus deve, antes de tudo, separar. E aqui não se trata mais de simplesmente afrouxar os laços que uniam a alma ao seu corpo, mas de penetrar no próprio íntimo da alma para libertar o que há de mais perfeito nela: 'o espírito', para que a união com Deus, que é Espírito, possa ser plenamente realizada. Segue-se então uma angústia dolorosa, deliciosa e inexprimível. É uma nova vida que se insinua nas profundezas da alma e que muda tudo nela. A alma não é mais reconhecida e se torna uma outra alma, embora ainda seja a mesma. A impressão da morte é tão vívida que clama por socorro, sabendo, entretanto, que não vai ser ouvida. Precisaria do céu para isso; só que ainda não chegou a sua hora.
DEUS FAZ A ALMA RECAIR À MISÉRIA ORIGINAL
Às vezes, ó meu Deus, depois de ter elevado a Vós a alma interior e feito com que se deleite das alegrias da Vossa intimidade, com leveza e mansidão, a faz abandonar de novo, e repentinamente, no poço da sua miséria natural. Então a escuridão a envolve, o frio toma conta dela e a paralisa, e ondas de amargura sobem aos seus lábios. E assim parece que toda a sua felicidade nada mais era do que um sonho. Ela se sente mais 'pecadora' do que nunca. Tudo nela parece sombrio e maculado. Nada é puro aos seus olhos, nem o que é, nem o que faz. Torna-se então um oceano de tristeza.
Quem sabe se nunca mais conhecerá a alegria dos dias felizes? Eles estão tão distantes e, em vez disso, o mal está aí, tão real, tão universal, tão tenaz e tão profundo! É verdade que ainda possui uma leve esperança no mais íntimo da alma, mas esta é tão tênue que ela mesma dificilmente ousa acreditar nela.
ACEITAR A PROVAÇÃO EM PAZ
O sofrimento que provém de suas tentações será útil a partir do momento em que você rejeitar, por um um ato de vontade própria, tudo o que manifestar em você contra Deus. Caridade e egoísmo lutam um contra o outro. E a sua alma é o seu campo de batalha consciente. É daí que vem a dor, que é um efeito, e não uma causa. É o resgate necessário para a purificação. Mas tenha ciência então que a união, pelo menos das duas vontades, acabou e que isso incorre em uma ruptura. E que essa união é tudo para você.
Aceita aquele estado que Deus deseja para você, entre o céu e a terra. Renuncie cada vez mais às alegrias deste mundo e aguarde em paz, com confiança e com alegria pelas tão consoladoras visitas de Jesus. Porque virá o Calvário. Essa é a rigorosa lei do progresso espiritual; esse é o caminho da verdadeira união.
Portanto, permaneça nele, custe o que custar; nunca o abandone, por nenhum pretexto. Espera, espera e ame: 'Porventura não era necessário que Cristo sofresse essas coisas e assim entrasse na sua glória?' (Lc 24, 26). O discípulo não pode ser maior que o Mestre. Pode acontecer que você se sinta muito distante de Deus e, na verdade, esteja realmente mais próximo dEle.
Não, você não está fora do seu caminho. Ao contrário: você caminha por ele, embora não o veja. Você tem consciência apenas da escuridão e da amargura. Mas Deus faz seu dever de casa e é a luz dEle que lhe cega. É a sua doçura que lhe faz sentir essa impressão de cinzas e fel. Deus está dentro de você e lhe fortalece. Acredite nisso com simplicidade e humildade. Para onde tudo isso está lhe conduzindo? Para Deus. Seja paciente. Esconda a sua provação.
Se puder, sorria exteriormente e esteja convencido de que ninguém pode intervir nisso. Deus está trabalhando, e você tem que deixar que Ele realize o seu trabalho. Mesmo porque ninguém o deterá. Você pode apenas apressar a ação dele, amando-o e dizendo: Adveniat regnum tuum; fiat voluntas tua - 'Venha a nós o Vosso reino e seja feita a Vossa vontade'.
Creia, uma vez mais, que este é um processo de amor. Que tende a lhe humilhar, purificar no sentido espiritual e universal da palavra, fortalecer e lhe temperar. Você sofrerá tanto mais quanto maior for a tarefa a realizar e quanto mais completa essa for realizada; mas tudo isso será para a sua verdadeira felicidade. Você ficará feliz quando já não for mais você mesmo e quando tudo for mudado em você por obra dEle. É preciso orar, santificar e esperar.
Não é adequado analisar e reanalisar suas próprias provações. Vale mil vezes mais aceitar de uma vez, orar e se entregar direta e imediatamente a Deus. Temos que nos voltar francamente para Deus e nos entregar totalmente a Ele, apesar da relutância humana. Reze sempre, medite bem no fundo do seu coração; contemple-se no seu íntimo. Mas o que o irá iluminar de verdade e acima de tudo será a sua oração confiante.
CONTEMPLAÇÃO FELIZ OU CONTEMPLAÇÃO DOLOROSA
Pode haver uma contemplação feliz ou uma contemplação dolorosa e, às vezes, essa segunda pode ocultar parcialmente os fenômenos místicos. Mas parece que, mesmo na contemplação dolorosa, há consciência da união, pelo menos no íntimo maior da alma, porque sem isso os santos não poderiam suportar o peso do sofrimento que Deus lhes impõe.
Parece não haver santo canonizado em que não se tenha reconhecido esta ação mística de Deus. Pode-se desejar a ação direta dos dons do Espírito Santo, no sentido de que obrigam a alma ao exercício máximo da caridade. Muitos autores alertam acertadamente contra a sensibilidade às consolações espirituais, mas consolações superiores não devem ser incluídas nesta desconfiança geral, desde que não se apegue demasiado nelas.
É possível viver habitualmente na presença de Deus sem que os dons do Espírito Santo se movam conscientemente como tal e sem que seja necessário que tenhamos luzes especiais e estejamos conscientes delas. Mas o inverso também pode ser verdadeiro. Eu diria então que é possível ser contemplativo sem ser muito virtuoso e que é possível ser virtuoso mesmo sem ser contemplativo. Depende de tantas coisas... Das faculdades alcançadas pela ação de Deus, das reações do temperamento, do caráter, da vontade...
PALAVRAS DE DEUS À ALMA
Parece-me, ó meu Deus, que mais de uma vez agradou ao Vosso amor falar à minha alma. E geralmente isso acontece nos momentos em que eu menos pensava em Vós. E então, no fundo do meu coração, ouvia espiritualmente que uma voz doce e forte, precisa e penetrante, me dizia uma palavra; sim, às vezes, apenas uma palavra. E a minha alma, surpresa, inquieta e feliz ao mesmo tempo, sentia-se transformada, por ser ou por cumprir o que aquela palavra lhe dizia: 'Ame; escute; cale-se; siga-me; recolha-se ao mais íntimo de sua alma; confie em Mim que sou Vosso Pai; ofereça-se a Mim e Eu estarei com você; refugie-se em Mim; me leve por inteiro a todas as almas'.
Ó palavra de Deus, como sois doce para o coração amoroso! Como sois forte também! Realizais tudo o que podeis significar. E tudo santificais!
ÊXTASE E ORAÇÃO
Enquanto não concederes essa graça à alma, não importa o quão íntima ela possa estar, ela vai perceber que não está plenamente integrada contigo. Parece existir assim um certo mal estar espiritual, uma espécie de insegurança. Ela não gostaria de ser perturbada em sua doce ocupação. Mas isso poderia acontecer e ela teme isso. E o seu medo é bem fundamentado. Todos os laços que a prendem longe de ti ainda não foram quebrados. Ela ainda mantém uma certa comunicação com o mundo sensível que nada lhe pode dar e que, pelo contrário, poderia chamá-la para si, arruinando tudo. Sem dúvida esse medo é débil, surdo e quase imperceptível, mas existe e faz sofrer a alma, é um estorvo. Na verdade, a alma não pode elevar-se livremente para te alcançar, ainda que se sinta movida por um desejo muito forte de fazê-lo.
Mas no momento em que te dignas desligar-se por completo, ainda que apenas por um instante, que alegria não teria a alma de se encontrar a sós contigo, quase face a face, e poder contar-te sem palavras tudo o que vivencia no íntimo do coração há tanto tempo! E agir como se não soubesses nada; falar de tudo e se abrir totalmente contigo. Pai, vê como tudo é Vosso, como tudo é feito para Vós! Não existem mais criaturas que possam obstruir o Vosso olhar ou ferir o Vosso coração. Não há mais nenhum obstáculo entre nós. Eu Vos falo e Vós me ouvis. Eu Vos olho e Vós me contemplais com ternura. Ninguém nos ouve, ninguém nos vê; ninguém sabe que estou aqui em Vossa presença. Os anjos podem ver e os santos podem ver, mas até eles não poderão saber dessa nossa intimidade mais do que quereis lhes revelar. Além disso, o olhar deles não é indiscreto; pelo contrário, estão felizes vendo o que veem. E, se necessário, eles vão enlevar a minha alma ainda mais para Vos louvar, abençoar e amar.
Ó meu Deus, uma vez que a oração nada mais é do que a explicação de um desejo, não é possível explicar bem a Vós o nosso desejo de Vos amar, e só é possível orar com perfeição em êxtase. Sim, meu Deus, que nossos corações sejam incensados pelo Vosso amor! Que, para Vos amar livremente e sem obstáculos, permiti que a nossa alma possa deixar o nosso corpo e se refugiar em Vós como fonte de amor. Que o meu eu morra então totalmente aí para que eu não possa mais viver a não ser em Vós e para Vós! Por tão grande amor, as palavras são pequenas demais para Vos delimitar e assim Vós as reprimis, são débeis demais para Vos conceber e é por isso que Vós as aniquilais! Mas, ainda assim, refletem a Vossa glória, uma vez que proclamam, na sua impotência, a Vossa grandeza e o Vosso poder.
Ó amor de Deus, vinde e completeis em mim a Vossa obra: abrasai-me, envolvei-me, consumi-me, arrebatai-me! Eu Vos ofereço todo o meu ser, o mais íntimo de mim, para todo o sempre, e com um infinito amém!
GRAÇAS MÍSTICAS E ATIVIDADE EXTERIOR
Antes mesmo de conceber as graças mais elevadas da oração, Deus começa absorvendo todas as atividades exteriores da alma. Ocorre um processo inverso. Deus nos faz distrair das criaturas e das nossas ocupações assim como, infelizmente, nossas ocupações e as criaturas habitualmente nos distraem de Deus. Quando o nosso modo de vida não permite esse estado de absorção, Deus busca alguma compensação e age, assim, pelo menos durante a oração. Exemplo é o caso de Santa Catarina de Ricci: nem a santa e nem as suas superioras perceberam o que estava passando com ela, pois tratava-se de uma união completa.
Em seguida, a alma padece de um estado de desconforto. A ação de Deus interfere na ação da alma sem a suprimir inteiramente. E, finalmente, Deus, o senhor absoluto da alma, devolve a ela a posse completa e perfeita das suas faculdades, sem fazê-la excluída da união divina. Produzem-se então obras extraordinárias e desproporcionais às forças humanas, como as fundações criadas por Santa Teresa ou pela Venerável Maria da Encarnação.
A alma totalmente entregue a Deus e ao serviço dos outros vive, ao mesmo tempo e sem esforço, em dois mundos diferentes. Quando nos casos de união total ocorre o êxtase, não se tem mais o uso dos sentidos. Mas que não se confunda levitação ou a rigidez dos membros com êxtase, uma vez que esses fenômenos não são necessários. Pode ocorrer um alheamento quase completo dos sentidos sem que os outros percebam. Pode-se acreditar até mesmo num certo entorpecimento, porque a vida física está diluída e os sentidos encontram-se fragilizados e contidos, de modo que até os mais próximos podem não aperceber de nada.
Este estado pode durar pouco tempo ou, com a recuperação alternada das faculdades, pode durar muito tempo. Mas o ato de união não pode durar indefinidamente na terra; a união é atual e constitui um estado que supõe um ato infundido do amor de Deus. Podemos compará-lo a um riacho subterrâneo ou ao calor de brasas muito vivas sob cinzas. De vez em quando, feixes de chamas emanam desta fornalha mas, se as chamas fossem mantidas continuamente, a própria vida não poderia resistir a elas. São João da Cruz assim o diz expressamente. Porém, a fornalha é fogo vivo e sua irradiação pode ser imensa.
OS 'TEMPOS MENORES' DA UNIÃO E AS NOVAS BUSCAS DE DEUS
A intimidade consciente da alma com Deus não se mantém constantemente no seu grau mais elevado. Com efeito, embora em certos momentos esteja muito viva, geralmente tende a ser bastante latente, oclusa, semiconsciente. Em uma palavra, ainda não é perfeita. Nestes longos momentos que poderiam ser chamados de 'tempos menores' da vida interior, a união ainda continua existindo. Deus ainda é o bem da alma e a alma ainda é o bem de Deus. Deus não duvida da alma, assim como a alma não duvida de Deus. Em ambos os lados existe ainda a fidelidade mais sensível.
E, no entanto, às vezes Deus parece se afastar. Se alguém perguntar ao interior da alma: 'Onde está o teu Deus? Ele não te abandonou?', ela responderia com toda a sinceridade do seu coração: 'É verdade que já não sinto mais tanto a sua presença comigo, mas ele não me abandonou. Na verdade, sei onde está e o que faz: pastoreia entre lírios'. Pois Jesus tem outras ovelhas que ama e que cuida. E eles constituem o seu rebanho.
Mas Deus continua a se ocultar e as horas vão passando. A esperança persiste viva em nossos corações. Uma vez que Deus se esconde, não há que se procurá-lo? E se Ele continua se escondendo, como é seu direito, não devemos buscá-lo sempre e continuamente como nosso dever? A alma interior deve então, mais do que tudo, proclamar muito alto e sinceramente, apesar disso lhe custar tanto, o direito de seu Deus dedicar-se a ela quando e como quiser.
