sexta-feira, 15 de novembro de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XIII)

 

59. Sempre que acontece fazermos o bem às almas dos outros, quer pela instrução ou pelos bons conselhos, quer pelas nossas palavras e bons exemplos, é então, mais do que em qualquer outro momento, que nos devemos considerar obrigados a ser humildes. E isso, por esta razão, que se fundamenta na fé e na verdade: Deus escolhe as coisas mais vis, mais fracas, mais vulgares e mais dignas de desprezo deste mundo para a realização dos seus grandes desígnios, e esta é uma verdade revelada pelo Espírito Santo pela boca de São Paulo: 'O que é estulto no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraco no mundo, Deus o escolheu para confundir os fortes; e o que é vil e desprezível no mundo, Deus o escolheu, como também aquelas coisas que nada são, para destruir as que são' [1 Cor 1,27-28].

Portanto, se Deus me fez o seu instrumento para semear a boa semente nas almas dos outros, para que produzam frutos para a vida eterna, que é a obra mais maravilhosa que procede de sua misericórdia e onipotência, devo, em consequência, considerar-me na verdade entre as coisas mais vis e desprezíveis deste mundo: 'aquelas coisas que nada são, para destruir as que são'. Este é um artigo de fé. Se uma alma se perdesse por causa do meu mau exemplo ou conselho, eu seria certamente o autor e a causa da sua destruição, mas se uma alma fosse salva por minha palavra ou ação, eu não poderia atribuir a glória a mim mesmo, porque a salvação dessa alma teria sido inteiramente obra de Deus, pois 'a salvação vem do Senhor' [Sl 3,9]. Os dons da ciência, da sabedoria e da eloquência, e até mesmo o de fazer milagres, são graças que se chamam gratuitas e, às vezes, são dadas até mesmo aos ímpios. Somente a graça santificante, que é dada àquele que vive em humildade e caridade, é a que torna a alma preciosa aos olhos de Deus; mas ninguém está seguro de possuí-la.

60. Como o Paraíso é só para os humildes, no Paraíso cada um terá mais ou menos glória, segundo o seu grau de humildade. Deus exaltou Jesus Cristo em glória acima de todos porque Ele era o mais humilde de todos: sendo o verdadeiro Filho de Deus, Ele ainda escolheu tornar-se o mais abjeto de todos os homens. E, depois de Jesus Cristo, a mais exaltada de todas foi a sua santa Mãe porque, sendo superior a todos na sua dignidade de Mãe de Deus, humilhou-se mais do que todos pela sua profunda humildade. Esta regra, ditada pela sabedoria de Deus, aplica-se a todos os outros Os santos são exaltados na sua glória no Céu em proporção à sua humildade na terra.

A Sagrada Escritura diz verdadeiramente que 'a humildade precede a glória' [Pv 15,33]. Jó havia dito o mesmo: 'Deus abaixa o altivo e o orgulhoso, mas socorre aquele que abaixa os olhos' [Jó 22,29]. Mas o Salvador do mundo falou ainda mais claramente quando, tendo mostrado que a humildade era necessária para entrar no reino dos céus, chamou uma criancinha e disse: 'Aquele que se fizer humilde como esta criança será maior no Reino dos Céus'  [Mt 18,4]. Quão preciosa deve ser a humildade quando Deus a recompensa com a glória eterna! Ó, minha alma, levanta os olhos da tua fé para o Paraíso e considera se não será melhor ser humilde na nossa curta existência aqui na Terra, de modo a entrar com alegria na glória incomensurável dessa eternidade feliz? 'A nossa presente tribulação, momentânea e ligeira, nos proporciona um peso eterno de glória incomensurável' [IICor 4,17].  Recomenda-te de todo o coração a esse Deus, que 'exalta os humildes' [Jó 5,11]. 

