sábado, 12 de janeiro de 2019

SOBRE A SANTÍSSIMA TRINDADE


Amanhã (13 de janeiro) é dia de Santo Hilário de Poitiers, Doutor da Igreja. Sua obra dogmática mais conhecida é De Trinitate (Sobre a Trindade), na qual defende a doutrina do Concílio de Niceia e demonstra que as Sagradas Escrituras testemunham claramente sobre a divindade do Filho.

'Eu e o Pai somos um só' (Jo 10,30)

Como os hereges não podem negar estas palavras, ditas de modo tão absoluto, as corrompem e as falseiam no sentido de sua impiedade, para torná-las condenáveis. Tentam limitá-las a uma simples unanimidade, como se no Pai e no Filho a unidade fosse só de vontade e não de natureza, isto é, como se fossem eles uma só coisa, não pelo que são, mas pelo que querem.

A tal interpretação adaptam, a seu modo, aquele passo dos Atos dos Apóstolos onde se diz: 'a multidão dos crentes era um só coração e uma só alma' (At 4, 32). Almas e corações em número plural podem se unificar pela convergência das vontades a um único objeto. Servem-se também os hereges do que está escrito aos coríntios: 'quem planta e quem rega são um só' (ICr 3,8). Nesses dois trechos haveria unidade moral, porquanto não difere o ministério instituído para a salvação.

Abusam também daquilo que disse o Senhor, quando rogou ao Pai a salvação das nações que creriam em si: 'Não só por estes rogo, mas também pelos que hão de crer em mim mediante a sua palavra, a fim de que todos sejam um, assim como tu, Pai, és em mim e eu em ti; que eles também sejam um em nós (Jo 17, 20). Ora, como os homens não podem dissolver-se em Deus, nem misturar-se num conglomerado indistinto, sua unidade lhes virá só de uma vontade unânime. Quando os homens fazem o que é do agrado de Deus - argumentam - a harmonia dos espíritos os associa. Logo, concluem, não é a natureza, mas a vontade que os unifica.

Ignora a sabedoria quem a Deus ignora. E como a sabedoria é o Cristo, está fora da sabedoria quem ignora o Cristo ou só o conhece através dessa gente que prefere ver no Senhor de majestade, no Rei dos séculos e Deus unigênito, uma simples criatura, em vez do verdadeiro Filho. E se se obstinam são ainda mais estultos na defesa de sua mentira. Deixando de lado por ora a questão da unidade do Pai e do Filho, podemos perfeitamente refutá-las com as mesmas armas que empregam.

De fato, quando se diz que a alma e o coração dos fiéis eram um, pergunto se isso não acontecia pela fé comum. Sim, pela fé é que o coração e a alma dos fiéis eram uma só coisa. Interrogo agora se essa fé é uma ou múltipla. Uma só, certamente, como aliás já o Apóstolo no-la assegura, pregando ser uma a fé, um o Senhor, um o batismo, uma a esperança e um só Deus. Ora, se pela fé, isto é, pela natureza de uma só fé, todos eram um, como não aceitarás física a unidade dos que são um pela natureza da única fé?

Todos, na verdade, tinham renascido para a inocência, a imortalidade, o conhecimento de Deus, a fé e a esperança. E se essas coisas não podem divergir entre si, pois também a esperança é uma só, e Deus é único, único é o Senhor, e único o banho regenerador, quem poderia dizer que elas são unificadas mais pelo acordo de vontade que por própria natureza? E que, igualmente, só pela vontade são unificados os que renasceram para aqueles bens? Se, porém, foram, antes, regenerados para a natureza de uma mesma vida e eternidade (pelo que seu coração e sua alma se faziam um só), não podemos aqui falar de mera unidade moral: muitos são um só na regeneração da mesma natureza.