Há bem pouco bastaria à alma recolher-se, e mirar-se no íntimo de si mesma, para aí encontrar o seu Deus e deleitar-se da paz e da alegria da sua presença e da sua posse. Mas eis que agora, não importa o quanto faça para retomar aquela intimidade interior que é como a fonte do repouso para estar com 'Aquele a quem o seu coração ama', ela não o possui e não o encontra, porque Deus assim o quer. Momentos dolorosos da vida interior, em que parece que as graças de outrora nada mais foram do que um raio que se desfez na noite e que nunca mais voltará a brilhar! Se a força divina não a sustentasse sem que ela soubesse e se a paz, uma paz profunda, não desse a certeza de que está tudo bem mesmo assim, a alma interior tenderia a abandonar a sua busca e prostraria desanimada. Mas não é isso que devemos fazer: devemos perseverar sempre!
A alma interior não pode resignar-se à ausência de Deus. Ela o procurou onde o encontraria, onde Ele se dignava a dar-se a ela, isto é, no íntimo de si mesma, mas foi em vão. O que fazer então? Ficar na inação estéril não é possível. O amor que não age não é verdadeiro. Se o Amado não vem à alma, a alma deve ir a Ele. Levantar-me-ei e andarei pela cidade, procurando o Amado da minha alma. Mas onde pode estar? Qual direção tomar para encontrá-lo? Ele não pode estar senão nesta cidade que é a sua, a cidade de Deus: 'Se percorrêssemos toda a cidade, se visitássemos todas as praças e todas as ruas da cidade, uma a uma, por acaso não o encontraríamos?'
E é assim que começa aquela busca incessante. A alma interior busca encontrar Aquele a quem ama no Céu, mais do que em qualquer outro lugar, pois é lá que Ele mora. E lá descortina tudo e lá percorre por todos os caminhos. Ela implora aos anjos e aos santos, e especialmente à Bem-aventurada Virgem Maria, que os façam encontrar o seu Deus. E todos a ouvem com gentileza e se solidarizam com ela. Eles a encorajam a perseverar. Mas, aparentemente, todos seguem uma ordem comum para se calarem. O silêncio deles é como um véu que envolve e recobre o Santo dos Santos. A alma compreende, então, que, apesar de seu forte desejo e insistência, esse véu não será desvelado. Vós sois um Deus oculto, ó meu Deus! Só Vós podeis iluminar as trevas e revelar-se à alma que o ama. Quando o fareis?
A alma então se volta para as almas do Purgatório. Talvez elas possam lhe dizer onde está o seu Deus e como fazer para encontrá-lo. Mas, infelizmente, também não tem melhor sorte com elas. 'O mal que padeces' - respondem estas almas - 'é o mesmo que sofremos. Não nos preocuparíamos com o fogo que nos atormenta se possuíssemos Aquele que também amamos. O que aumenta a nossa dor, tal como aumenta a sua, é que não sabemos quando esse Deus, tão justo e tão bom mesmo em seus rigores, se dignará a se mostrar finalmente a nós. Parece-nos que esse 'mal de amor' nunca vai ter fim. Pobre alma, que busca se acolher em quem lhe é ainda mais infeliz! Se o nosso Deus dignar-se a lhe devolver a alegria da sua doce presença, lembre-se de nós e suplique a Ele que venha nos encontrar também o mais rápido possível'.
É preciso, portanto, voltar à terra e bater à porta daquelas almas que sabemos estar mais perto de Deus. Normalmente elas também se escondem. Mais que tudo, elas escondem cuidadosamente o segredo de suas vidas, mas percebemos quem são. Meio que adivinhamos quem são. E, discretamente, com receio de que nos afastem, as interrogamos: 'Como descobrir onde Deus se esconde? Como atrair sobre nós a presença de um Deus tão bom? Como podemos manter a sua presença em nós? Como trazê-lo à nossa volta se está longe? Certamente há uma forma de acessá-lo e conquistá-lo. Quem poderia e gostaria de me ensinar isso? Queria tanto aprender e pagaria tudo para saber como! Quem se sensibilizaria por mim? Quem iluminaria o meu caminho, quem compartilharia esse segredo, quem me daria todas as respostas? Quem me permitiria, enfim, buscar e finalmente encontrar o meu Deus?' Todas essas perguntas permaneceriam sem resposta. Pois mesmo as almas mais santas seriam impotentes enquanto Deus não quiser fazer este encontro. E a alma desolada continuaria assim repetindo o grito doloroso do seu coração: 'Procurei por Deus e não o encontrei'.
Deus quer que a alma interior se submeta humildemente, como uma criança, àqueles que o representam legitimamente nesta terra. Ele permanece esperando por este último ato para recompensar todos os atos da alma de uma só vez. Por outro lado, a Deus agrada intervir quando toda a esperança parece perdida e, assim, manifestar a sua onipotência. Quer que tenhamos bem em conta que Ele é livre para dar quando e como quiser. A alma não ignora isso. E assim deixa ao seu Deus o cuidado e a hora de manifestar a sua recompensa. Enquanto isso, continua a sua caminhada e a sua busca incessante, até que o seu desejo seja enfim concedido. E, de repente, a alma encontra-se face a face diante de Deus. E, tal como outrora Maria Madalena, ouve também ser chamada pelo nome e, então, não é capaz de exclamar nada mais do que uma única frase: 'Meu Deus!'
Que alegria então, meu Deus, quando uma alma que Vos buscou por tanto tempo e com tanta dor, finalmente Vos encontrasse! Se fosse dada a pensar racionalmente, nem seria capaz de acreditar em tal coisa! Mas nem tem tempo para isso. A presença de Deus a imobiliza e, de certa forma, também o seu próprio pensamento. Deus aí está. O olhar da alma está posto em Deus, somente em Deus, fixado em Deus e por Deus cativado. Ó como é bom e suave contemplar-Vos, ó meu Deus, 'beleza sempre antiga e sempre eterna'! E, Vos contemplar, ainda que de forma imperfeita e velada no desterro dessa vida, já não é Vos possuir? É isso que experimenta a alma bem aventurada quando Deus se digna a aparecer a ela: parece que, verdadeiramente, contemplar-Vos já é possuir-Vos! E isso não é uma ilusão do seu coração.
O DESEJO TORTURANTE DE DEUS
No início da vida interior, o desejo da alma por Deus ainda é tênue. É um desejo um tanto débil, quase imperceptível. A alma se sente com um desconforto misterioso e suave que não consegue especificar. Ela se sente afetada no seu íntimo e se questiona, pois não compreende claramente. O amor de Deus está trabalhando em seu coração, mas como um fogo que arde sob as cinzas. De vez em quando, uma faísca irrompe e um impulso eleva a alma até Deus. Então tudo se acalma. As sombras envolvem mais uma vez as nervuras da alma, mas sem interromper o fogo que continua latente, devagar, mas ardente. O desejo de Deus aumenta e, aos poucos, vai invadindo toda a alma. E não tarda em se manifestar novamente.
Enquanto isso, esse desejo de Deus não fica inativo. Se pudéssemos penetrar nesta alma, veríamos que este desejo é quem inspira, dirige e vivifica tudo nela. A alma se volta para Deus sem descanso. Ela sempre procura por isso, com uma fome dolorosa, com uma sede excruciante. Como se isso fosse uma doença misteriosa que se alastra sem controle e sem cura, em todos os momentos e que não permite repouso nem de dia e nem de noite. Mesmo quando a alma parece distraída de sua dor por ocupações externas, ela a sente latente no mais íntimo de si mesma.
A ferida é profunda, a ferida está sempre exposta. Como sofremos quando te amamos, ó meu Deus! Mas também quão felizes somos nessa dor! E, por fim, chega um momento em que esse sofrimento torna-se intolerável e acaba explodindo. A alma geme, chora, grita de dor. Transparece, então, que, ao abrir assim o coração, uma lufada de ar fresco viria de fora para abrandar o fogo do seu amor. Mas todos esses esforços apenas aumentam e agravam o seu pesar.
Ela, enfim, compreende claramente que somente Aquele que causou a ferida também poderá ser capaz de curá-la, pois a alma está faminta e somente Ele é o seu alimento. Ela está sedenta e somente Ele é a sua bebida refrescante. Ela é pobre e somente Ele é a sua riqueza. Ela está triste e somente Ele é o seu conforto e alegria. Ela está morrendo e somente Ele é o seu amor e a sua vida: 'Quando verei a face de Deus?' [Sl 42,3]. 'Eu morro porque não morro' [Santa Teresa de Ávila].
SOFRIMENTOS PURIFICADORES, REDENTORES E APOSTÓLICOS
Na minha opinião, o que torna os nossos sofrimentos do Purgatório tão longos e aterrorizantes são as faltas conscientes, as infidelidades voluntárias cometidas direta ou indiretamente, as resistências, tudo enfim que distorce a conformidade entre a nossa vontade corrompida e a vontade de Deus. Nas almas que conseguem atingir um grau suficientemente elevado de união mística, o despojamento de tudo o que foi criado pode ser feito na terra com uma impressão de sacrifício muito dolorosa por duas razões.
Em primeiro lugar, por mais purificada e santa que uma alma possa nos parecer, ela ainda pode ter, aos olhos de Deus e aos seus próprios olhos, vínculos humanos que a retêm e aos quais deve renunciar a todo o custo. Os sábios modernos nos dizem que, em cada centímetro cúbico de água, existem de sete a oito bilhões de micro-organismos que, entretanto, são invisíveis para nós. A mesma coisa acontece espiritualmente, porque não vemos aqueles átomos que, aos olhos da santidade de Deus, parecem montanhas, e realmente o são: 'Pouco importa que um pássaro esteja preso por um fio delgado ou por um fio grosso, porque, apesar de delgado, enquanto não se desfizer dele, estará tão preso para voar como preso por um fio grosso' [São João da Cruz], tradução para a linguagem e para o sofrimento humano do horror que tem Deus pelo menor pecado.
Num segundo caso, a alma pode estar realmente purificada. E mesmo que sofra, não se sente separada de Deus. A profunda alegria que a domina não pode perder-se. Essa alegria coexiste com a dor mais intensa. É como quando Jesus conservava a visão beatífica no Getsêmani e na Cruz. As provações, sofrimentos e tentações de todos os tipos que sobrevêm já não são mais purificadoras, mas redentoras. Vistas assim, têm a aparência de provas e tentações para iniciantes, mas são apostólicas, pois são almas que se oferecem pelas outras almas e que sofrem exatamente o que a alma pecadora ou iniciante tenderia a sofrer naquele estado. É este o caso de São Vicente de Paulo que padeceu por dois anos, segundo creio, uma terrível tentação contra a fé. Ou ainda a última provação de Santa Teresa do Menino Jesus, que resultou em um novo florescimento de fé no mundo, sendo que ela certamente já estava purificada. Ou a da Venerável Maria da Encarnação, quando se ofereceu por seu filho e por outra alma. Este brilho apostólico é verdadeiro, mas não é infalivelmente atendido para uma dada pessoa em particular.
Segundo São João da Cruz, a alma elevada ao matrimônio espiritual atingiu o estado da perfeição, embora ainda possa aumentar a caridade como homem que alcançou o seu pleno desenvolvimento. Pode ainda merecer e produzir frutos cada vez mais saborosos e abundantes, porém, a sua purificação está consumada, e o arcabouço interno das graças, das virtudes e dos dons terminou.
ALEGRIA NO SOFRIMENTO QUE CONDUZ A DEUS
Ó meu Deus, eu não posso proclamar-Vos excelso, liberal e glorioso apenas no momento em que Vós dignais a me visitar e a me fazer saborear a alegria de Vossa doce presença, mas também, e acima de tudo, quando quereis me abandonar e deixar-me sozinho em meio a escuridão, numa noite fria e sem fim. Seja o que façais comigo, sereis sempre excelso, liberal e glorioso. No cerne de todo sofrimento que provém de Vós, nele escondeis uma graça e uma alegria. Se eu for corajoso, se for capaz de compreender, de aceitar e amar, então a dor há de me arrancar de mim mesmo, me fazer atravessar o vazio, me elevar acima de tudo e me levar até Vós, para me exilar em Vossos braços e em Vosso coração. Sim, ó meu Deus, assim como existe um êxtase de alegria, existe também um êxtase de dor: 'Minha alma engrandece ao Senhor'.
O que importa o caminho que me conduz a Vós, ó meu Deus, desde que eu chegue até Vós? Não é ele o mais curto e seguro do sofrimento? Existe algum lugar do mundo que possa estar mais perto do Céu do que o Calvário? E, se para entrar na Vossa glória, Vós precisastes sofrer tanto, ó meu Jesus, como podemos esperar alcançá-la de outra forma? Mas, mais uma vez, o que isso realmente importa? Aproximar-me de Vós, ó meu Deus, juntar-me a Vós, ser levado à Vossa presença: tudo está aí e aí está tudo. Um único momento da vida divina nos faz esquecer tudo, esse é o cêntuplo que prometestes ao meu Deus e que já nos dais neste mundo. Deixai-me expressar a Vós a minha alegria, a minha felicidade, o meu deleite e graça em me sentir convosco e Vos ter em mim. Vós não me deveis nada. Melhor dizendo, deveis a mim sofrimentos. E, assim, dais a mim tudo o que eu preciso, e que eu compreendo, conclamo e usufruo em plenitude.
'LEVANTA-TE, MINHA AMADA...'
