V
DA VIRTUDE DA ESPERANÇA — VÍCIOS OPOSTOS: PRESUNÇÃO E DESESPERAÇÃO — FÓRMULA DO ATO DE ESPERANÇA — QUEM ESTÁ OBRIGADO A FAZÊ-LO
Qual é a segunda Virtude Teologal?
A virtude da Esperança.
Que entendeis por virtude da Esperança?
A virtude teologal cujo efeito é mover a vontade para que, com o auxílio divino, se dirija e encaminhe para Deus, como objeto de nossa eterna felicidade, segundo no-lo mostra a fé (XVII, 1, 2)*.
É possível ter esperança sem fé?
Absolutamente impossível (XVII, 7).
Por que?
Porque é a fé quem propõe à esperança o seu objeto e os motivos em que há de apoiar-se (Ibid).
Qual é o objeto da Esperança?
Antes de tudo, Deus em si mesmo, como termo e objeto de sua própria felicidade, e enquanto, por um rasgo de infinita benevolência, quis ser também o objeto de nossa dita no céu (XVII, 1, 2).
Há alguma outra coisa que possa ser objeto da Esperança?
Sim Senhor; qualquer bem real, subordinado à consecução do objeto primário (XVII. 2 ad 2).
Qual é o motivo ou razão em que se apóia a Esperança?
Deus mesmo, considerado como auxiliar de nossa fraqueza, na conquista da felicidade (Ibid).
Logo, o motivo da Esperança implica e supõe necessariamente ações virtuosas meritórias e conducentes à posse de Deus na ordem sobrenatural?
Sim, Senhor.
Logo, pecará contra a esperança o que confia salvar-se, sem contrair o hábito de praticar a virtude? Sim, Senhor.
Como se chama este pecado?
Pecado de presunção (XX-I).
É o único pecado que pode o homem cometer contra a virtude da esperança?
Não, Senhor: pode cometer outro chamado desesperação (XX).
Em que consiste?
É o pecado daqueles que, tomando em conta ou a grandeza e excelência infinitas de Deus, ou as dificuldades com que tropeçam no exercício das virtudes sobrenaturais, fazem a Deus a injúria de supor que jamais chegarão a possuí-lo ou a praticar a virtude como convém; em consequência, renunciam à felicidade e abstêm-se de invocar a Deus e chamá-lo em seu auxílio, ainda que bem o possam fazer (XX 1, 2).
Reveste especial gravidade o pecado de desesperação?
Sim, Senhor; porque inutiliza todo o movimento na ordem sobrenatural, e faz que o pecador pronuncie, em certo modo, contra si mesmo, a sentença de eterna condenação (XX, 3).
Logo, o homem jamais deve desesperar por grandes que sejam as suas misérias e enormes as suas culpas e pecados?
Não, Senhor; porque superior a tudo isso, é a onipotência e misericórdia divinas.
Que deve, pois, fazer quando se sente acabrunhado sob o peso de suas culpas?
Corresponder à graça que naquele momento o convida a voltar-se para Deus, com firme esperança de que lhe perdoará e dará forças para sair do seu mau estado e levar depois vida digna de recompensa eterna.
Podereis ensinar-me alguma fórmula para praticar o ato da Virtude Teologal chamada Esperança? Eis aqui uma: 'Deus meu, com grande confiança, espero de vossa misericórdia e poder infinitos que me dareis graça para levar uma vida digna do prêmio destinado aos justos, e que, no fim da vida, se vossa graça não me deixar cair na desesperação, me admitireis a participar da vossa própria e eterna bem-aventurança'.
Poderia abreviar-se esta fórmula?
Sim, Senhor; pode reduzir-se ao seguinte: 'Deus meu, santa e firmemente espero em Vós'.
Quem pode exercitar-se em atos de esperança?
Todos os fiéis, enquanto vivem neste mundo.
Conservam os Santos no céu a virtude da esperança?
Não, Senhor; porque a esperança supõe ausência, e eles já entraram na posse de Deus (XVIII, 2).
Têm esperança os condenados no inferno?
Também não, porque jamais poderão gozar de Deus, objeto da esperança (Ibid).
Conservam a esperança as almas no Purgatório?