61. A prova da verdadeira humildade é a paciência: nem a mansidão do falar, nem a humildade do porte, nem o entregar-se a obras humildes, são indícios suficientes para julgar se uma alma é verdadeiramente humilde. Há muitos que têm toda a aparência de humildade exterior, mas que se irritam com qualquer adversidade mínima e se ressentem de qualquer pequena contrariedade que possam encontrar. Se, em certas circunstâncias, mostramos tolerância e paciência ao suportar um insulto, ao sofrer uma injustiça em silêncio, sem indignação e raiva ou ressentimento, é um bom sinal, e podemos começar a concluir que temos alguma humildade; mas, mesmo assim, a paciência só pode ser um sinal infalível de verdadeira humildade quando procede do reconhecimento de nossa própria indignidade e quando toleramos a injustiça porque sabemos que nós mesmos estamos cheios de falhas e somos merecedores dela.

E como é que nós estamos em relação a esta paciência, ó minha alma? Ó meu Deus, quanto orgulho encontro até na minha paciência! Às vezes sofro uma injustiça mas, ao mesmo tempo, sinto-me injustiçado. Sofro um insulto, mas considero que não o mereço; se os outros não me estimam, eu estimo-me a mim mesmo. Há aqui humildade? Nem um resquício! Os santos padres atribuem a Jesus Cristo as palavras que o profeta diz de si mesmo: 'porque estou prestes a cair' [Sl 37,18] porque, por causa das nossas iniquidades, que Ele tomou sobre si, considerou-se merecedor de todas as penas e opróbrios do mundo. Eis o modelo da verdadeira humildade!

Muito diferente é a paciência dos filósofos e dos estóicos, e a paciência das pessoas do mundo, da paciência dos verdadeiros cristãos. Os estóicos ensinavam uma grande paciência nos seus escritos e no seu exemplo, mas era uma paciência que resultava do orgulho, da autoestima e do desprezo pelos outros. Os mundanos, é verdade, suportam com paciência as muitas angústias e aflições do seu próprio estado de vida, mas é uma paciência que provém de motivos interesseiros ou da necessidade de prudência mundana. Só o cristão possui aquela paciência unida à humildade, que recebe todas as adversidades com submissão à vontade divina e esta é a paciência que agrada a Deus porque, como diz Santo Agostinho: 'O que o homem faz por soberba não agrada a Deus, mas o que faz por humildade lhe é agradável'.

62. Os seguintes pensamentos podem, por vezes, perturbar-nos: Quem sabe se as minhas confissões passadas foram boas? Quem sabe se senti uma verdadeira dor pelos meus pecados? Quem sabe se os meus pecados foram perdoados? Quem sabe se estou na graça de Deus? Quem sabe se obterei a graça da perseverança final e quem sabe se estou predestinado a ser salvo? Mas não é a intenção de Deus que esta incerteza nos cause estas ansiedades e escrúpulos. Em sua infinita sabedoria, Ele escondeu de nós os mistérios da sua justiça e misericórdia, de modo que nossa ignorância deveria ser uma ajuda muito eficaz para nos manter em humildade. Portanto, o proveito que devemos tirar de tais pensamentos é o seguinte: viver sempre no temor e na humildade diante de Deus, fazer o bem com diligência e evitar o mal, sem nunca nos exaltarmos no nosso amor-próprio acima dos outros, porque não sabemos qual será o nosso destino: 'Servi ao Senhor com temor' [Sl 2,11]  e 'Reverenciai o Senhor, vós, seus fiéis, porque nada falta àqueles que o temem' [Sl 33,10].

Tal é a vontade divina para conosco, manifestada através de São Paulo. Deus espera de nós sempre humildade, seja pelo que Ele nos revela, seja pelo que Ele nos esconde. Quando lemos as Sagradas Escrituras, encontramos muitas profecias provenientes do Espírito Santo que nos aterrorizam; mas muitas outras que nos consolam. Quando lemos os escritos dos santos padres, encontramos neles alguns julgamentos que são terríveis e alguns que são muito consoladores. Quando lemos as obras teológicas dos escolásticos, encontramos nelas opiniões sobre os temas da graça e da predestinação que nos alarmam e outras que nos encorajam. Por que isso acontece? Porque a Providência de Deus assim o dispôs para que, entre a esperança e o temor, permaneçamos humildes.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)