'Levanta-te, minha amada; vem, formosa minha. Eis que o inverno passou: cessaram e desapareceram as chuvas. Apareceram as flores na nossa terra, voltou o tempo das canções. Em nossas terras já se ouve a voz da rola'
(Cântico dos Cânticos 2, 10-12)
O inverno é a estação das trevas e do frio. As noites são longas, os dias são desbotados. Não há folhas, nem flores, nem frutos. Os pássaros ficam em silêncio. Tudo está letárgico, tudo parece morto. Assim também a alma interior padece o seu inverno. Ela conheceu as trevas do espírito, a letargia do coração, aquelas horas em que tudo estava frio, quando tudo nela parecia estar morto. Não havia mais luz, nem calor, nem vida. Deus se escondia. A alma estava sozinha em um deserto sem caminhos, açoitada por todos os ventos, sacudida por todas as tempestades. Era a hora dos misteriosos abandonos, da agonia e do calvário. Mas era preciso ser assim para desfrutar da glória.
Eis que o inverno acabou para sempre! E sois Vós, ó meu Deus, que se digneis anunciá-lo à alma! Vossa palavra não pode enganar, pois sois a própria Verdade. Por outro lado, a alma tem ciência bastante para saber o que isso significa. Podem sobrevir ainda alguns retornos de escuridão e de frio porque a terra não é o céu, mas esses momentos de provação serão poucos e não permanecerão. O inverno acabou. Graças a Vós, ó meu Deus! Que as almas tenham que passar por esta dura jornada é uma necessidade que se impõe à Vossa sabedoria, ainda que possa machucar o Vosso coração. Ficais algo impaciente para superar de vez esse inverno rigoroso. Assim que possível, assim o fazeis. E, uma vez feito, podeis anunciar com alegria à Vossa alma que os tempos de provação já passaram e que os belos dias não mais tardarão.
Entre o inverno e a primavera, permeia a estação chuvosa. Faz menos frio; está menos escuro. Os dias se alongam e, de vez em quando, brilham alguns raios de sol. Mas, geralmente, cai uma chuva embaçada, monótona e persistente. Quase não se pode sair. O horizonte está nublado, baixo, quase ao alcance da mão. No contexto espiritual, a alma interior conhece também uma estação muito semelhante. Em seu espírito há menos escuridão; em seu coração, menos frio. De vez em quando, parece que as coisas vão mudar para melhor. Mas, na maioria das vezes, um véu cinza a envolve. Não se vê muitas coisas à frente. O que haverá por trás dessa cortina sem desenhos e sem cores? Pode-se inferir, mas sem certezas. A espera é longa, monótona, um pouco cansativa para a imaginação. O coração permanece fiel e até ainda mais. Mas a alma demora a se livrar dessa espécie de prisão. Não tardeis, ó meu Jesus!
E Jesus vem. E então anuncia à alma que a estação chuvosa já 'passou', que passou definitivamente. E apresenta imediatamente a prova: 'as flores já brotaram da terra'. A alma, com efeito, não é mais aquela terra endurecida pelo frio ou encharcada pelas chuvas; mais parece o campo na primavera. Está coberta de flores. A campânula, valorosa e cheia de esperança, vê a violeta humilde, tímida e perfumada brotar ao seu lado. Impera o pensamento contemplativo, e o gracioso cravo pende a sua flor, um tanto pesada, em direção ao sol, como uma imagem da alma, cheia de vida interior e pronta a vicejar. Floresce então o puríssimo lírio e, por fim, a rosa primaveril da caridade. As flores das virtudes são exibidas na alma em todos os sentidos, formando em torno dela uma coroa de ornamento incomparável. Eis um dos grandes encantos deste mundo: a primavera de uma alma interior é algo deslumbrante.
Nesse momento da vida espiritual, os olhos da alma se abrem para o mundo. Vê a terra incensada de almas em flor. O que ela agora é, as outras também o são. O que da obra divina se capta em si mesmo, contempla-se com alegria em outras almas. Ela está maravilhada, extasiada por um espetáculo tão belo. Tudo o mais desaparece aos seus olhos e ela não vê senão isso. Então, à medida que as virtudes se desenvolvem nela, seus olhos se abrem ainda mais e seu olhar se torna mais penetrante. Observa muito melhor a variedade de formas, a riqueza das nuances e a harmonia das cores. Desenvolveu-se nela como que um toque misterioso. Basta uma pequena coisa para adivinhar onde está a obra de Deus nesta ou naquela alma. Também lhe parece que está dotada de um novo sentido para captar os aromas espirituais, que são tão variados quanto as virtudes e como as almas. Para ela, enfim, existem flores do céu na terra.
Quando a alma sentia frio - quando a chuva nublada e triste da provação a envolvia, ela não sabia senão gemer dolorosamente ou ficar em silêncio; mas agora tudo mudou. Deus, o seu verdadeiro sol, a ilumina, a aquece, a encanta. Não é hora de expressar bem alto a sua felicidade, e de cantar? Sim, de fato, 'chegou a hora do cântico'. E agora a alma interior canta. A canção de amor da eternidade começa aqui nesta terra. Esta é uma melodia misteriosa. O grau de harmonia de sua vontade com a vontade de Deus é sua tônica. Quanto mais perfeita a união, mais a entonação aumenta. Bem aventurada a alma cuja ação tende cada vez mais à plena realização da vontade divina! A sua voz eleva-se às alturas do céu e esta última nota é a que agrada aos ouvidos de Deus. Com ela a melodia termina nesta vida, mas para recomeçar além e para sempre.
Para incentivar a alma interior a segui-lo de vez, o Divino Esposo faz notar que já se pode ouvir o arrulhar da rolinha. Ela não teria deixado o seu refúgio de inverno se a primavera não houvesse chegado. A alma e a pequena ave obedecem à mesma lei. O canto da rolinha tem algo doce, gentil, constante, agradavelmente monótono. Dir-se-ia ser a própria voz de uma afeição autoconfiante que, para ser querida, basta repetir-se sem pulsos extremados, quase num murmúrio, mas sem interrupções. E, no mais íntimo da alma interior, existe também uma voz que canta assim, que...
Canta docemente, quase murmurando, uma melodia muito singela,
que se contenta com algumas poucas notas em intervalos justos:
'Ó Amor que eu amo! Meu Deus, meu Tesouro, meu Tudo, meu Amor que amo!'
PARTE III - A UNIÃO COM DEUS
DEUS, CENTRO ÚLTIMO DA ALMA
Da mesma forma que, como se costuma dizer, a pedra tende pelo seu peso para o centro da terra e nela cairia por si mesma, como para o lugar do seu repouso definitivo, assim também a nossa alma tende a Vós, meu Deus, com todo o peso do seu amor. Nesse movimento que a conduz a Vós, podemos considerar alguns lugares sucessivos, que são como marcos ou pontos de descanso provisórios, a partir dos quais a alma se lança novamente à frente, ó meu Deus, com uma visão mais clara do seu fim, com um amor mais impaciente e maiores desejos de encontro, que dão à sua marcha uma aceleração misteriosa.
Mas, de estágio em estágio, de lugar em lugar, de ponto a ponto, a alma finalmente há de chegar até Vós. E então o seu movimento se conclui e não há mais razão de ser, pois a alma chegou ao final dos seus desejos e do seu caminho. Ela chegou onde tinha que chegar. E então repousa ali, na posse final e definitiva do seu Tesouro e do seu Tudo.
Deus, com efeito, reservou uma morada nas profundezas da alma, na qual nem mesmo a própria alma pode entrar sem a sua permissão especial. E é aí precisamente que a alma é então introduzida, não por alguns momentos, mas para sempre. Deus primeiro revelou à alma a existência desta morada e depois despertou nela um desejo ardente de adentrar nela. Esse desejo foi crescendo e, depois de duras provas, foi realizado. A alma finalmente adentrou a casa do Pai com a firme impressão de ser essa a sua morada para sempre.
Mas há algo mais, porque a casa de Deus é o próprio Deus. É, portanto, nEle mesmo que Ele faz a alma adentrar. A frase de São Paulo torna-se então uma realidade tangível para a alma, poder-se-ia dizer vivida pela alma: 'em Deus vivemos, movemos e existimos'. Viver em Deus é, de agora em diante, a sua herança. Assim, o descanso, o refrigério, o alimento da alma é o próprio Deus. A alma sente que acaba de receber um novo impulso; a vida, e uma vida divina, passa a fluir através dela. Parece-lhe, não sem razão, que Deus a levou até o mais íntimo de si mesma e que a transpassou nesse abismo misterioso onde o finito e o infinito se confundem. Ali, Deus está por inteiro devotado, como a mais terna das mães, a conceder à alma vida, força, paz e alegria. E então, plena de felicidade, a alma exclama: 'o próprio Deus restaura a minha alma'.
INTIMIDADE
Quando se encontra Deus, a posse começa. E não mais na ordem do próprio ser, mas na ordem do conhecimento e do amor, uma vez que a alma e Deus constituem nada mais do que uma unidade. São duas naturezas unidas no mesmo espírito e no mesmo amor, que resulta em uma intimidade profunda, comunhão perfeita, fusão sem mistura e sem qualquer perturbação.
Estamos em Deus e Ele está em nós. Somos tudo o que Ele é. Temos tudo o que Ele tem. Nós o conhecemos, quase o vemos. Nós o sentimos, provamos e desfrutamos e nEle vivemos e morremos. Seria com efeito a hora da nossa morte, se Ele não quisesse que continuássemos vivendo aqui nessa terra. A vida que vivemos tem que ser doada e, por isso e para isso, aqui permanecemos. Até que a obra divina seja concluída e o último véu seja desvelado, para enfim se obter a posse plena e perfeita de uma vida sem fim.
Quanto mais avançamos nesse propósito, mais saboreamos a perfeição de Deus. É como uma investida contínua envolta em períodos de aparente estagnação. Então vem uma nova onda que se projeta ainda mais longe do que a primeira e parece provir de maior profundidade. Nada é tão suavemente impressionante quanto esta projeção da ação divina que se difunde desde o mais íntimo da alma e toma posse até mesmo das suas fronteiras mais extremas com o mundo sensível. Uma oração ardente brota então dos nossos corações: 'Se é verdade, ó meu Deus, que Vos possuo, dá-me a graça de me infundir completamente em Vós!' Parece então como se as mãos pudessem compartilhar de um tesouro interior com graças sem fim. Ó bem-aventurança!
REALIDADE DA POSSE DE DEUS
O que temos que repetir muitas vezes, embora seja surpreendente e, à primeira vista, até mesmo intrigante, é que essa posse de Deus pela alma é a coisa mais real que existe no mundo. Existem algumas almas que podem dizer verdadeiramente: 'Deus está em mim'. E não há nenhum exagero ou ilusão nisso. Essa fala é a expressão fiel da realidade. É verdade que essa posse de Deus tem graus muito diferentes. Mas há um pano de fundo comum a todos eles, bem traduzido pelo Cântico dos Cânticos: 'Meu bem amado é meu'. Antes, a alma interior desejava a Deus. Procurava, escutava, vislumbrava a sua presença e tinha até a percepção de estar muito perto dEle e Ele muito perto dela, no mais íntimo de si mesma. Mas entre buscar a Deus e depois encontrá-lo e, acima de tudo, possuí-lo, existe um abismo. São coisas muito diferentes, e essa diferença que existe entre estas coisas é tudo.
Se Deus está na alma, a alma também está em Deus. A alma se entrega, Deus a aceita, toma posse dela e a alma interior tem a percepção dessa realidade. A alma não perde nem a sua natureza e nem a sua personalidade. Entretanto, não mais se pertence. Ela cedeu de bom grado os seus direitos de propriedade, e outro a exerce em seu lugar. E esse outro é o próprio Deus e essa doação, longe de empobrecê-la, enriquece ainda mais a alma, que passa a produzir frutos de que não julgava ser capaz. Ela os saboreia então à vontade e experimenta neles um sabor de eternidade. Mas, acima de tudo, experimenta uma sensação de libertação total, de verdadeira liberdade, que a consome em êxtases de alegria. Esta é a liberdade dos filhos de Deus. Sofremos tanto porque queremos pertencer sempre a nós mesmos! Somos verdadeiramente felizes quando somos inteiramente de Deus: Eu vivo pelo meu Bem Amado, e o meu Bem Amado é meu.
Quanto mais Deus me possui, mais tenho Deus em mim. Todas as suas riquezas me pertencem. Eu compartilho de sua ciência, de sua sabedoria, do seu poder, de sua bondade. Ninguém pode entender essa misteriosa comunidade de posses. É uma espécie de igualdade ou, melhor ainda, de unidade e a alma percebe muito claramente a sua inserção divina. Está imersa em Deus, é Deus no sentido do que isso seria possível para uma pobre criatura humana. E não contente em fazê-la comungar assim da sua natureza e da sua vida íntima, Deus a faz participar em certos momentos do governo do mundo. O conselho que reúne a Divina Trindade celebra-se também nela e a alma dele compartilha enlevada de muda admiração.
MATRIMÔNIO ESPIRITUAL
Por que a palavra matrimônio? Devido à natureza indissolúvel desta união. Porque produz confirmação na graça - pelo menos São João da Cruz diz assim. É um contrato irrevogável, uma fé juramentada pela eternidade. Vós, ó meu Deus, sempre amareis a sua Esposa e sempre será amada por ela. A alma interior entende também assim. Ela tem uma percepção íntima disso, que é inerente a ela, mas que ela não pode atestar por completo porque não o pode provar.
Por outro lado, apesar dessa segurança muito firme de que tem consciência, sobretudo em certos momentos, a alma não acredita que esteja minimamente dispensada das regras da prudência cristã no ritmo cotidiano de sua vida. Vê, pelo contrário, com a clareza das evidências, como é indispensável submeter-se a estas regras e não se desviar em nada dos caminhos da obediência. Deus a toma para si e ilumina aqueles que a guiam e a orientam em seu nome. E ela está em paz.
