segunda-feira, 26 de agosto de 2013

SOBRE A TRISTEZA

Não se pode enxertar um cavaco de carvalho em uma pereira; são duas árvores de naturezas opostas. Também não é possível enxertar a ira, nem a cólera, nem o desespero, na caridade, ou pelo menos seria extremamente difícil. Quanto à ira, já falamos dela no discurso do zelo (Livro X, caps. XV-XVI); quanto ao desespero, a não ser que o reduzamos à justa desconfiança de nós mesmos, ou então ao sentimento que devemos ter da vaidade, fraqueza e inconstância dos favores, assistência e promessas do mundo, não vejo que serviço possa prestar ao divino amor.

E, quanto à tristeza, como pode ela ser útil à santa caridade, já que a alegria está entre os frutos do Espírito Santo, junto à caridade? Não obstante, o Grande Apóstolo diz assim: 'A tristeza que Deus inspira opera a penitência estável em salvação, mas a tristeza do mundo traz em si a morte' (Gal 3, 22; 2 Cor 7, 10). Há, pois, uma tristeza segundo Deus, a qual é exercida ou pelos pecadores na penitência ou pelos bons na compaixão pelas misérias temporais do próximo, ou pelos perfeitos que deploram, se queixam e se compadecem das calamidades espirituais das almas. Davi, São Pedro e Madalena choraram pelos seus pecados. Agar chorou vendo seu filho quase morto de sede. Jeremias chorou sobre as ruínas de Jerusalém e Nosso Senhor, sobre os Judeus. O Seu grande Apóstolo gemendo, diz estas palavras: 'Muitos há, de quem vos falei muitas vezes e de novo vos digo com mágoa, que são inimigos da cruz de Jesus Cristo' (Filip 3, 18).

Há, pois, uma tristeza deste mundo que provém igualmente de três causas:

(i) Do inimigo infernal, que, por mil sugestões tristes, melancólicas e molestas, obscurece o entendimento, debilita a vontade e conturba toda a alma; é assim como um nevoeiro espesso que enche de secreções a cabeça e o peito e, por esse meio, torna a respiração difícil, colocando o viajante perplexo e sem rumo; assim também o maligno, enchendo o espírito humano de pensamentos tristes, tira-lhe a facilidade de aspirar a Deus, e dá-lhe um aborrecimento e desânimo extremo, a fim que desesperá-lo e de perdê-lo. 

Diz Plínio em sua História Natural que há um peixe a que chamam 'diabo do mar', o qual, revolvendo e empurrando para cá e para lá o lodo, turva a água à volta de si, para se manter nela como na emboscada, e dela, logo que avista os pobres peixinhos, atira-se sobre eles, assalta-os e os devora; é daqui que procede a expressão 'pescar em água turva', de que se faz uso comumente. Com o diabo do inferno se dá o mesmo, pois ele arma suas emboscadas na tristeza, quando, tendo tornado a alma perturbada por uma multidão de pensamentos aborrecidos, lançados aqui e acolá no entendimento, precipita-se depois sobre os afetos, afligindo-os com desconfianças, ciúmes, aversões, invejas, apreensões supérfluas dos pecados passados, e fornecendo uma quantidade de sutilezas vãs, acres e melancólicas, a fim de que rejeitemos toda sorte de razões e consolações.

(ii) De, outras vezes, a tristeza provém da condição natural, quando a melancolia nos é característica. Esta não é verdadeiramente viciosa em si mesma mas, no entanto, nosso inimigo serve-se dela fortemente para urdir e tramar mil tentações em nossas almas; como as aranhas que fazem suas teias quando o tempo está encoberto e o céu nublado, assim também esse espírito maligno nunca tem tanta facilidade para armar as ciladas das suas sugestões nos espíritos doces, benignos e alegres, como faz nos espíritos sombrios, tristes e melancólicos; pois os agita facilmente com mágoas, suspeitas, ódios, murmurações, censuras, invejas, preguiça e entorpecimento espiritual.

(iii) Finalmente, há uma tristeza que a variedade dos acidentes humanos nos acarreta. 'Que alegria posso eu ter', dizia Tobias, 'não podendo ver a luz do céu?' (Tob 5, 12). Assim Jacob ficou triste com a notícia da morte de seu José, e Davi com a do seu Absalão. Ora, essa tristeza é comum aos bons e aos maus, porém nos bons é moderada pela aquiescência e resignação à vontade de Deus; como se viu em Tobias, que, de todas as adversidades de que foi tocado, deu graças à divina majestade, e em Job que, por elas, bendisse o nome do Senhor; e em Daniel, que converteu suas dores em cânticos. Pelo contrário, quanto aos mundanos, essa tristeza lhes é ordinária, e converte-se em pesares, desespero e atordoamentos de espíritos; pois eles são semelhantes aos macacos que na lua minguante estão sempre sorumbáticos, tristes e zangados mas, ao contrário, na lua crescente, saltam, dançam e fazem as suas momices. O mundano é ronhento, intratável, acre e melancólico na falta das prosperidades terrenas e, na afluência destas, é quase sempre fanfarrão, alegre e insolente.

