segunda-feira, 4 de julho de 2016

DOS CUIDADOS COM OS MORTOS (V)

SANTO AGOSTINHO

PARTE IV

CAPÍTULO XIII

Por que não podemos atribuir aos anjos essas operações permitidas pela Providência Divina, que sabe se servir sabiamente dos bons e dos maus, conforme a inescrutável profundidade de seus julgamentos? Essas visões podem servir tanto para instruir quanto para enganar os vivos, para consolá-los ou assustá-los, sendo cada um tratado com misericórdia ou com rigor por aquele que a Igreja não celebra em vão 'a misericórdia e a justiça' (Sl 100, 1).

Entenda como quiser isto que vou falar agora: se acaso os mortos intervissem nos problemas dos vivos, aparecendo-nos e falando-nos durante o sono, a minha piedosa mãe (para não falar de outras pessoas) não me abandonaria uma noite sequer, pois ela sempre me seguiu por terra e mar, sempre partilhou comigo a sua vida. Para mim é difícil crer que uma vida mais feliz a tornou indiferente para comigo, a ponto de não mais me consolar nas tristezas, justo eu que fui seu grande amor e a quem ela jamais quis ver triste! Certamente as palavras do Salmo são verdadeiras: 'Meu pai e minha mãe me abandonaram, mas o Senhor me acolheu' (Sl 26,10). Ora, se os nossos pais nos abandonaram, como podem eles se interessarem por nossos problemas? E se ficam indiferentes, que outros mortos poderiam se inquietar pelo que fazemos ou sofremos? Assim declara o profeta Isaías: 'Porque tu é que és o nosso Pai. Abraão não nos conheceu, nem Israel soube de nós' (Is 63,16).

Se os grandes patriarcas desconheceram o destino do povo do qual eram a fonte e cuja raça saiu como fruto de sua fé em Deus, como seria possível aos mortos intervir, para conhecer e proteger nos negócios e empreendimentos dos vivos? E como poderíamos declarar bem-aventurados os santos que morreram antes das nossas infelicidades se eles continuassem sensíveis às desolações da vida humana? Acaso não estaríamos enganados se disséssemos que eles se encontram em um lugar de absoluta tranquilidade se porventura eles se inquietassem com a atormentada existência dos vivos? 

O que significaria, então, esta promessa feita por Deus em benefício do piedoso rei Josias, de que ele morreria antes dos males que estavam para se abater sobre sua nação e seu povo, para que não sentisse tristeza de ver tal tragédia? Eis a Palavra de Deus: 'Direis ao rei de Judá que vos enviou a consultar o Senhor: Eis o que diz o Senhor Deus de Israel: como ouviste as palavras do livros e o teu coração se atemorizou a ponto de te humilhares diante do Senhor, após ouvir as palavras contra esta terra e seus habitantes, que virão a ser objeto de espanto e reprovação, e também por rasgardes as vestes e chorardes diante de Mim, eu te escutei - diz o Senhor - e por isso te farei descansar com teus pais e sereis sepultado em paz, para que teus olhos não vejam o mal que farei cair sobre esta terra' (2Rs 22,18-20).

Aterrorizado por essas ameaças de Deus, Josias chorou e rasgou suas vestes, mas a certeza de que sua morte precederia as desgraças que estavam por vir, bem como a certeza de que fora chamado a gozar a paz no repouso, sem ter que ver aqueles males, devolveram-lhe a serenidade da alma. Portanto, as almas dos mortos encontram-se em um lugar onde não podem ver o que se passa ou acontece aos homens da terra. E como poderiam partilhar das misérias dos vivos se estão a suportar as próprias penas, caso as tenham merecido, ou estão em paz repousando, como foi prometido a Josias? Aí não sofrem nem por si, nem por outros, pois se livraram de todas as penas por suportarem a dor pessoal e a compaixão por outrem quando viviam sobre a terra.