A ALMA PARTICIPA DA VIDA TRINITÁRIA
Vós, ó meu Deus, criastes as almas à vossa imagem, e as tornastes semelhantes a Vós. Depois comunicastes a elas a vossa própria vida. Sob as sombras da fé, elas creem no que vedes; esperam o que possuís, amam o que Vós amais, que sois Vós mesmo. As almas, graças ao princípio sobrenatural da vida que inseristes no interior delas, podem assim chegar a Vós, mesmo em vossa vida íntima, comungar verdadeiramente dessa vida abençoada, expressar do seu jeito o Verbo adorável, fluir através delas o vosso Espírito de Amor. E então, sob o doce e irresistível impulso desse Espírito divino, podem retornar até Vós - ao Pai e ao Filho - e refazer continuamente, com um deleite constantemente renovado, esse suave e aprazível caminho. Por acaso existe algo mais lindo neste mundo do que uma alma que vive da vossa vida, ó meu Deus?
Chega um momento em que Vós desejais que a alma, vivendo assim sob a penumbra da fé, veja de repente essas sombras se dissiparem quase por completo. Uma misteriosa claridade a envolve e nela se infunde suavemente. Ela fica totalmente iluminada por dentro sem nem saber como isso acontece, sem saber de onde vem o foco da irradiação que a consome. Sob a influência dessa luz de fogo, a alma se vê vivendo a sua vida comungando do conhecimento e do amor do próprio Deus, expressando o Verbo divino, exalando o Espírito de Amor do Pai e do Filho, ardendo na caridade do Espírito divino, vivendo a vida trinitária. Está mais bela do que nunca pois nela, como em Vós, tudo é ordem, poder, esplendor, harmonia e paz.
CRISTO ENTRA NA ALMA
Por fim, o desejo da alma é realizado e a sua oração é ouvida: Jesus achega-se até ela e entra em seu jardim. Como, meu Deus, adentrai tão suave a alma que vos ama? Ninguém sabe. Ela nem mesmo se apercebe disso. É um segredo de vossa onipotência e de vosso amor. Na verdade, o que importa para a alma não é o 'como' da vossa presença, mas a vossa própria presença, que se torna um fato real. Algo misterioso e profundo, suave e muito doce aconteceu dentro dela. Pressente que Aquele a quem tanto amava e que, até então, estivera recolhido ao mais íntimo do seu coração, começa a abrir caminho suavemente através de sua própria substância e a aflorar à superfície do seu ser. É como se houvesse uma sublimação suave do Bem-amado emergindo do interior da própria alma.
Mas para que a alma interior não possa duvidar da realidade de sua bem-aventurança, Jesus se digna a assegurá-la disso. Ele fala com ela. Às vezes, ele usa a linguagem comum da alma interior, que ouve então claramente uma voz dizendo a si mesma: 'Estou aqui, estou aqui no meu jardim, minha irmã, minha filha, minha amada'. Mas, na maioria das vezes, Jesus fala à alma sem recorrer a palavras, mas com uma linguagem totalmente espiritual. A alma entende que algo lhe é revelado, e que ela compreende. Tudo acontece sob o influxo da pura inteligência: a alma é instruída sem alarde, sem fadiga e sem esforço. Tudo o que tem a fazer é estar preparada para ouvir, e mesmo isso não tem como negar a fazer. A simples obrigação de ouvir essa linguagem divina é doce encanto para ela. Pois a própria alma também é espírito. Por que Deus não poderia comunicar-se diretamente à sua esposa sem ser pelos sentidos, ainda que fossem os sentidos interiores?
DIGNIDADE E HARMONIA DA ALMA INTERIOR
Quando nos deparamos com uma alma interior, ficamos impressionados com a sua dignidade, desenvoltura e graça. Acreditaríamos que ela teria sangue real, o que em si é verdade, uma vez que ela é filha de um rei e, portanto, é rainha. Jesus não é o Rei dos reis? Ela não é a sua esposa? Por que, então, tal digressão? Na alma interior, tudo participa dessa nobreza divina que é revelada por suas palavras, seus gestos, seus movimentos, seus menores passos, que são polidos, discretos e firmes. Ao caminhar, não faz alarde e nem atrai a atenção e, no entanto, agrada, atinge o seu fim sem esforço. Mal notamos o que está fazendo, suas ações são ordenadas e silenciosas, têm o senso de medida. Age como se tem que agir. Fala como convém falar. Mantém-se calada no momento adequado. Mas o exterior é apenas um reflexo. O interior é o que Deus vê e o que realmente importa e o que é verdadeiramente belo. Um interior ordenado como um todo e em tudo.
Nesta alma, até os menores movimentos interiores são delicados e agradam por completo ao vosso julgamento. Todos eles são inspirados pelo vosso amor, princípio e fim de suas aspirações. E também a sua regra. Sim, todos os pensamentos desta alma são pensamentos de amor e o mesmo se dá com todos os seus desejos e com todas as suas ações.
Uma harmonia profunda reina nesta alma. O Espírito Santo, um artista com mãos hábeis, sempre a moldou. Da vontade, plástica como o barro e firme como o ouro, Ele fez um colar irrepreensível que mantém todas as outras faculdades perfeitamente unidas entre si. As faculdades sensíveis servem às faculdades internas e as obedecem. Estas, por sua vez, estão sob o comando daquela vontade na qual o amor divino penetrou tão profundamente. E todo esse mundo interior assim ordenado tem algo firme, gracioso e forte que agrada aos vossos olhos, ó meu Deus; é como uma participação nessa vossa simplicidade harmoniosa que sustenta - atrevo-me a dizê-lo - as vossas inumeráveis e infinitas perfeições. Basta uma única palavra para expressar tudo quando vos consideramos sob esse ponto de vista: 'caridade' - a mesma palavra que distingue e nos revela o íntimo da alma interior.
A MODÉSTIA DA ALMA
A alma interior ama a paz. Suas preferências a levam a uma vida muito simples. Ela tem gostos modestos. As ocupações mais humildes da vida cotidiana não a desagradam; muito pelo contrário. Ela se dedica a eles com prazer. Trabalha seu jardim em silêncio; cuida para que seja muito limpo e bem cultivado; encoraja pequenas virtudes; interessar-se pelas folhas de grama e pela flor que se abre e se desenvolve são coisas que a encantam. Pois, no seu entendimento, nada deve ser negligenciado quando se trata de tornar o próprio coração mais agradável ao Coração de Deus e aumentar em todos os pontos a sua semelhança com o coração de Jesus.
A SERENIDADE DA ALMA
As sucessivas purificações estabeleceram na alma interior um estado de faculdades puras no sentido de conhecer, amar, querer e imaginar. Nada se mantém das formas naturais, pois tudo se desvaneceu. O fogo do amor a tudo consumiu. Mesmo os hábitos de pensar ou querer foram abortados, ainda que com grande sofrimento. Mas as faculdades não foram sufocadas por este arrebatamento íntimo da alma; pelo contrário, tornaram-se mais intensas, mais fortes, mais aptas para o bem do que nunca. Assemelham-se às faculdades dotadas pelo primeiro homem que saiu das mãos do Criador. Quer se trate do mundo natural ou do mundo sobrenatural, da ação ou da contemplação, as faculdades, perfeitamente livres, perfeitamente dóceis nas mãos de Deus, operam com igual desenvoltura. Estão absolutamente à vontade entre estes dois mundos.
Elas se transmutam entre ambos com perfeita segurança e tranquilidade, graças ao conhecimento que a alma dispõe das relações que os associam. Não é Deus o supremo autor dessas duas dimensões? E, como consequência de sua íntima união com Deus, a alma não vê as coisas de um certo modo como Deus as vê, e não as quer tal como Deus as escolheu? Quanto mais puras são as faculdades da alma, tanto mais divinas também são, e tanto mais e melhor se harmonizam com as obras de Deus. Daí aquela serenidade perfeita com que a alma interior passa da contemplação à ação e da ação à contemplação.
O SONO DA ALMA EM DEUS
A vida de intimidade entre Deus e a alma tem então início. Estão sempre juntos, nunca se distanciam. Quem vê um, vê o outro. Diríamos que são apenas um mesmo, ainda que sejam completamente distintos. Há momentos em que essa intimidade torna-se ainda maior. São as horas em que a atividade exterior cessa, e a alma interior se recolhe a sós com Deus, e descansa serenamente ao seu lado. Segue-se um grande silêncio, de um recolhimento profundo, do diálogo em voz baixa, interrompido por longas pausas, em que se ouve apenas o bater do coração. Momentos de quietude, de verdadeiro e tranquilo descanso da vontade em Deus.
Quando a alma interior está unida a Deus, na parte mais íntima de si mesma, ela adormece completamente. Seu grau de união é a medida de um sono misterioso. Cria-se um grande vazio interior, seguido por uma grande serenidade e, por fim, um silêncio completo. A alma dorme profundamente: não ouve mais nada, não vê nada, não pensa em nada concretamente. No entanto, está viva e ama! Diríamos que ele direcionou todas as forças às suas faculdades. Faz tudo descansar para assim, melhor amar.
Concentra todas as suas forças em seu coração. Amar, apenas amar, e amar cada vez mais é o seu único anelo e sua única ocupação. Aparentemente está morta, mas vive mais intensamente do que nunca... Do habitual costume de viver mais ou menos distraída de Deus por causa das coisas., agora se impõe distraída em Deus. Deus a ocupa inteiramente. Ele tomou posse inteiramente da sua alma e, às vezes, também no corpo. Assim, a alma pode dizer - e também aqueles que percebem o seu estado - que a alma não está mais ali'. O que é realmente verdade, pois 'a alma vive mais onde ama do que no corpo que a anima'. Agora ama. Agora ama a Deus por inteiro. Agora está Nele inteiramente.
Em suma, a alma assim adormecida é verdadeiramente feliz. Participa da mesma bem-aventurança de Deus. Essa felicidade a envolve completamente e toma posse dela sem ela se dar conta como. Nenhum esforço é exigido da alma; ela não tem mais anelo de nada e lhe basta deleitar-se nessa paz. E é exatamente isso que faz. Nada pode dar expressar esse sentimento que é essencialmente divino. Não se assemelha a nenhum dos prazeres deste mundo, pois é de ordem muito diferente. Possui uma essência diferente, provém de outra fonte. Não se tem nenhum termo de comparação.
Ao se falar sobre isso, é tudo muito obscuro, porque as palavras da linguagem humana não sabem como traduzir o que se passa. O que se pode dizer realmente é que isso está acima de todos os bens e encontra-se a uma distância imensurável de todos eles. A alma que se deleita da intimidade com Deus desfruta de uma paz tão verdadeira que tem o direito de ficar adormecida para o mundo pelo tempo que quiser.
A ALMA REFÉM DO AMOR DIVINO
A alma interior foi verdadeiramente conquistada pelo amor divino. Ele pode ter-se acercado dela por um longo tempo, mas finalmente a tomou para si. Imprimiu no íntimo dela, com grande júbilo, a sua bandeira - a Cruz. A partir daí, Ele reina soberano. Tudo lhe pertence: espírito, coração, sentidos e bens. A alma interior, incensada pela completa imersão da caridade divina, canta a beleza, a força e a glória de Deus. Ela temeu perder a sua liberdade se abrisse por inteiro as portas do seu coração. Mas agora entende que a verdadeira liberdade é tornar-se escrava do amor divino. Pensou até que tudo poderia lhe ser tirado e agora sabe que, ao contrário, tudo na verdade lhe foi dado.
Mas a alma não foi apenas conquistada pelo Amor, mas agora também é refém do amor divino. Ela não apenas vive dele, mas é consumida por ele e nele morre. Um fogo interior a devora sem descanso, dia e noite. Tênue na sua origem, esse fogo cresce e torna-se devastador. Nada lhe ignora; tudo alcança, tudo purifica, tudo alimenta, tudo transforma. Um observador atento perceberia que há algo misterioso e divino nesta alma. Como, de fato, poderia esconder esse fogo ardente sem ser visível o seu brilho admirável? Seria praticamente impossível. Pelo contrário, chega um momento em que o próprio Deus acaba permitindo que esse fogo de amor seja exposto a todos. Uma vez conquistada e depois, ornada pela caridade divina, a alma interior torna-se um arauto do Amor eterno, que é propagado todo o tempo. Não importa em que ambiente esteja; mesmo na mais profunda solidão a sua chama permanece viva e, ainda que não pudesse falar ou escrever, ela se manifestaria no rezar, no sofrer, no amar...
PUREZA, FORÇA E RIQUEZA DESTE AMOR
Como é puro o vosso amor, ó meu Deus! É o amor de um espírito por outro espírito, que ignora o que São Paulo chamou de carne, e que esta também ignora. Pois este amor não pertence ao mundo dela; está infinitamente acima dela. Mais do que isso, este amor declara guerra à carne, e uma guerra implacável. Para viver, para que possa desenvolver livremente em nós, requer que a carne desfaleça, resseque e morra. Nessa batalha misteriosa, nossa alma é, ao mesmo tempo, palco de teatro e de recompensas. Mil vezes feliz a alma que, para se unir a Vós, não teve que sofrer aquelas excruciantes, mas tão necessárias purificações de amor!