Realmente, a tristeza da verdadeira penitência não deve ser chamada propriamente tristeza; antes, é um desgosto ou um sentimento de detestação do mal, tristeza que nunca tem aborrecimentos ou enfado; tristeza que não entorpece o espírito, mas que o torna ativo, pronto e diligente; tristeza que não abate o coração, mas o eleva pela oração e pela esperança, e o leva a fazer os rasgos do fervor de devoção; tristeza que, no maior acesso das amarguras, produz sempre a doçura de uma consolação incomparável, consoante o preceito do grande Santo Agostinho: 'Entristeça-se o penitente sempre, mas sempre se alegre com a sua tristeza'. 

Diz Cassiano que a tristeza que opera a sólida penitência e o salutar arrependimento, nunca nos pesa. Essa é obediente, afável, humilde, bondosa, suave, paciente, porque deriva e descende da caridade. Posto que se estenda a todas as dores do corpo e à contrição de espírito, ela é, de certo modo, alegre, animada e revigorada pela esperança do seu proveito, e retém toda a suavidade da afabilidade e longanimidade, tendo em si mesma os frutos do Espírito Santo que o santo Apóstolo narra: 'Ora, os frutos do Espírito Santo são: caridade, alegria, paz, longanimidade, bondade, benignidade, fé, mansidão, continência' (Gal 4, 22). Tal é a verdadeira e tal é a boa tristeza que, por certo, não é propriamente triste nem melancólica, mas somente atenta e afeiçoada a detestar, rejeitar e impedir o mal do pecado do passado e também do futuro. 

Nós vemos também múltiplas vezes penitências muito apressadas, perturbadas, impacientes, chorosas, amargas, suspirantes, inquietas, fortemente ásperas e melancólicas, as quais, enfim, mostram-se infrutíferas e sem consequência de qualquer verdadeira emenda, porque não procedem dos verdadeiros motivos da virtude da penitência, e sim, do amor-próprio e natural.

'A tristeza do mundo opera a morte' (2 Cor 7, 10), diz o Apóstolo. Teótimo: é necessário evitá-la e rejeitá-la com todas as nossas forças.  Se ela é natural, devemos repeli-la contrariando os seus movimentos, sujeitando-nos a um regulamento e usando dos remédios e procedimentos julgados oportunos pela medicina. Se provém de tentação, devemos descobrir nosso coração a um diretor espiritual, o qual nos prescreverá os meios de vencê-la, conforme o que sobre isso já dissemos na quarta parte da Introdução à Vida Devota (Cap. XIV). Se for acidental, recorramos ao que está assinalado no livro oitavo (Cap. IV, V), a fim de vermos o quanto as tribulações são amáveis aos filhos de Deus e como a grandeza das nossas esperanças na vida eterna deve tornar quase desprezíveis todos os acontecimentos passageiros da vida temporal.

De resto, por entre todas as melancolias que nos podem advir, devemos empregar a autoridade da vontade superior para fazermos tudo o que pudermos em favor do amor divino. Certamente há ações que dependem tanto da disposição e compleição corporal, que não está em nosso poder fazê-las à nossa vontade. Pois um melancólico não poderia manter nem os olhos, nem a palavra, nem o semblante na mesma graça e suavidade que teria se estivesse descarregado desse mau humor; no entanto, ele pode, apesar de sua má disposição, dizer palavras graciosas, bondosas e corteses, e, não obstante o seu temperamento, praticar, por consideração, ações convenientes em palavras e em obras de caridade, doçura e condescendência. 

Tem toda desculpa aquela pessoa que nem sempre é alegre, pois não é dona da alegria para tê-la quando quiser; mas o que não tem desculpa é faltar com a bondade, a condescendência ou a brandura, pois isto está sempre no poder da nossa vontade e, para isso, não é preciso senão a resolução de combater e superar o humor e a inclinação contrária.

(Excertos da obra 'Tratado do amor de Deus' de São Francisco de Sales, Livro Décimo Primeiro, Capítulo XXI, Livraria Apostolado da Imprensa, Porto, 1950)