sexta-feira, 9 de agosto de 2019

DA PRÁTICA DA CARIDADE PELA MANSIDÃO

1. Antes de tudo, procurai nas ocasiões refrear a ira, quanto puderdes. Guardai-vos, depois, de dizer palavras desabridas, e ainda mais de usar de maneiras altivas e grosseiras, porque, às vezes, mais desagradam os modos ásperos do que as próprias palavras injuriosas. Se vossas irmãs [o texto foi dirigido originalmente à orientação espiritual de religiosas] dirigirem algumas palavras de desprezo, um pouco de coragem! sofrei-o; sofrei tudo por amor de Jesus Cristo, que suportou muitos outros desprezos maiores por amor de vós. 

Meu Deus! que miséria ver certas religiosas, que vão todos os dias à oração e tantas vezes à comunhão, mostrarem-se tão sensíveis e delicadas a toda palavra de pouco respeito e a todo ato pouco atencioso que se lhes fazem! Sóror Maria da Ascensão, quando recebia alguma afronta, corria logo ao altar do Santíssimo Sacramento e dizia: 'Meu divino Esposo, eu vos ofereço este mimo. Dignai-vos aceitá-lo e perdoar a quem me ofendeu'. Por que não havereis de fazer assim? É necessário sofrer tudo para conservar a caridade. 

2. Quando alguma pessoa vos falar com cólera, vos injuriar ou censurar de alguma coisa, respondei-lhe com doçura, e a vereis logo aplacada, porque está escrito: 'Uma resposta branda detém e acalma a ira' (Pv 15,1). 'Assim como o fogo não pode ser extinto pelo fogo', nota São João Crisóstomo, 'assim também a ira não pode ser apaziguada pela ira'. Aquela pessoa vos fala com ira e vós lhe respondeis com cólera, como quereis que se acalme? Ainda que acendereis nela o furor, e ofendereis ainda mais a caridade. 

Eis o que Sofronio refere a este propósito: 'Dois monges em viagem tendo errado o caminho, entraram, por acaso, em um campo semeado. O camponês, guarda do território, ao vê-los andando naquele sítio, os cobriu de injúrias. Eles, a princípio, calaram-se, mas vendo que o guarda se enfurecia cada vez mais e engrossava as afrontas, disseram-lhe: Irmão, nós erramos, nós fizemos mal. Por amor de Deus, perdoai-nos. Essa resposta tão humilde o fez entrar em si, de modo que, por sua vez, se pôs a pedir perdão das injúrias irrogadas; e se compungiu tanto, que deixou o mundo e se fez monge com eles'. 

3. Algumas vezes, talvez vos pareça razoável, ou mesmo necessário rebater a insolência de qualquer irmã, respondendo-lhe com vivacidade, sobretudo se sois superiora e ela vos tenha faltado como respeito. Mas, cuidado com a ilusão! Sabei que nesse caso é antes a paixão, do que a razão, que vos leva a falar. Não nego que, especulativamente falando, às vezes, seja lícito irar-se, com tanto que faça sem defeito, como disse o rei profeta (Sl 4,5). Mas a dificuldade está em pôr-se isto em prática. Entregar-se à ira é como montar em um cavalo fogoso que não obedece ao freio, sem saber onde nos levará. 

Por isso escreve sabiamente São Francisco de Sales na sua Filoteia: 'Os movimentos da cólera devem ser reprimidos, por maior que seja a causa que os justifique'. E acrescenta o santo: 'É melhor que se diga de vós que nunca vos irais, do que se afirme que vos encolerizais com razão'. E Santo Agostinho nota que é difícil lançar fora da alma a cólera que uma vez se deixou ali entrar; e por isso exortava a fechar-se a porta todas as vezes que tentasse lá entrar. Um certo filósofo, chamado Agripino, tendo perdido todos os seus bens, dizia tranquilo: 'Se perdi tudo, não quero perder também a paz'. 

Assim dizei também vós, quando receberdes algum desprezo. Se já sofrestes a afronta, quereis perder também a paz, entregando-vos à cólera? Irritar-vos seria causar-vos a vós mesmas um dano muito maior do que a perda da estima ocasionada pela injúria. Santo Agostinho diz ainda que encolerizar-se com o insulto é castigar-se a si mesmo. É sempre nocivo perturbar-se, ainda que fosse por ter cometido alguma falta, porque, como diria São Luiz Gonzaga, 'na água turva, isto é, na alma inquieta, o demônio sempre acha que pescar'. 

4. Eu vos disse que, quando vos irrogarem alguma injúria ou vos falarem com ira, vós devereis responder com mansidão; entretanto, se, na ocasião, vos sentirdes perturbadas, será melhor guardar silêncio. Então a paixão vos fará parecer justo e razoável tudo o que disserdes. Observa São Bernardo: 'Os olhos ofuscados pela indignação não vêem mais o que é justo e o que é injusto'. Figurai-vos que a paixão é como um véu preto posto diante dos olhos, que vos não deixa discernir o torto do direito. 

5. Se acontecer que uma irmã, depois de vos ter ofendido, se arrependa e venha vos pedir perdão, guardai-vos de recebê-la de semblante carregado ou lhe responder com meias palavras, ou de fitar os olhos no chão ou pôr-nos a olhar as estrelas. Fazendo assim, ofendereis muito a caridade e dareis ensejo a essa irmã de mais vos odiar, e além disso dareis um grande escândalo a todo o mosteiro. Ao contrário, testemunhai-lhe uma sincera estima e se, por humildade, ela se ajoelhar diante de vós, dobrai também os joelhos; e quando começar a pedir-vos perdão, cortai-lhe a palavra na boca, dizendo: 'Ó minha irmã, para que fazer isto? Sabeis quanto vos amo e estimo. Pedis perdão a mim? Eu é que vos devo pedir perdão de vos ter inquietado, pela minha ignorância e descuido, não usando da atenção que vos devia. Desculpai-me, pois, e perdoai-me'. 

6. Se, porém, vos suceder ofender alguma de vossas irmãs, empregai logo todos os esforços para apaziguá-la e tirar-lhe do coração todo o rancor. Diz São Bernardo, que não há meio mais próprio para reparar a caridade ofendida, do que humilhar-se. E fazei isto o mais cedo possível. Esforçai-vos por vencer a repugnância que experimentais; porque quanto mais demorardes, mais crescerá a vossa repugnância e depois nada fareis. Sabeis o que disse Jesus Cristo: 'Se estiverdes já diante do altar para ofender a vossa oblação, isto é para comungar ou para ouvir Missa, e vos lembrardes que vosso próximo está desgostoso convosco, deixai o altar e ide primeiro reconciliar-vos com ele (1Jo 3, 18). Advirta-se porém que, às vezes, não convém usar deste ato de humilhação, quando se julga que isso ocasione novo dissabor à pessoa ofendida. Neste caso, espere-se uma ocasião mais oportuna ou empregue-se a intervenção de outra irmã, e tenha-se cuidado de demonstrar-lhe uma atenção e respeito particular.

(Excertos da obra 'A Verdadeira Esposa de Jesus Cristo', de Santo Afonso Maria de Ligório)