Como é poderoso o vosso amor, ó meu Deus! Podemos confiar nele com certeza absoluta, porque ele nunca nos falta. A alma que se une ao vosso amor torna-se tão firme e imutável como ele e, assim, até pode sentir em suas faculdades sensíveis o inevitável fluxo e refluxo das emoções, mas não tem o íntimo perturbado por elas. Descansa no terreno firme deste amor. Se a tentação ousar perturbar a sua paz, a alma interior só precisa se refugiar mais firmemente a este amor divino, reduzindo a sua ameaça à impotência, até que desapareça por completo. O vosso amor é refúgio e fortaleza; nele a alma está segura e nada poderá perturbá-la. Está protegida por todos os lados; está resguardada em todos os lugares. É como uma nuvem, brilhante e sombria ao mesmo tempo, que a guia e a mantém protegida. A alma sente-se verdadeiramente envolvida por uma presença misteriosa que a fortalece, que lhe dá conforto e segurança, que a vivifica plenamente.
Como é abundante o vosso amor, ó meu Deus! É um tesouro que contém todos os bens e que é inesgotável. Tudo dele procede; é o primeiro dom totalmente gratuito e eivado das graças de Deus. Por que Vós me amais tanto, ó meu Deus? Só porque o quereis e porque sois bom. Ao me dar o vosso Coração, destes tudo a mim: não sois vós o poder infinito? E esse poder infinito não está a serviço do vosso Amor?
CHAGA DE AMOR
A dor que padece e que consome a alma que é Vossa é um doce mistério. Mas Vós sabeis, ó meu Deus, que ela é obra Vossa... No começo, era uma ferida tão pequena que somente a alma podia pressenti-la; depois, aos poucos, vai crescendo e envolvendo toda a alma até se transformar em uma chaga incurável que tudo sensibiliza e vivifica. A dor que emana dessa chaga aberta, embora envolta em delícias, torna-se intolerável. A alma geme, protesta, esbraveja. Ela sabe muito bem que só existe um remédio para o seu mal: um amor maior capaz de libertá-la do seu corpo e que a faça morrer para, enfim, ser acolhida para sempre em Vossos braços. Ela quer ser tratada pelo único médico capaz de curá-la: Vós, ó meu Deus. Mas Vós não feristes essa alma amadíssima no mais íntimo senão para a possuir plenamente. Só Vós podeis alimentar nela a chama que foi acesa; alimentai-a então, pois ela já não pode mais viver sem a Vossa Presença.
Todas as almas, meu Deus, deveriam ser consumidas por essa dor misteriosa. Não sois Vós a Bondade perfeita e a Beleza infinita? O nosso coração, feito por Vós, não foi feito para Vós? Por que, então, existem tão poucas almas que Vos amam realmente?
Mas não há como nos volvermos contra Vós, ó meu Deus, mas contra nós mesmos. Porque Vós estais sempre à porta do nosso coração e clamas por ele de mil maneiras. Mas não ouvimos a Vossa voz, envolvido pelo barulho à nossa volta. E, se acaso a ouvimos, hesitamos em abrir o nosso coração e fazer Vossa por completo a nossa vontade. Na verdade, a nossa alma está doente e de um mal que a devora, que é o seu amor próprio, quando deveria estar consumida por uma dor que a faria viver em plenitude e para sempre: a dor do Vosso amor, ó meu Deus. Senhor, curai-nos dos males humanos! Fazei-nos enfermos das graças divinas e por elas morrer em Vosso amor!
AS CONFIDÊNCIAS DIVINAS
A alma interior é elevada acima de si mesma, projetada não apenas além das suas faculdades sensíveis, mas também acima de suas faculdades intelectuais da inteligência e da vontade. Ela foi conduzida por Deus à plenitude, ao cume da vida espiritual, quase capaz de tocar o céu. Dali, calma, serena e silenciosamente, viva e amorosa, ela escuta a voz de seu Deus, a lhe sussurrar: 'Olha!'. Eis a hora da iluminação, das revelações íntimas, das confidências e dos segredos. Os olhos se abrem e a alma vê a terra como a vê do céu. E a alma vê o céu como o veríamos da terra se soubéssemos olhar. Contemplação que compreende tudo - céu e terra - em um único olhar de profundidade infinita.
Se o Senhor desejar fazer alguma confidência à alma, o momento é esse. E sem precisar de palavras, quase sem que a alma possa perceber, diz-lhe o que tem a dizer. Ao retornar à sua vida cotidiana, a alma retém dos fatos uma memória geral que, embora vaga, é muito real: foi tocada pela graça. Então, no momento certo, esse ensinamento escondido transparece claramente para ela de forma simples, sem esforço, como uma mensagem limpa, precisa, firme, segura e prática, que a surpreende e emociona. Sob a influência do Espírito da Verdade e do Amor, a misteriosa semente germinou e se abre docemente no instante oportuno. E embora o Verbo Divino tenha se contentado em tão somente se acercar da alma escolhida, por ser luz, inunda a alma de sua luz. Assim, quando a alma retorna aos seus afazeres normais, não vê mais as coisas com os mesmos olhos, não as interpreta mais do mesmo modo. Ela não é mais a mesma, e as coisas não são mais as coisas passadas.
CONHECIMENTO DIVINO
Deus se compraz em fazer a alma interior ver as coisas como Ele mesmo as vê. Ele revela os seus segredos aos seus amigos e tanto mais claramente quanto mais os ama. A primeira coisa que Ele ensina com precisão e clareza absolutamente novas é como o mundo da natureza se manifesta, com as suas belezas, as suas perfeições, a variedade dos elementos que o compõem e a sua perfeita harmonia na unidade. Os céus se tornam um livro que expõe a Sabedoria, o Poder e a Bondade de Deus: os céus descrevem a glória de Deus (Sl 19,1)
Então o mundo da graça se ilumina e se torna para a alma interior um espetáculo sempre novo e sempre encantador. Como é bela, de fato, a obra de Deus nas almas! Quanta paciência à espera delas, quanta misericórdia para acolhê-las, quanta delicadeza para sublimá-las, quanta generosidade para amá-las! Parece que tudo foi feito e manifestado para uma única alma: a Santíssima Trindade; Jesus, o Verbo Encarnado; a Igreja, a sua obra e a sua Esposa; os sacramentos; a graça; a humanidade e o próprio mundo material: 'Deus coopera todas as coisas para o bem daqueles que o amam' (Rm 8, 28). É isso que a alma interior contempla depois de descobri-la em sua vida pessoal e na vida dos outros.
Mas o que Deus quer revelar à alma em primeiro lugar é Ele mesmo. Embora nem sempre todos os véus da fé possam desvanecer, os que permanecem não perturbam as relações da alma com o seu Deus. A alma está com Deus como se o pudesse contemplar e, quão maior é o recolhimento com que o acolhe vivo em seu coração, mais se deleita e mais o possui. Esta posse consciente é em si uma espécie de conhecimento quase experimental de Deus, tal como se pode ter de um fruto que, obscuro à primeira vista por uma percepção debilitada, pôde enfim ser saboreado em toda plenitude. As duas fontes de conhecimento combinadas de um mesmo objeto imprimem à alma uma santa alegria, como um prenúncio da felicidade eterna.
CONHECIMENTO DOS ATRIBUTOS DE DEUS
Quando uma alma adentra em Deus pela primeira vez, experimenta a impressão que alguém teria ao entrar de repente em uma sala ampla e cheia dos mais ricos e variados tesouros. Não seria capaz de perceber nenhum deles em detalhes, mas apenas ter uma visão geral de todos eles. Tal visão, entretanto, causaria nela uma alegria única, moldada de certa forma por todas as alegrias que seria possível ser experimentadas se ela pudesse admirar cada um desses tesouros em particular. Os atributos de Deus são esses tesouros. Na sua união com Deus, a alma interior os vê em um único olhar e os absorve todos de uma vez, porque Deus é riqueza e simplicidade ao mesmo tempo, de tal forma que a impressão que se grava em nosso espírito e em nosso coração é fruto de ambos. Ao encanto desta alegria, tão nova para a alma, acrescenta-se algo inesgotável, infinito, que nela se impregna de forma discreta e indescritível.
Pouco a pouco a alma se acostuma a viver nesta cela interior. Adormece e vive nela; faz dela a sua morada. Quando tem que deixá-la, sofre e pressente-se estranha, como alguém fora do seu lugar próprio. Assim que possível, busca retornar, pedindo humildemente a Deus que seja recebida de volta. Deus nem sempre a atende de imediato. Então ela reza em recolhimento e espera, com confiança e em paz, como uma virgem fiel atenta ao menor sinal que possa anunciar a vinda do Esposo. E chega o momento em que Deus a recolhe outra vez na sua intimidade: novas luzes, novos encantos; novas alegrias e ainda muito mais profundas. Aí está a recompensa pela sua fidelidade: 'Muito bem, servo bom e fiel... vem regozijar-te com teu senhor!' (Mt 25, 21).
Aquele sentimento geral que a alma experimenta em seu primeiro encontro com Deus é gradualmente delineado e forjado. Em sequência, cada um dos atributos divinos pode ser melhor conhecido e melhor experimentado. A alma pode experimentá-los cada vez mais intimamente e de forma consciente, tendendo então a ser aquilo que se ama. Neste caso, as coisas tornam-se ainda mais fáceis porque Deus fez da alma a sua morada, está ao alcance das suas aspirações. Assim que Ele se manifesta, a vontade impele a alma ao seu encontro, tomando-o para si com todas as suas forças. Ocorre então um processo de deificação consciente da alma, que pode ser genérica e confusa ou mais precisa e clara, expressa pela dimensão da comunhão da Fortaleza, Sabedoria, Bondade, Misericórdia ou qualquer outro atributo de Deus. Que também se expressa como uma união, envolvendo a Trindade Santa ou apenas uma das Três Pessoas em particular. Neste caso a alma, ao assimilar uma certa Pessoa da Santíssima Trindade, busca ser um reflexo dela e agir da mesma forma que ela em todas as suas atitudes e manifestações.
PODER, SABEDORIA E BELEZA DE DEUS
Deus se revela pouco a pouco à alma interior. Dá-lhe um vislumbre do Poder e da Sabedoria com os quais Ele governa o mundo. Suas mãos tem a robustez de um trabalhador vigoroso e a flexibilidade de um artista genial. Nada escapa dessas mãos divinas e nada lhe resiste. Elas tudo governam, homens e coisas, para onde querem. Maravilhas procedem dessas mãos, que são tão diversas como as pedras preciosas que as adornam.
A alma interior está ciente de como opera o Divino Trabalhador em certas almas, das obras primas que sabe extrair do barro humano. E a alma fica tomada de admiração diante de tudo isso. Afinal, o que poderia ser mais belo, meu Deus, do que a visão do amor divino confrontando-se com uma alma? Que artifícios, que encantos e, às vezes, é verdade, que impulsos tremendos para libertá-la de tudo! Que paciência para purificá-la completamente, que generosidade e que estratagemas para embelezá-la, que ardor para abraçá-la, que influxo poderoso para elevá-la acima de tudo, até de si mesma, para amá-la sem medidas e doutriná-la sem receios... O que pode ser mais belo do que uma alma santa? Não foi Deus quem assim a criou pelo poder de sua graça? Bem-aventurado aquele que pode ver as mãos de Deus trabalhando neste mundo!
Basicamente, a matéria prima desta obra divina é a mesma. No entanto, o estado inicial desta matéria é essencialmente distinto, dependendo de cada caso. Há almas que nunca conheceram o pecado, pelo menos o pecado grave. Há outras que foram submetidos à sua tirania, mas por pouco tempo. Finalmente, há aquelas que desceram todos os graus do abismo e nele permaneceram por longos e tristes anos. Mas isso não afeta o poder divino que tudo domina. Deus pode gerar santos tanto de um pecador obstinado com de uma alma inocente, e às vezes Ele assim o faz. Não há nada mais belo do que contemplar as mãos divinas em ação. Elas exploram a lama humana e daí lavam, purificam, esculpem, moldam, desbastam, transformam. E operam exteriormente mas, especialmente, por dentro. A matéria prima é a alma. Mesmo quando Deus usa um outro instrumento, na verdade é a própria alma quem trabalha com Ele e para Ele.
É maravilhoso ver como as almas se transformam pouco a pouco sob a ação divina. São como tantas outras maravilhas que saem dos dedos hábeis do Divino Trabalhador, como pedras preciosas destinadas a adornar a Jerusalém Celeste, tão numerosas e tão diversas em sua forma e em suas nuances, tudo de uma beleza indescritível. Aqui, nesta terra, conhecemos apenas algumas destas maravilhas e as conhecemos mal. Para que a sua beleza seja realmente revelada, é necessária a luz do céu. E só então poderíamos admirar toda a riqueza e todas as graças emanadas de mãos tão ternas e poderosas.
Deus é soberanamente Belo e a própria Beleza imanente, o Ser único que nada carece de complemento, que sempre foi infinitamente perfeito e em quem tudo é ordem, unidade, simplicidade, pois todas as perfeições possíveis e imagináveis formam nele uma única e mesma realidade em sua essência. Deus encontra no conhecimento que Ele tem de si mesmo um prazer infinito. Ele é o eterno admirador de sua eterna e própria Beleza e, assim, é a fonte verdadeira e modelo de toda beleza.
Quando me deixo distrair de Vós, ó meu Deus, parece-me que deixo a região da luz para adentrar na dimensão das trevas. Tudo o que não sois Vós macula e fere os meus olhos! Para quem Vos contemplou ainda que uma só vez em luz inacessível, tudo o mais está corrompido e disforme! Mesmo as criaturas que melhor possam ser vossos reflexos tornam-se dolorosas de se conviver. Porque não podem ser como Vós, ó meu Deus! E é a Vós que a alma quer contemplar cada vez mais, cada vez mais profundamente, murmurando repetidas vezes as doces palavras de Santo Agostinho: 'Ó Beleza sempre antiga e sempre nova, eu te conheci tarde demais, eu te amei tarde demais!'