CAPÍTULO XIV

Alguém me dirá por objeção: se os mortos não se interessam pelos vivos então porque aquele rico que passava tormentos no inferno suplicou a Abraão para que enviasse Lázaro a seus cinco irmãos vivos, para convencê-los a mudar de vida e, assim, evitarem aquele lugar de sofrimentos? Será que é possível deduzir dessa passagem que ele sabia o que seus irmãos faziam ou sofriam nesse tempo? Estava ele preocupado com os vivos, sem saber o que faziam, da mesma forma como nos preocupamos com os mortos, sem sabermos o que fazem? Na verdade, se não nos interessássemos por eles, também não oraríamos na intenção deles. Aliás, Abraão não enviou Lázaro à terra, mas respondeu ao condenado que seus irmãos tinham Moisés e os profetas; deveriam ouvi-los se desejassem escapar daqueles suplícios.

Neste ponto, pode-se novamente objetar: como poderia Abraão ignorar o que se passava sobre a terra, já que sabia viver Moisés e os profetas, isto é, seus escritos, e que, seguindo-os, escapariam dos tormentos do inferno? Ele não sabia também que o rico havia gozado as delícias e que o pobre Lázaro vivera na miséria e no sofrimento, pois disse: 'Filho, lembra-te de que recebeste teus bens em vida e Lázaro, por sua vez, os males' (Lc 16,25). Logo, Abraão conhecia os fatos referentes aos vivos e não aos mortos. É certo, mas esses fatos ele podia não ter conhecimento no momento em que ocorreram, mas após o falecimento dos dois e sob as indicações do próprio Lázaro. Desse modo, a palavra do profeta não está desmentida: 'Abraão não nos conheceu' (Is 63,16).

CAPÍTULO XV

Convenhamos que os mortos ignoram o que acontece na terra, pelo menos no momento em que ocorrem. Pode vir a conhecer mais tarde, por intermédio daqueles que vão ao seu encontro, uma vez falecidos. Certamente, não ficam sabendo de tudo, mas apenas aquilo que lhe for autorizado saber e que têm necessidade de saber. Os anjos, que velam sobre as coisas deste mundo, também podem lhes revelar alguns pontos que julguem convenientes a cada um, por Aquele que tudo governa, pois se os anjos não tivessem o poder de estarem presentes tanto na morada dos vivos quanto na dos mortos, o próprio Senhor Jesus não teria dito: 'Aconteceu que o pobre [Lázaro] morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão' (Lc 16,22). Eles estão, assim, ora na terra, ora no céu, já que foi da terra que levaram aquele homem que Deus os confiou.

As almas dos mortos também podem conhecer alguns acontecimentos aqui da terra por revelação do Espírito Santo, acontecimentos estes cujo conhecimento seja necessário. E isto não se restringe somente a fatos passados ou presentes, mas também futuros. É assim que os homens - não todos, mas apenas os profetas - conheceram durante sua vida mortal, não todas as coisas, mas apenas aquelas que a Providência Divina julgava bom lhes revelar.

A Sagrada Escritura atesta-nos que alguns mortos foram enviados a certas pessoas vivas e, da mesma forma, algumas pessoas foram até a morada dos mortos: Paulo foi arrebatado até o Paraíso (2Cor 12,2); e o profeta Samuel, após sua morte, apareceu a Saul, ainda vivo, e lhe predisse o futuro (1Sm 28,15-19). É bem verdade que alguns não admitem que tenha sido Samuel que apareceu, já que sua alma não acatava a tais procedimentos mágicos, como dizem. Julgam, assim, que foi outro espírito que se submete a essa arte maléfica que se revestiu de uma imagem semelhante a dele.

Mas o livro do Eclesiástico, atribuído a Jesus, filho de Sirac - cujas semelhanças de estilo poderiam ser do próprio Salomão -, relata-nos um elogio aos Patriarcas onde afirma que 'Samuel profetizou mesmo depois de morrer' (Ecl 46,23), e isto não poderia se referir a outra coisa a não ser essa aparição do defunto Samuel a Saul. Alguém poderia discutir a autoridade desse livro, sob o pretexto de que não se encontra no cânon dos hebreus, mas existe um outro texto que nos convida a admitir esse envio de mortos aos vivos: trata-se da passagem das aparições de Moisés e Elias no [monte] Tabor. O que dizer de Moisés, cujo livro do Deuteronômio nos certifica da sua morte, aparecendo vivo ao lado de Elias - que não morreu - como lemos no Evangelho? (Mt 17,3).

('De Cura pro Mortuis Gerenda' - O Cuidado Devido aos Mortos, de Santo Agostinho - Parte V)