Não estamos falando de nós mesmos, nem arranjamos algumas citações falsificadas, corrompendo o sentido das palavras para iludir os nossos ouvintes. Mantendo a forma da sã doutrina, só acolhemos e prezamos o que é genuíno. O Apóstolo, em verdade, ensina, ao escrever aos gálatas, que a unidade dos fiéis lhes vem da natureza dos sacramentos: 'todos os que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo; não há mais nem gentio nem grego, servo nem livre, homem nem mulher: todos sois um só em Cristo Jesus' (Gl 3, 27). Se, pois, tantos são um só, apesar da grande diversidade de nações, condições e sexo, quem poderá supor que isso lhes vem do mero consenso moral? Não será, antes, da unidade do sacramento, um só batismo, onde todos se revestiram do único Cristo? 

Que vem aqui fazer a mera concórdia das vontades, quando eles são um só, precisamente porque se revestiram do Cristo único, mediante a realidade do batismo único? Quando diz a Escritura serem um só o que planta e o que rega, não é também porque, renascidos eles mesmos de um só batismo, constituem, por sua vez, um ministério único na administração do banho regenerador? Não fazem, porventura, a mesma coisa? Não são um só, em um só? Ora, os que são um só pela mesma coisa, são assim por natureza, não apenas por vontade. Tornaram-se um, e são, ao mesmo tempo, ministros da mesma coisa e do mesmo poder. Sirvo-me sempre das alegações opostas pelos tolos, para demonstrar sua tolice. E claro: sendo a verdade firme e imutável, tudo o que uma inteligência perversa e insensata arranja para contradizê-la, vindo em sentido oposto, há de aparecer forçosamente falso e estulto.

Procurando enganar-nos os heréticos arianos com o texto que diz: 'eu e o Pai somos um só', aduziram também outra palavra do Senhor, para levar a que se pensasse (em vez da unidade de natureza e da não diversa divindade) numa simples união de mútuo amor e concórdia de vontades. E este o texto: 'para que todos sejam um só; assim como tu, Pai, és em mim e eu em ti, que eles também sejam um em nós'. Exclui-se, evidentemente, das promessas evangélicas quem se exclui da fé das mesmas. O crime da inteligência ímpia faz perder a esperança, que é simples. Ora, não ter o conhecimento daquilo que constitui o objeto da fé, merece não castigo, mas prêmio, pois o maior estipêndio da fé é esperarmos o que não conhecemos. A última loucura da impiedade é, ou não crer nas coisas que conhece, ou corromper o conhecimento do que deve crer.

Mas ainda que a impiedade mude o sentido daquelas palavras, nem por isso perdem o verdadeiro significado. O Senhor roga ao Pai para que os que crerem nele sejam um só e, como ele mesmo está no Pai e o Pai nele, também sejam neles um só. Por que vens agora introduzir a simples concórdia, a unidade de alma e coração, fundada exclusivamente na harmonia das vontades? Seria assim, com plena propriedade da expressão, se o Senhor, ao dirigir-se ao Pai, tivesse usado termos como estes: 'Pai, assim como nós queremos uma só coisa, também eles queiram uma coisa, e sejamos todos um só pela concórdia das vontades...'

Terá acaso a própria Palavra ignorado a significação das palavras? Não saberá a Verdade dizer coisas verdadeiras? Falou com astúcia a Sabedoria? Aquele que é a Força terá sido incapaz de dizer o que queria? Ora, ele falou, enunciando os puros e verdadeiros mistérios da fé evangélica. Nem se limitou a falar para só mostrar, mas ensinou à nossa fé nestas palavras: 'que todos sejam um só; assim como tu, Pai, és um em mim e eu em ti, que eles também sejam um em nós'. O pedido do Cristo é, primeiro, 'para que todos sejam um só'; em seguida, mostra o modelo da unidade a seguir, nestas palavras: 'assim como tu, Pai, és em mim e eu em ti, que eles sejam também um em nós'. Como o Pai está no Filho e o Filho no Pai, assim todos sejam um no Pai e no Filho, segundo o modelo e a forma da sua unidade!