Sim, ó meu Deus, Vós sois toda Bondade, toda Beleza e toda Graça. Vós criastes muitas criaturas belas e, no entanto, a beleza delas não pode nem de longe ser comparada à vossa. Todo bem e tudo o que é belo emana de Vós. E aquilo que dais, não se perde, porque tudo possuís infinitamente. Fazei-me compreender, a mim que almejo ser feliz, que toda felicidade e toda alegria emanam de Vós. E que eu aprenda a ir até Vós, para impregnar-me da vossa Beleza, para alimentar-me com a vossa Bondade, para alegrar-me com a vossa Alegria e para deleitar-me sem medidas da vossa Felicidade! Porque tudo isso é possível, tudo isso é verdade, tudo isso é necessário: 'Amarás...' e, assim, serei bom com a vossa Bondade, serei belo com a vossa Beleza, serei feliz com a vossa Felicidade. Ó meu Deus, que isso seja agora, agora e sempre!
OS PERFUMES DIVINOS
A alma que se aproxima de Deus às vezes experimenta em si a doce impressão de que perfumes misteriosos a envolvem e a impregnam completamente. Não são como os perfumes naturais que afetam os sentidos. Não. Mas essas realidades espirituais têm meios de se manifestar à alma de modo análogo às emanações dos odores físicos. Nesse sentido existem perfumes espirituais. Eles têm o privilégio de não só serem mil vezes mais agradáveis que o mais requintado dos bálsamos, mas também, e sobretudo, de serem sobrenaturalmente benéficos. Eles fortalecem e se propagam. Sob o seu influxo, a alma desenvolve e respira livremente. E cresce. A vida, uma vida totalmente divina, é infundida nela por dentro. Ela se compenetra disso e percebe que a causa imediata de tudo é esse perfume misterioso.
Quando Deus faz a alma entrar em união imediata com as realidades espirituais, sobretudo consigo mesmo, algo similar acontece quando se percebem as propriedades sensíveis dos corpos; perfumes, por exemplo. A bondade de Deus tem o seu aroma, assim como tem um também a sua doçura, e de forma semelhante com os outros atributos divinos. Parece que tudo acontece como se, de fato, a alma fosse dotada de um olfato espiritual, harmonizado pelo Criador com os seres da ordem sobrenatural, que lhe são reconhecidos pelo olfato. Quando a alma quer traduzir para a linguagem humana o que experimenta em sua união íntima com Deus, não encontra melhor comparação: 'As coisas divinas me fazem experimentar prazeres que são para mim, na ordem espiritual, o que na ordem sensível são os prazeres do olfato impregnados pelo perfume das flores'.
Nessa intimidade, Deus quer falar com a alma predileta e suas palavras fluem docemente. A alma interior capta então toda a sua graça. Antes mesmo de serem articulados quaisquer sons, já a encantam a delicadeza e o suave perfume que exalam. Não queremos dizer certamente com isso que Deus possui lábios ou que Jesus deixa, por um momento, contemplar os seus. Não é isso; mas a alma interior e Deus estão tão próximos que se podem falar, como de uma boca para outra boca. Toda a afeição verdadeira, profunda e pura que lábios humanos poderiam expressar é refletida, sobre a alma interior, como uma projeção nascida da boca de Deus. Na expressão e no movimento desses lábios misteriosos, a alma subtende que agrada a Deus e que é amada por Ele.
Um delicioso perfume brota dos lábios divinos. Pode-se dizer que vem do mais íntimo do Coração de Deus e faz a alma interior provar todos os encantos de outros perfumes. Por que a essência divina não deveria ter o seu perfume? É isso que subtende a esposa na hora abençoada de sua união. Esse perfume que ela chama de 'essencial', essa 'mirra puríssima', já lhe antecipa algo das alegrias do céu. Uma espécie de atmosfera perfumada a envolve por completo. Ela se sente, ao mesmo tempo, isolada e protegida por esse ambiente, invisível e ao mesmo tempo tão real. E então pode amar a Deus sem reservas. E faz isso sem contratempos e sem esforço, movida por um instinto divino que a impele e a sustenta ao mesmo tempo. A alma interior saboreia essa nova maneira de viver desconhecida até agora, mas compreende que encontrou nela a verdadeira vida e então exulta de alegria.
A ALMA SE REJUBILA
O amor de Deus tem um calor que faz dilatar o íntimo da alma e a enche de alegria. Sob sua influência, a alma sente-se crescer, aumenta os limites de sua felicidade, à medida que se regozija. E assim, sempre sob a ação do fogo deste amor, ela se expande e se realimenta de alegria. E isso se repete sem cessar. A alma nutrida pelo Vosso amor, ó meu Deus, experimenta a sensação de que nela subsiste e se manifesta cada vez mais uma vida totalmente interior. Em certos momentos, o fluxo de calor é tão intenso que a alma não parece suportar. É quando até o coração físico se dilata - a exemplo do coração de São Filipe Neri - ou como que é transpassado de lado a lado por uma flecha - como aconteceu com o coração de Santa Teresa de Ávila. É o tempo da plenitude da graça.
A alma experimenta uma emoção indescritível quando se sente completamente unida a Deus pela primeira vez, quando Deus a enlaça espiritualmente nas profundezas de si mesma, quando recebe aquele maravilhoso hálito divino; quando, em suma, percebe que é parte de Deus e que Deus a envolve por completo. A percepção que faz dessa felicidade é a de se comparar a uma a uma esponja em alto mar, embebida por um oceano de pura felicidade, conhecida e ansiada por todo o seu ser. É tal a sua felicidade, que chora de alegria. Como é bom sentir-se unida a Deus e ser tão amada por Ele! É tão nova essa experiência, tão diferente de tudo que imaginava, que ela se sente dominada por um santo temor.
Se fosse possível dizer de forma humana, seria como que uma felicidade que se impregna na alma até os ossos. Sim, às vezes, até o corpo participa dessa experiência à sua maneira, mas o que pressente não é, nem de longe, o essencial, e nem o melhor. A alma tem os seus próprios deleites e são estes que valem verdadeiramente. A cada visita de Deus esse deleite aumenta. É o mesmo, mas ainda mantém o gosto de novo. É a graça de Deus que se infiltra completamente na alma e, com ela, a alma se deleita e se regozija em Deus.
Aumenta ainda mais esse deleite da alma a sua percepção de que outras almas são igualmente participantes da plena felicidade em Deus. A felicidade dessas almas aumenta a sua. O mundo espiritual nos oferece um grandioso espetáculo: o das almas que são verdadeiramente arrebatadas do amor por Jesus. Todos os corações puros que o conhecem são conquistados pelo Senhor porque Ele exerce sobre eles uma atração irresistível. Há flores que perscrutam o sol em seu curso diário de leste a oeste. Jesus é o sol das almas. Elas são iluminadas pela sua luz e aquecidas pelos raios do seu amor. Ele as atrai, as sublima, as eleva até Ele. E elas, como as flores em busca do sol, o perscrutam com um olhar de regozijo e graça, porque o amam muito, sem limites. Quanto mais puros os corações, mais unidos estão com Ele. Tudo o que há de mais nobre, mais generoso e mais puro nesta terra pertencem a Ele, porque são almas capazes de amar Jesus com um amor sem medidas. Isso é realmente grandioso de compreender e divino de contemplar.
A ALMA CANTA
Falar, e sobretudo cantar, é expressar em voz alta e sem medo, com alegria e com entusiasmo, os sentimentos mais íntimos do coração em relação a Vós. Com efeito, Vós tendes direito, e pleno direito, a essa sensível manifestação da estima e afeto que a alma nutre por Vós. Na verdade essa lei se impõe automaticamente no íntimo da alma, pelo menos em certas ocasiões. Sem isso, a alma tenderia a ser asfixiada se tivesse que esconder esse sentimento.
Assim, é preciso que ela possa falar, é preciso que ela possa cantar, mesmo quando estiver sozinha. É verdade que Vós estais sempre presente para ouvi-la, e isso basta a ela. Essa voz que fala e que canta agrada a Deus e, sendo de tal agrado, pode dizer tudo. A alma canta assim com todo o seu ser. Tudo o que a alma faz ou diz enseja paz, tranquilidade, harmonia: tudo está em ordem nesta alma, selada pela doçura e recolhimento que alegra o seu Deus. Pois, para Deus, essa voz é muito suave e agradável.
Quão bem recompensada é a alma interior por seus esforços, ó meu Deus, quando a fazeis conhecer que tudo o que ela diz, tudo o que ela faz, tudo o que ela sofre, torna-se a mesma voz melodiosa que chega até Vós e Vós a amais por isso! Não há ruídos, nem asperezas, nem afetações e nem dissimulações nesta voz da alma; não, ela é apenas suave, harmônica e amável.
E se pensarmos agora que também outras almas - cujas atividades, internas e externas, alinhadas perfeitamente à Vossa vontade, compõem uma melodia semelhante - juntam igualmente suas vozes, pensaremos ouvir, muito acima do burburinho do mundo, uma sinfonia incomparável, que reverbera e constitui um verdadeiro prelúdio do cântico eterno. Abstraídas do mundo, abrem aquela janela da alma que dá vista para o infinito. E permanecem assim, no maior tempo possível, nessa misteriosa solidão diante desse horizonte sem limites, mesmo que não vejam nada, mas apenas respirando o ar divino em plenitude.
Escutemos, pois, o canto dessas almas silenciosas e desconhecidas que amam a Deus plenamente e que sabem falar com Ele sem o ruído das palavras, e apenas com o bater do seu coração, incensado com o fogo do amor. Ele vibra e reverbera constantemente nessa imensidão. Que esse canto de amor possa juntar também ao vosso, ao de Maria e José, ao dos anjos e ao de todos os santos.
DEUS E A ALMA ENCANTAM-SE MUTUAMENTE
Vós amastes a alma, ó meu Deus, comunicastes a vossa vida a ela, e a cumulastes de beleza. E a alma agora tornou-se parecida a Vós, a ponto de se confundir em Vós. Vós a sublimastes em encanto e ela também Vos encanta. E agora estais ligado a ela por enlaces invisíveis aos olhos do corpo ou mesmo da imaginação, e que não podem ser apreendidos com as mãos e que, no entanto, são tão reais, tão suaves e tão intensos. Uma atração livre e irresistível os mantém voltados um para o outro, mutuamente unidos, arrebatados e presos um ao outro. E a alma percebe que Vos envolve com a sua doce influência da mesma forma que ela mesma se sente completamente inundada pela Vossa, ó meu Deus!
Quem pode inferir, ó meu Deus, a profundidade e o poder de tal encanto? Nada lhe escapa. Invade todo o ser, ousamos dizer que até a medula. É uma divinização ab intra. Dir-se-ia então que o Vosso ser, intangível por nada, torna-se o próprio ser da alma. Esta comunga - ou melhor, talvez seja comungada - de Vossa plenitude. É felicidade insondável, paz, alegria, fortaleza, segurança, luz, calor, vida, tudo, pois Vós sois tudo. É mais do que tudo, porque estais acima de tudo. Podemos contemplar-Vos por dentro. Possuir-Vos em nós, e não apenas Vos provar, mas sermos como Vós.
Tudo isso basta-nos para morrer. E, no entanto, é apenas um amanhecer, nada mais do que um começo. O horizonte se abre em infinitas e belas perspectivas. Deus compartilha o presente com abundância, parecendo esgotar o seu tesouro de graças. E, no entanto, o que está por vir será ainda muito mais!
NADA AGRADA MAIS A DEUS DO QUE UMA ALMA QUE IGNORA A SI MESMA
Nada está escondido de Vós, ó meu Deus. Vós não deixais escapar o menor dos movimentos de uma alma que Vos ama. Parece até que ficais totalmente ocupado em captar a menor manifestação do amor dela por Vós. Ela pode se moldar em discrição e modéstia como um véu que possa esconder por completo, de todos e de si mesma, o pouco que ela julga fazer por Vós, mas é tempo perdido. Não existem véus para Vós, ó meu Deus. O esforço que a alma faz para manter em segredo o quanto Vos ama, só aumenta o Vosso encanto por ela. Nada pode agradar-Vos mais do que uma alma que busca o silêncio, que ignora a si mesmo e que quer agradar somente a Vós. Ela se torna o foco de todas as Vossas complacências, e doce atração aos Vossos olhos. Atrai, sobretudo, o Vosso Coração. O vosso amor é exposto para a alma que amais em ocasiões sem fim. Alma escolhida e bendita entre todas, quem poderá exprimir a medida de sua felicidade?
ELOGIO À BELEZA DA ALMA
Nada é tão doce para o coração da alma interior, ó meu Deus, do que ouvir-Vos elogiar a sua própria beleza. E não é por vaidade de sua parte; não, de jeito nenhum. Ela sabe muito bem que tudo o que possui provém de Vós. O que a agrada é apenas Vos agradar. O que ela ama é Vos amar. Toda alma que compreende o que sois não possui outra ambição senão essa: atrair o Vosso olhar e o reter em si como pleito de sua beleza infinita.
Depois de tanto empenho e tanta dedicação, eia que a obra está concluída: e Vós a contemplais com agrado, como obra do Artista Divino, perfeita e bela. Este louvor, tão precioso, é dirigido a cada alma que entra no Céu. Mas tanto amor não pode, às vezes, esperar por esse momento e precisa ser manifestado à alma o quanto antes. É difícil para Deus ficar inerte e em silêncio. Ele então se expressa numa frase, mas com que palavras: 'Como és bela, minha alma amada! - Tota pulchra es, amica mea - como a coisa mais bela do mundo. Eu preciso te dizer isso, não tenho receios de te dizer isso, porque é verdade e o teu coração está pronto para ouvir. Sim, Eu, o teu Deus, o digo e não duvides sequer disso por um instante: és tão bela como a verdadeira beleza e assim sempre serás. Alegra-te por isso'.