Conservam-na, como virtude, porém os seus atos não são inteiramente iguais aos desta vida, porque, se bem que não possuem e esperam a bem-aventurança, não contam com o auxílio divino para alcançá-la, pois, nem a podem merecer, nem abrigam o temor de perdê-la, visto que não podem pecar (XVIII, 3).
VI
DO DOM DO TEMOR CORRESPONDENTE À VIRTUDE DA ESPERANÇA
TEMOR SERVIL — TEMOR FILIAL
Qual é o efeito que produz a esperança nos fiéis enquanto vivem neste mundo?
O de fortalecer a vontade contra o excessivo temor de não alcançar a glória (XVIII, 4).
Existe alguma espécie de temor essencialmente bom e enlaçado com a virtude da esperança?
Sim, Senhor.
Qual é?
O temor de Deus, chamado temor filial (XIX, 1, 2).
Que entendeis por temor filial?
O que nos obriga a venerar a Deus em atenção à sua excelência e infinita majestade, e a considerar como a maior das desgraças a de ofendê-Lo, ou expor-nos a perdê-lo por toda a eternidade (XIX, 2).
Existe algum temor de Deus, distinto do filial?
Sim, Senhor; o conhecido com o nome de temor servil.
Que coisa se designa com as palavras 'temor servil'?
Certo sentimento ínfimo, próprio dos escravos, que temem o amo porque ameaça com castigos (Ibid).
O temor das penas com que Deus ameaça o pecador é sempre temor servil?
Sim, Senhor; porém, nem sempre é defeituoso ou envolve pecado (Ibid).
Quando será pecaminoso?
Quando se considera o castigo ou perda de qualquer bem criado como mal supremo (XIX, 4).
Logo. se alguém temesse o castigo, não como objeto principal do temor, mas enquanto leva consigo a perda de Deus, a quem ama sobre, todas as coisas, experimentaria temor servil pecaminoso?
Não, Senhor; seu temor seria bom, ainda que de ordem muito inferior ao temor filial (XIX. 4, 6).
Por que seria inferior?
Porque o que tem amor filial jamais se preocupa com a perda dos bens criados, contanto que consiga a posse de Deus, Bem Incriado (XIX, 4, 5).
Qual é, por conseguinte, o motivo do temor filial?
Unicamente o pesar e o sentimento de perder o bem infinito, ou de expor-se a perdê-lo (XIX, 2).
Tem alguma conexão o temor filial com o dom do Espírito Santo chamado dom de temor?
Tem-na e muito estreita (XIX, 9).
Logo, o dom do Espírito Santo chamado temor anda unido de uma maneira especial à virtude da Esperança?
Sim, Senhor.
Em que consiste o dom de temor?
Em que, por sua virtude, o homem se mantém sujeito a Deus, e, em vez de resistir aos movimentos da graça, segue com docilidade seus impulsos.
Em que se diferenciam o dom de temor e a virtude da Esperança?
Em que a Esperança olha diretamente ao bem infinito alcançável com o favor divino, e o dom de temor considera a irreparável desdita de perder a Deus, fazendo-se, pelo pecado, indigno dos auxílios sobrenaturais (XIX, 9 ad 2).
É mais nobre a virtude da esperança que o dom de temor?
Sim, porque as virtudes teologais são superiores aos dons, e também porque a esperança nos move e impele para Deus em qualidade de bem supremo, e o temor se estaciona na consideração do mal que resultaria em perdê-lo.
É o dom de temor inseparável da caridade?
Sim, Senhor; porque dela depende, como o efeito da sua causa (XIX, 10).
Pode a caridade coexistir com o temor servil no caso deste não ser pecaminoso?
Sim Senhor; e quando isto sucede, recebe o nome de temor inicial; porém à medida que toma incremento a caridade, evoluciona o temor até adquirir todos os caracteres do filial, o único saturado de amor de Deus, como objeto e termo de uma felicidade cuja perda seria o maior, ou para melhor dizer, o único mal (XIX, 8).
Permanece o dom do temor no céu?
Sim, Senhor; porém, em estado perfeito e com atos algo distintos dos deste mundo (XIX, 11).
Em que consistem esses atos?
Numa espécie de aniquilamento, produzido, não pelo temor de perder a Deus, mas pela admiração de sua soberana grandeza e estremecedora majestade, comparada com a própria pequenez, pois o bem-aventurado tem sempre a mais íntima convicção de que sua felicidade só depende de Deus (Ibid).
* referências aos artigos da obra original
('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)