Mas porque só ao Pai e ao Filho compete a unidade por natureza (pois Deus não pode ser de Deus, nem o Unigênito provir do Pai eterno, senão na sua original natureza), assim também, para que se ressalve ao Filho a sua essência de origem e se reconheça à sua divindade a mesma verdade da Fonte de onde ela procede, eis que o Senhor, solícito em dissipar toda dúvida à nossa fé, se apressa a ensinar-nos nas citadas palavras a natureza dessa absoluta unidade. Segue-se, pois: 'a fim de que o mundo creia que tu me enviaste'. O mundo vai crer na missão do Filho, se todos os que crerem nele forem um no Pai e no Filho.

E como serão, logo acrescenta: 'e eu lhes darei a glória que tu me deste'. Pergunto então se glória é o mesmo que 'vontade'. Vontade é inclinação da mente, glória é reflexo ou dignidade da natureza. Logo, o que o Filho deu aos seus fiéis não é vontade, mas glória, aquela que ele recebeu do Pai. Se, com efeito, tivesse dado não glória, mas vontade, já nossa fé não teria prêmio, pois estaria obrigada por uma vontade prefixada e não livre [não se trata aqui de uma argumentação do santo no sentido de se negar que a fé seja um dom de Deus, mas apenas que a fé pressupõe uma vontade livre].

A doação da glória constitui o bem indicado nas palavras que se seguem: 'para que sejam um como nós o somos'. É para que sejam todos um, que a glória por ele recebida do Pai é dada aos crentes. São todos um só na glória concedida, pois não é outra a que ele dá senão a que ele recebe, nem para outro fim é dada senão para que todos sejam um. E, como pela glória dada pelo Filho aos fiéis, todos são um, pergunto como há de ter o Filho uma glória menor do que a do Pai se, aos próprios crentes, a glória do Filho eleva à unidade da glória do Pai. Sem o aspecto da esperança humana, a palavra do Senhor será talvez insólita, mas seguramente não é infiel. Pois, embora fosse temerário esperar isso, seria irreligioso deixar de crer no autor tanto da fé quanto da esperança ali contida.

Bem, trataremos melhor deste assunto a seu tempo. Por ora, basta-nos ver que nossa esperança não é vã ou temerária. Concluindo: todos são um pela glória que o Filho recebe do Pai e confere aos fiéis. Afirmo a fé e ao mesmo tempo fico sabendo a causa da unidade. Só falta compreender melhor a razão por que essa glória dada ao cristão é capaz de fundar tal unidade. Não querendo o Senhor deixar algo incerto, referiu-se a um efeito da sua ação física, quando exclamou: 'para que todos sejam um, como nós somos um só. Eu neles e tu em mim para que sejam perfeitos na unidade' (Jo 17, 22).

Tenho vontade de perguntar agora aos que pretendem existir entre Pai e Filho unidade puramente moral, se hoje o Cristo está em nós na verdade da natureza, ou numa simples concórdia de vontades. Se, com efeito, o Verbo se fez carne e, se na Ceia do Senhor nós tomamos verdadeiramente esse Verbo-carne, como não há de permanecer ele em nós fisicamente? Nascido homem, não assumiu, de modo inseparável, a natureza mesma de nossa carne? E no mistério do seu corpo, dado a nós em comunhão, não o juntou à natureza de sua carne sua divindade eterna? Logo, todos são um só, porque no Cristo está o Pai e em nós o Cristo.

Quem nega que o Pai esteja fisicamente em Cristo, deve primeiro negar que ele mesmo esteja fisicamente em Cristo e o Cristo em si. É porque em Cristo está o Pai, e em nós o Cristo, que nós somos também feitos uma só coisa. Se é verdade que Cristo assumiu a carne de nosso corpo, e que o homem nascido de Maria é Cristo; se é verdade que nós recebemos em mistério a carne de seu corpo (e por isso mesmo seremos um, pois o Pai está nele e ele em nós), como ousam asseverar uma unidade puramente moral, quando pelo sacramento a propriedade natural (da Carne assumida por Cristo e por nós comida) é mistério da perfeita unidade?

