sexta-feira, 23 de novembro de 2018

SANTO INÁCIO, TRIGO DE CRISTO

No martirológio romano, dentre a série imensa de milhares que deram a sua vida por Cristo, encontramos o seguinte relato: 'Em Roma, Santo Inácio, bispo e mártir, foi o segundo sucessor do Apóstolo São Pedro na Cátedra de Antioquia; durante a perseguição de Trajano foi condenado a ser devorado pelas feras e levado algemado para Roma. Ali, por ordem de Trajano, foi submetido perante o Senado aos castigos mais cruéis e depois jogado aos leões. Devorado pelas feras, foi uma vítima pelo Cristo'.

Assim são os mártires do cristianismo. As crueldades não lhe causam temor, suportam os maiores castigos e se gloriam de serem dignos de morrer por Cristo. O martírio para eles é vida, e derramar o sangue pela fé é recompensa que vem coroar uma vida de heroísmo. Enumerando algumas figuras heroicas da gesta dos Mártires Cristãos, evocamos e engrandecemos a multidão das outras não menos heroicas, mesmo as mais anônimas, as mais obscuras, desde as mais altas figuras dos bispos e dos padres, até o menor do escravos, que com a mesma firmeza e ânsia pela glória do céu se deixaram martirizar.

Santo Inácio, bispo de Antioquia, se coloca entre os heróis da primitiva Igreja. Governando a Igreja de Antioquia, onde a semente cristã se desenvolvera de maneia admirável, foi Inácio vítima do ódio anticristão que se manifestara violento nas perseguições oficiais do Império Romano. Natural da Síria, é uma das grandes figuras dos tempos apostólicos, tendo sido discípulo dos Apóstolos e mais tarde sucessor de São Pedro em Antioquia, que, depois de Roma, era a mais importante cidade do velho mundo.

Governava Roma o Imperador Trajano, soldado garboso, de porte varonil, que, inimigo do luxo, fizera a pé sua entrada na capital romana, sob os entusiásticos aplausos do povo que o sabia capaz de continuar a grandeza do Império. Grande administrador, defensor do direito e da justiça, mareou, porém, o brilho de sua glória, maculou sua memória pelo desregramento dos costumes e a perseguição que moveu contra os cristãos, seus melhores súditos. 

A Plínio, legado imperial da Bitínia, que pessoalmente examinou a conduta dos cristãos e escrevera ao Imperador, comunicando-lhe nenhuma falta neles encontrar, responde o Imperador com palavras que bem assinalam o seu caráter: 'Não convém dar buscas aos cristãos, mas acusados e examinados, devem ser condenados à morte, caso não abandonem o cristianismo'. 'Sentença estranha', vai dizer Tertuliano, 'proíbe procurar os cristãos, reconhecendo implicitamente sua inocência, e por outro lado ordena que sejam punidos por simples denúncia'. Este é o amor de justiça dos príncipes mais decantados da Roma pagã.

Acusado e condenado em Antioquia, foi Inácio levado a Roma, escoltado por soldados. Sua viagem foi um caminho para o martírio, e por onde passava, era festivamente recebido pelos cristãos. Escreve
durante a viagem as sete cartas, a Esmirna, a Filadélfia, a Policarpo, aos efésios, magnesianos, tralianos e romanos. Nelas expande o seu amor a Cristo, o seu desejo de ser unido a ele e seu zelo pela salvação das almas. São suas cartas um dos mais preciosos documentos da Igreja antiga, em que se manifesta conhecedor da sua constituição, grande administrador e notável místico com admiráveis meditações sobre Cristo e a vida espiritual. A carta aos romanos em que demonstra seu intenso desejo de morrer por Cristo, é no dizer de Renan 'uma das jóias da literatura primitiva cristã'.

Não precisam os documentos a data de seu martírio. Certamente, quando das comemorações da vitória de Trajano sobre os dácios. Em todo o esplendor do ouro e do mármore já se levantara o Coliseu. Festas estrondosas se realizavam em Roma. Durante vários dias os anfiteatros regurgitavam e mais de dez mil gladiadores foram sacrificados e com eles umas onze mil feras. Das províncias vieram os atletas. Os governadores de países longínquos enviaram feras, prisioneiros e criminosos para a metrópole, onde nas disputas na arena representavam dantescos espetáculos aos olhos dos vaidosos espectadores que constituíam a corrupta sociedade romana.

Ao penetrar o santo homem na capital do império, olhares sedentos de sangue se digiram a ele e pedem a sua morte. É o pastor que dá a vida pelas suas ovelhas, que morre, para que as ovelhas tenham vida. Ei-lo na arena do majestoso Coliseu. Abrem-se os gradis e as feras se lançam sequiosas de sangue sobre os milhares que se espalham na arena. Os olhos de Inácio se voltam para Deus, tranquilos. Ao ouvir o rugido dos leões, exclama: 'Eu sou o trigo do Cristo; pelos dentes das feras hei de ser triturado, para me tornar pão purificado'.

A sociedade romana, ébria de poder, riquezas e prazeres, sacia seus olhares no anfiteatro, onde um pobre velho é atirado às feras. Momentos após, poucos vestígios de sangue na branca areia marcaram o lugar, onde o mártir expirou, e donde sua alma se elevou para o reino da glória. Alguns cristãos penetram na arena do anfiteatro, agora deserta, para retirar e guardar alguns poucos pedaços de ossos, que constituem as santas relíquias do Bispo de Antioquia.

Dele se conservam estas santas relíquias e as mais belas lições de vida e virtudes. Em suas cartas exorta os fiéis à vida de concórdia, união e obediência na comunidade cristã: 'onde está o bispo', escreveu ele, 'deve estar o povo, da mesma forma que se diz: onde está Cristo, está a Igreja'. De suas cartas extraímos trechos encantadores: 'Só há um Jesus Cristo e não existe ninguém melhor do que Ele' (Carta aos Magnesianos, Cap.7); 'Um cristão não tem direito ilimitado sobre si mesmo; seu tempo pertence a Deus' (a São Policarpo, cap. 7); 'É belo morrer a este mundo para Deus, para ressurgir para Ele' (aos Romanos, cap. 12).

A história deste bispo, herói do cristianismo, mártir de sua fé, empolga pela bravura e coragem de um gigante da fé e do amor de Deus, que tomba na arena do dever, triturado antes pelas feras que macularam a história do Império Romano do que pelas feras selvagens que o abateram na arena do Coliseu, glória da arte de Roma, e orgulho dos milhares de mártires que aí tombaram pela Igreja e por Cristo.

(Excertos da obra 'As Mais Belas Histórias do Cristianismo', do Cônego Paulo Dilascio)