Além disso, há um entonação na voz divina que não pode enganar. A emoção que domina a alma até o mais íntimo de si só pode provir de Vós, ó meu Deus. Somente Vós podeis agir assim no íntimo da alma. Só Vós podeis derramar tanta paz, tanta segurança, tanto júbilo interior. Uma árvore é conhecida pelos seus frutos e o trabalhador é conhecido pelas suas obras.
Da graça divina, pode-se dizer que a alma 'é mais bela que a beleza'. Há um encanto infinito nela. Quando perscruta e assume uma alma, Ele a comunica esse encanto delicado, penetrante, delicioso, indefinível. Essa graça é toda feita de doçura, de harmonia, de transparência e de claridade, mas também temperada e provada. Nada é imposto, nada é violento, nada é forçado. Ele exerce o seu domínio de forma suave e imperceptível, envolvendo a alma num espírito de paz, silêncio e santidade. A alma se enleva sem esforço e sem fadiga, esquecendo-se de tudo e de si mesma, para ser mais sensível à graça. Ela se sublima na sua modéstia. Sim, a graça divina é, com efeito, 'mais bela que a beleza'.
Mas a beleza e a graça de uma alma interior harmonizam-se muito bem com a força. A alma interior é um dínamo que luta e continua a lutar o bom combate. É uma alma apta a conquistas, que refreia a ação dos demônios e de todos os seus infelizes prisioneiros. Uma alma interior causa mais dano aos Vossos inimigos, ó meu Deus, do que mais de cem almas moldadas pela tibieza. Ela vale por um exército, mas que não combate sozinha. Vós a assistis sempre com bons soldados, com valorosos soldados. Ela os instrui, ela os molda, elas os impregna com a sua fortaleza. Ela comunica a sua energia a eles, os encoraja na luta e lhes assegura, finalmente, a vitória. Em todos os tempos, Deus envia à Igreja algumas dessas almas singulares, tremendas e temíveis como um exército em batalha, que salvam e salvaram tudo o que parecia já perdido. 'Dai-nos, Senhor, almas verdadeiramente interiores'!
A VIRGEM MARIA, ELEITA DE DEUS
Olhando bem as coisas, ó meu Deus, parece que aquela alma privilegiada, verdadeiramente única, que é chamada por Vós nos Cânticos, como 'minha pomba, minha imaculada', que não excita o ciúme de nenhuma alma mas, ao contrário, desperta grande admiração e louvor de todos, é a doce e pura Virgem Maria, nossa Mãe. Somente a Ela se aplicam vossas palavras magníficas, sem quaisquer restrições e sem limites.
Ela é a vossa única Filha, Pai adorado; é a Mãe amorosa de Jesus, Filho único do Pai, por Ela gerado para ser o nosso Irmão para nos salvar. É a Santíssima Esposa do Espírito de Amor, a quem deve ser Mãe sem deixar de ser a Virgem das Virgens. Não há criatura pura, ó Santíssima Trindade, que vos seja tão querida como ela. É a vossa obra única, a eleita de Deus. Depois do Coração de Jesus, não há coisa mais preciosa para se conhecer ou mais doce para contemplar do que o Coração Imaculado da Santíssima Virgem. É um abismo de perfeição, de esplendor, de beleza, de graça, impossível de descrever.
O Coração de Maria é a obra prima do Espírito Santo. Ele a enriqueceu com todas as perfeições, com todas as virtudes. Sabemos que desde o primeiro instante de sua concepção, nossa Mãe desfrutou de todo o amor divino. No momento de sua criação, ela se inclinou para Deus para unir-se a Ele em perfeição; e o seu amor aumentava a cada momento, porque esse gesto se repetia ao longo de toda a sua vida e, cada vez, com maior profundidade e intimidade. O seu coração é a pureza em si, sem mancha ou sem mistura de coisa alguma.
A Santíssima Virgem recebeu desde o primeiro momento de sua vida o poder de amar em estado puro e perfeito. E ela fez isso imediatamente; ela não conheceu pecado ou imperfeição... O seu amor pelas criaturas era uma continuidade da manifestação do seu amor a Deus, que não perturbou em nada a sua absoluta e santíssima pureza. Em Jesus ela amou plenamente a Deus, sendo Ele, ao mesmo tempo, o seu Deus e o seu Filho. Ela amava São José, São João, as santas mulheres, como ama todos os homens que se sucederam ao longo dos séculos. Ela ama todos os seus filhos com amor profundo e real, porque os ama pelo amor a Deus.
A ALMA ABSORVIDA POR DEUS
Durante as duras provações a que ficou submetida para conquistar o vosso amor e durante as vossas longas ausências, ó meu Jesus, a alma interior não ficou paralisada. Por meio de obras e, sobretudo pelos seus pensamentos, forjou fabricar um mel de muita doçura e de odor delicioso, que agora ela vos oferece. E que Vós aceitais. Parece à alma que ela se fez alimento para ser absorvido por Deus, sem perder, entretanto, a sua real integridade. É como um alimento misterioso, integral em obras e substância, transformado em alimento digno de Deus, ainda que não acrescente nada à essência divina. A mudança é uma absoluta conversão no próprio Deus: sed tu muraberis in me (Santo Agostinho). A rigor, a alma se mantém substancialmente no que é e, no entanto, não é mais a mesma. Vê, pensa, age e ama como Deus, com Deus e em Deus. Sem transubstanciação, mas sob uma transformação integral. Feliz e ditosa transformação!
Durante muito tempo Deus foi o sustento da alma interior e, pouco a pouco, Ele a transformou em uma imagem de si mesmo. Até o momento em que, transformada integralmente segundo a sua Vontade, Ele toma para si essa alma divinizada, como seu próprio alimento. Antes, era a alma que se sentia fortalecida internamente por um alimento que era, ao mesmo tempo, doce e misterioso. Emanava dela uma grande felicidade, uma felicidade íntima e particular, a sua felicidade plena. Sentia possuir os limites da felicidade possível neste mundo. E agora percebe que mesmo isso era nada. Uma alegria completamente nova acalenta agora o seu coração, uma vez transformada em alimento digno de Deus. Uma felicidade que não tem medidas, pois absorvida e inebriada pelo próprio Deus.
É certo que a alma interior não ignora que nada pode acrescentar à felicidade que possui em Deus. No entanto, tudo se passa como se, nestes ditosos momentos, a alma fizesse a própria felicidade de Deus. A alma experimenta não apenas a sua alegria interior, mas também a de ser causa da alegria divina. Nenhuma comparação pode fazer entender o que significa tal felicidade. Seria necessário extrapolar e sublimar ao infinito a felicidade da mãe mais abnegada que alimenta o seu filho com o melhor de si e sustenta toda a sua felicidade em fazer feliz aquela criança tão amada que aperta fortemente ao coração. Seria preciso se elevar até Maria, Virgem e Mãe. E a alegria da alma interior não dilui, não se desvanece nunca. Quanto mais se dá a Deus, mais, muito mais, recebe de Deus, fonte infinita de amor. Recebe e se sacia deste amor, que inunda o seu coração, e que a faz estremecer de alegria.
A ALMA INTERIOR É MAIS OU MENOS INCOMPREENDIDA
Muitas almas, mesmo as mais piedosas, não compreendem os impulsos da alma interior, o seu verdadeiro estado, o que legitima as suas ações. Devemos nos surpreender com isso? Não mesmo! Para julgá-la com justiça, seria preciso ter um conhecimento muito profundo dos efeitos misteriosos do Amor divino ou padecer os males que a alma padece e isso é muito raro. E o que seria ideal, a união plena da ciência especulativa e experimental, o conhecimento pessoal, é ainda mais raro. Um São João da Cruz, por exemplo, não é dado ao mundo a cada geração de homens. Ainda que fosse, nem todas as almas feridas pelas provações do Amor divino poderiam se submeter a ele como confessor. Elas teriam que conviver com o fato de serem mais ou menos incompreendidas.
Seria como fazer a seguinte pergunta à alma interior: 'o que o Bem-Amado tem a mais por você do que tem para os outros?' E a alma poderia então responder: 'Não sei como você vê meu Bem-Amado, mas eu o vejo em beleza infinita. Ele possui todas as riquezas, sabedoria, poder, bondade e mansidão. É manso, firme e poderoso. E, no entanto, é suave, mais suave que uma mãe e nada, nada mesmo, lhe nada. Quanto mais o conheço, mais sou cativado pelo abismo infinito de suas perfeições. E tudo isso ele possui em paz, em harmonia, em perfeita ordem. Ele é muito simples, não apenas em suas palavras e ações, mas em si mesmo. Não me canso de o contemplar e amar. Ele é a alegria dos meus olhos e do meu coração'.
PARTE IV
A UNIÃO ESTÁ NA CRUZ
Os sinais da afeição de Deus assumem duas formas muito distintas: ou podem ser agradáveis e muito suaves ou então dolorosos e excruciantes. Deus eleva a alma e depois a rebaixa; primeiro a sublima e depois a aniquila. Mas sempre em união a Ele. Sim, apesar das aparências em contrário, mesmo nas fases de provação Deus e a alma estão unidas profundamente. E não falamos aqui apenas nas provações purificadoras da alma, prelúdio obrigatório da união, mas sobretudo naquelas dores redentoras que a alma experimenta muitas vezes quando alcança uma união transformadora e perfeita.
Há neste caso uma comunhão real com os sofrimentos de Jesus Crucificado. E esta união é tanto mais intensa quanto maiores e mais profundas são as dores. Como explicar esse mistério? Parece que São Paulo nos dá a resposta quando afirma: 'estou crucificado com Cristo'. União no sofrimento e no amor! A alma interior está verdadeiramente pregada na Cruz com Jesus, e como que pelo próprio Deus! É que quanto mais querida uma alma é ao Coração do Pai, mais Ele quer que ela seja a imagem viva de seu Filho amado. Daí o cuidado de a manter sempre na Cruz, de modo a fazer compreender, de maneira viva, que o Amor não é amado e que a própria alma interior ainda não lhe oferece todo o amor de que seria capaz.
Mais ainda: dá a entender à alma que Ele, a suma Verdade, não é conhecido e que a própria alma interior não o contempla com a devida grandeza. Então a alma sente que o seu coração se livra da dor e se deleita de uma alegria secreta inefável. É a alegria da caridade terrena, sem dúvida imperfeita se a compararmos com a alegria do céu, mas muito superior que toda a felicidade da terra. Sim, o sofrimento que se aceita humildemente nos une a Deus. Diríamos que essa união é como uma mortalha de aço que nos envolve primeiro com toda a dureza, mas que nos acalenta e nos comprime a alma cada vez mais suavemente ao Coração de Deus. A amargura diminui continuamente; a alegria aumenta sempre e a união torna-se cada vez mais íntima com cada nova dor acolhida; se nem sempre é tão sentida, é sempre mais perfeita e profunda. É que para sofrer bem é preciso amar muito e, nessas condições e sob iguais circunstâncias, quanto mais e melhor se sofre, mais e melhor se ama. É por isso que o sofrimento constitui um sinal tão precioso da afeição de Deus.
FECUNDIDADE DA CRUZ
A vossa Esposa, ó meu Deus, domina o mundo das planuras do vosso amor. Mas tal dominação não tem nada de dureza ou tirania. É tudo bondade e somente bondade. Esta alma foi graciosamente elevada acima das outras. Ela sabe disso e vê isso tão claro quanto o dia e disso nunca se esquece. Ao contemplar as coisas de cima e muito longe, compreende que é para poder iluminar os que ainda se encontram na escuridão e para levar até Vós os que se podem extraviar. Se vive nos cumes e tão perto do céu, é para elevar aqueles que ainda estão presos ao chão ou que estão ameaçados de ser engolidos pelo mar. Vós assim o quisestes, ó divino Salvador Jesus; uma vez elevado à Cruz, atraístes tudo para Vós e cada alma unida a Vós pelo amor eleva o mundo inteiro.
De onde vem esse poder sobre as almas e sobre o mundo? Sem dúvida do amor, mas daquele amor que se alimenta de sacrifícios. É preciso dizer: a vocação à vida interior profunda é uma vocação ao martírio. Com efeito, a alma chamada por Deus não deve apenas passar pelas duras reformulações de sua sensibilidade, pela ainda mais dolorosa impotência de suas faculdades superiores ou ter sido forçada, apesar de si mesma, a renunciar ao seu modo de agir normal e natural; mas padecer sempre novas imolações, não tanto para si mas mais pelos outros.
Ela sofre por não ser capaz de amar a Deus como Ele merece ser amado. Ele sofre ao vê-lo tão pouco conhecido e tão pouco amado. Ainda mais: ela sente o mundo e os seus pecados pesando sobre ela com todo o seu peso. O mistério da agonia e da cruz é renovado nela e ela dele comunga na medida do seu amor. A sua vida, como a de Jesus, tende a ser 'cruz e martírio'. Mas é preciso dizer também: é um martírio amado. Que prova melhor de afeição se pode dar a Jesus e aos seus irmãos do que essa? Onde encontrar uma prova de amor mais autêntica? E o fruto da caridade é a alegria, uma alegria totalmente espiritual, servida no mais íntimo da alma e compatível com a dor sublime, que então se torna como a sua fonte. O que Jesus não sofreu na Cruz! E ainda (para não falar da visão beatífica), qual não deveria ter sido a sua alegria em glorificar ao Pai e salvar os seus irmãos pelos seus sofrimentos! Mistério profundo, é verdade, mas como ilumina o sofrimento das almas esposas e vítimas, e como permite vislumbrar as dores da sua Mãe - Nossa Senhora das Dores!