Não se deve falar das coisas de Deus segundo o espírito do homem e do século. Nem numa pregação violenta e imprudente. Da pureza das palavras divinas devemos excluir a perversidade de um entendimento ímpio e estranho. Leiamos simplesmente o que está escrito e entendamos o que lermos: é o modo de exercitar a perfeita fé. Tudo que dissermos da realidade física de Cristo em nós, ou foi dele mesmo que aprendemos, ou então é ímpio e estulto o que afirmamos. Mas ele mesmo diz: 'Minha carne é verdadeiramente comida e meu sangue verdadeiramente bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, fica em mim e eu nele' (Jo 6, 56). Quanto à verdade da carne e do sangue, não há lugar para dúvida: é verdadeiramente carne e verdadeiramente sangue, como vemos pela própria declaração do Senhor e por nossa fé em suas palavras. Esta carne, uma vez comida, e este sangue, bebido, fazem que sejamos também nós um em Cristo, e o Cristo em nós. Não é isto verdade? Não o será para os que negam ser Jesus Cristo verdadeiro Deus! Ele está, pois, em nós por sua carne e nós nele, e ao mesmo tempo o que nós somos está com ele em Deus.

Jesus mesmo atesta quão realmente estejamos nele pelo mistério da comunhão de sua carne e sangue, dizendo: 'o mundo já não me vê; vós, porém, me vereis, pois, eu vivo e vós vivereis; pois eu estou no Pai e vós em mim, e eu em vós' (Jo 14, 19). Se tencionou referir-se apenas a uma unidade de vontade, por que estabeleceu esta graduação e ordem na consumação da unidade? Não foi senão para que se cresse que ele está em nós pelo mistério dos sacramentos, como está no Pai pela natureza da sua divindade, e nós nele, por sua natureza corporal. Ensina-se, portanto, que pelo nosso Mediador se consuma a unidade perfeita, pois enquanto nós permanecemos nele, ele permanece no Pai, e, sem deixar de permanecer no Pai, permanece também em nós, e assim nós subimos até à unidade do Pai! Ele está no Pai fisicamente, segundo a origem de sua eterna natividade, e nós estamos nele fisicamente, enquanto também está em nós fisicamente.

Quão real seja esta unidade em nós, atesta-o, dizendo: 'Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele' (Jo 6, 56). Só aquele no qual o Senhor estiver poderá estar nele. Ele somente assume a carne daquele que o receber. Já tinha o Senhor ensinado antes o mistério desta perfeita unidade, ao dizer: 'Assim como me enviou o Pai, que vive, e eu vivo pelo Pai, o que comer a minha carne também viverá por mim' (Jo 6, 57).Ele vive, pois, pelo Pai e do mesmo modo como vive pelo Pai nós vivemos por sua carne.

Toda comparação, realmente, se emprega para determinar a forma que se quer dar a entender. Seu fim é fazer-nos atingir uma realidade segundo o modelo proposto. Esta é, pois, a causa de nossa vida: que, por sua carne, tenhamos o Cristo em nós. Nós somos corporais, mas destinados a viver por ele segundo a mesma condição em que ele vive pelo Pai. Se, portanto, vivemos por ele, fisicamente, segundo a carne, isto é, alcançando a natureza de sua carne mesma, como é que ele não tem fisicamente o Pai, segundo o espírito, se é pelo Pai que ele vive? Vive realmente pelo Pai; sua origem por geração não lhe confere uma natureza diversa, e é pelo Pai que é o que é, nunca se separando por qualquer dessemelhança sobrevinda. Por sua geração tem em si o Pai na força da mesma natureza.

Se quisemos recordar tudo isto foi porque os hereges, afirmando falsamente uma simples unidade moral entre o Pai e o Filho usavam o exemplo de nossa própria unidade com Deus. Para eles, era como se, unidos ao Filho e ao Pai por mero vínculo de obséquio e vontade religiosa, estivéssemos excluídos de qualquer comunhão física pelo sacramento da carne e do sangue. Ora, a verdade é que, pela comunicação da própria honra do Filho e pela existência do próprio Filho em nós por sua carne, e de nós nele, de modo corporal e inseparável, se tem de professar o mistério de uma unidade real e verdadeira.