É por isso que essa alma atrai o Rei dos Reis e o cativa. Ele se encanta por se encontrar nela e poder fazer com que os homens nela se beneficiem com os frutos de sua imolação! Trata-se como uma renovação aparente das alegrias do Calvário, uma vez que os seus sofrimentos não podem ser renovados. E uma vez que esta alma compreende tão bem os seus desejos e realiza tão bem as suas vontades, por que não deveria Ele, por sua vez, cumprir todos os desejos de sua Esposa? Pois é exatamente isso o que acontece. Deus coloca todos os seus tesouros à disposição da alma interior. A alma pode tirar deles o que quiser e distribuí-los como quiser.
Por causa da profunda harmonia que existe entre ambos, não há nenhum temor de conflito nessa união. Se fosse necessário, Jesus saberia fazer a alma entender intimamente que tal atividade não corresponde aos seus planos e, então, a alma haveria de renunciar a ela imediatamente, sem pensar mais nisso. A alma é verdadeiramente realeza. Ela possui todas as coisas sob o seu domínio, as mantém sob controle e tem a percepção de que participa ativamente da vossa monarquia universal, ó meu Jesus, e a tudo dirige juntamente convosco e para vós com um único propósito: a glória da Santíssima Trindade. A partir daí, nada pode assustá-la e nem perturbá-la no íntimo. Ela não apenas sabe e crê, mas, de certa forma, também vê e compreende como todas as coisas se movem para a vossa glória, ó meu Deus, e para o bem daqueles que vos amam: 'Deus faz com que todas as coisas cooperem para o bem daqueles que o amam' (Rm 8, 28), até mesmo os seus pecados, como acrescenta Santo Agostinho. Os filósofos sonharam encontrar, através do pensamento, a ordem do mundo para contemplá-la; a alma unida a Vós, ó meu Deus, a contempla sem nenhum esforço e de muito mais alto.
A AÇÃO DA ALMA UNIDA A DEUS
Toda alma que vos ama, ó meu Deus, é uma alma forte e a sua força aumenta com o amor. Quando ela vos ama com todo o coração, o seu coração se alarga e a sua força torna-se então um verdadeiro poder. Como isso acontece, ó meu Deus? Pela força do amor. Quanto mais profundo for este amor, mais íntima e perfeita será a união entre Deus e a alma.
Vós sois um Deus onipotente. Tudo está sujeito ao vosso poder: céu e terra, anjos e homens. Nada acontece no mundo sem a vossa expressa permissão; uma nação não pode desaparecer e nem pode morrer um pássaro qualquer sem que Vós o permitais. Pois bem, a alma intimamente unida a Deus pela força do amor compartilha desta força divina e deste poder. Torna-se para as demais uma fonte de energia e de fortaleza. Ela orienta e as outras acolhem; exorta e é correspondida; caminha e faz seguidores; eleva-se e eleva as outras às alturas da graça. O que dá um encanto especial a esta alma é a suavidade da graça e a fortaleza da sua resposta. Vós, ó meu Deus, tudo fazeis com doçura e firmeza - suaviter et fortiter.
Todas as ações desta alma interior são medidas, ponderadas, equilibradas, coerentes. Ela fala quando é conveniente falar; permanece em silêncio quando é melhor ficar em silêncio. Segue em frente quando é preciso; mas, outras vezes, se retrai e se recolhe silenciosamente sem que os outros percebam. E assim em tudo. É isso que lhe confere um encanto especial. Ela possui um zelo próprio, moldado, burilado, quase perfeito, que nos extasia. Não possui nada além e, no entanto, nada lhe falta. É um fruto maduro e atraente, agradável à vista e ao paladar, pois possui alguma coisa de divino. Porque Deus faz bem todas as coisas.
PODER DA ALMA NA AÇÃO E NO SILÊNCIO
O amor que consome a alma interior por dentro manifesta-se externamente pela riqueza, abundância e perfeição das suas obras. A alma interior é serena e pacífica, mas não inativa. Onde quer que esteja, o amor atua. Quanto mais forte, mais poderosa é a sua ação. Ela deseja ardentemente o bem de Deus e trabalha incansavelmente para alcançá-lo. Mesmo privada dos meios ordinários de ação, que são a palavra e as obras, ela continua a atuar, sempre com mais eficiência do que nunca. Ela se recolhe em oração, no sofrimento e no despojamento, e tudo isso em harmonia.
Deus transforma a madeira qualquer em uma flecha que atinge o seu objetivo. Ilumina aqueles que não o conhecem e conforta aqueles que não pensam nele. No silêncio, sem rumor e muitas vezes ignorado, Ele comunica a vida, a verdadeira vida - aquela que não tem fim. Por que se surpreender com essa ação oculta e o seu poder? O amor uniu a alma interior a Deus. Deus lhe deu prometeu tudo e tudo é doar-se a si mesmo. Ele se faz seu prisioneiro e seu cativo. Mas, dando-se e entregando-se assim, nada perde do seu poder e grandeza, e continua sendo sempre o bom Deus, constantemente ocupado em fazer o bem às suas criaturas.
E da mesma forma que Deus e a alma interior possuem os mesmos gostos e sentimentos, também manifestam igualmente o desejo e o poder de fazer o bem. É claro que Deus poderia agir diretamente por si mesmo nas almas; mas Ele prefere não ser apenas o artesão, mas também o cinzel. Pode então a alma experimentar algo mais belo e mais suave do que comungar conscientemente da ação santificadora de Deus?
Como é bom, ó meu Deus, vos servir com mãos cheias! Nada pode ser mais belo para a alma interior do que experimentar essa união íntima com Deus, numa posse mútua e completa. Pode-se dizer que entre Deus e a alma existe a mais perfeita igualdade, uma afeição de pura identidade, não na ordem do ser, mas na ordem do amor. A alma sente o poder divino e a bondade divina. Na união íntima com Deus, e como uma única vontade, ela busca comunicar aos outros tanta riqueza e felicidade. Mas tudo é regulado pela sabedoria da Divina Providência Não compete à alma a livre escolha dos amigos de Deus. O seu ofício consiste em ir ao encontro deles e, ao reconhecê-los, transferir por Vós e convosco, ó meu Deus, os imensos tesouros do vosso amor.
AÇÃO SOBRE AS ALMAS
O bem se expande espontaneamente. A alma interior, rica em Deus, dá-a a quem sinceramente a pede - a uns mais, a outros menos - segundo a vontade de Deus e as disposições particulares de cada um. Um recebe trinta, outro sessenta, outro cem. Mas todos se nutrem da sua influência benéfica. Ela se dá a todos e dá tudo a todos. O que se tem como certeza é que, do seu afeto sincero, abnegado, desinteressado e sobrenatural, pode-se dizer o que foi dito sobre o amor de uma mãe pelos seus filhos: 'Cada um recebe a sua parte e todos o tem por completo'. Assim como não existe um bem que possa ser comparado a Deus - o Bem absoluto, também não há dádiva comparável àquela que a alma interior distribui a todos aqueles que a ela se dirigem com o coração ávido desse Bem de bens.
A alma interior exerce, com efeito, uma verdadeira atração sobre as outras almas, principalmente sobre aquelas tocadas pela graça. Estas entendem, como que por instinto, que existe uma misteriosa harmonia entre elas e aquela alma privilegiada. Então elas se aproximam dela cheias de confiança e se sentem seguras à sombra dessa alma. Elas estão convictas que podem compartilhar com ela as suas tristezas, os seus medos, os seus desejos e suas esperanças e que, não serão apenas compreendidas - o que já é muito, mas também que serão iluminadas, consoladas, fortalecidas e vivificadas. Em suma, elas encontrarão assim, de uma só vez, tudo o que lhes falta. E isso é verdade. É por isso que uma alma plenamente interior é tão preciosa. E é por isso que, embora escondida na maioria das vezes, ela exerça uma influência tão profunda.
Apesar de pensar pouco em seu próprio interesse e alegremente tenda a se esquecer de si mesma - e talvez até por causa disso - a alma interior vê que todas as coisas convergem para o bem. Tudo o que faz tem frutos bons. Isso é porque a sua vontade, perfeitamente unida à vontade de Deus, tende a se tornar tão eficaz quanto à vontade divina. O que a alma empreende não é para ela, mas somente para Deus e segundo a vontade de Deus. O que ela faz - mais do que ela mesma - é Deus quem faz por meio dela. Por que se surpreender, então, com tantos frutos? Mesmo o que parecem ser perdas aparentes acabam, no final, trabalhando de alguma forma a seu favor. Acontece com ela como seria com Jesus. Na hora em que tudo parece definitivamente perdido é quando, ao contrário, tudo está definitivamente alcançado. Da morte provém a vida e, da humilhação, obtém-se a glória. A última palavra é sempre proferida pelos amigos de Deus.
MATERNIDADE ESPIRITUAL
Deus dá à alma interior, como sua Esposa, uma verdadeira fecundidade espiritual. Assim, existem algumas almas no mundo que estão unidas a ela e devem nutrir-se dela como uma mãe alimenta os seus filhos. Não é necessário que ela conheça todas essas almas para se encarregar delas diante de Deus. Porém, às vezes, quando Ele julgar conveniente, Deus disporá de tal modo que a mãe e o filho espiritual se conheçam. Este encontro será de uma profunda alegria para ambos, totalmente espiritual e de coração. A alma interior não pode comunicar a vida divina senão do modo como o Pai a comunica ao Filho e o Filho ao Espírito Santo. A carne não possui nenhuma influência porque não há nada aqui para ela. O que nasceu do Espírito é Espírito e assim deve permanecer.
Nas origens das famílias religiosas, há sempre uma alma que vive nos cumes perto de Deus. Os problemas geralmente caem sobre ela em grande número como as gotas de uma chuva tempestuosa ou os flocos de uma tempestade de neve. Mas o amor que ela guarda em seu coração é mais forte do que tudo. E assim, o que seria motivo para a prostrar, a eleva; o que poderia extinguir a sua chama, a impele. O obstáculo torna-se uma solução e a ruína é o começo da prosperidade. Então ela assume toda a sua fortaleza e segue em frente no seu caminho, atraindo e arrastando tudo atrás de si.
A LUTA CONTRA O MAL
No mundo espiritual, a alma interior constitui uma força. Ela ama a Deus. E nada é tão forte quanto o amor divino. A alma interior a impõe a quem a conhece como tal e também a quem não a conhece. É uma fonte de energia e nela os mais frágeis são saciados. Os fortes encontram nela meios de se fortalecer ainda mais.
Entretanto, os maus a temem instintivamente. Os demônios fazem guerra contra ela e, muitas vezes, uma guerra cruel. Mas ela sempre triunfa. Além de conseguir rejeitá-los, ela também os derrotam pela mera ação do seu coração unido a Deus. Pode até mesmo expulsá-los daqueles que estão dominados pelo mal. A alma tem em suas mãos, à sua disposição, todos os meios disponíveis aos santos, ao longo dos séculos, para derrotar o mundo, para derrotar o demônio e para derrotar a si mesmos. E embora possa nunca ter ouvido falar sobre tais meios, ela os possui e os utiliza. O Espírito Santo, que a move em todas as coisas, faz com que ela tenha conhecimento deles. E, então, ela fica muito feliz mais tarde ao descobrir que um santo ou mesmo uma alma piedosa utilizou deste mesmo procedimento antes dela para obter a mesma vitória.
Existe uma harmonia maravilhosa entre as obras de Deus, mesmo que estejam separadas por séculos inteiros. Em todos os tempos, mesmo nos mais sombrios, Deus teve sempre os seus fiéis amigos, os seus intrépidos defensores, os seus valorosos cruzados, para lutar com coragem o bom combate, cada um ao seu modo, dando fortaleza e confiança às almas de boa fé.
O AMOR DIVINO IGNORA O CIÚME
A alma interior não intenta guardar para si mesma essa felicidade e anseia por compartilhá-la com os outros. Parece que assim saberia amar ainda mais o seu Deus, o seu 'amigo', se o amasse em união com as outras almas a quem pudesse ter comunicado algumas centelhas do fogo que a consome. O Amor Divino ignora o ciúme humano. Quando é dado, não se apaga, mas se incendeia. É fato que a alma interior não deseja que ninguém no mundo possa amar a Deus mais do que ela; mas se tal acontecer, ela ficará feliz por isso. Quanto mais amado for Deus, mais feliz ela será. A perspectiva de almas mais avançadas do que ela na intimidade divina não faz senão a estimular a um ardor maior. Ela deseja e ora que essas almas amem ainda mais e comunga humildemente desse amor. A sua alegria é oferecer ao 'Amado' o afeto destas almas privilegiadas e ela o ama de todo o coração.
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'Ficai comigo, Jesus, não me abandoneis; ficai sempre, sempre comigo. Que eu vos possa ter no mais íntimo do meu coração, presente e escondido ao mesmo tempo. Fazei da minha alma um lugar para vosso deleite e vosso repouso, e que eu não vos possa perturbar em nada'.
'Estarei aos vossos pés, contemplando-vos e amando-vos no silêncio e vos oferecendo todo o pouco que tenho. Reinareis inteiramente sobre mim num reinado que perdura para sempre. Obrigado, meu Deus, por tanta bondade. Não tenho nada a dizer, só quero vos amar; sim, eu vos amo. Sim, gostaria de repetir dia e noite esta frase como sendo a única capaz de vos agradar e ser digna de vós: Eu sou vosso, ó meu Jesus e meu Deus; eu sou inteiramente vosso, ó meu Salvador. Quero tudo o que quiserdes; quero que permaneceis em mim e sejais todo meu, como sendo tudo para mim, cada vez mais para mim e para sempre. Ficai comigo, ó meu Jesus! Uni-me a Vós e em vós me consumais! Divinizai-me!'
(Texto completo da obra 'A Vida Oculta em Deus' - Partes I, II, III e IV - de Robert de Langeac; tradução do autor do blog)