terça-feira, 22 de março de 2016

A CRUZ DE CRISTO - MEDIDA DO MUNDO (I)


Grande número de homens vive e morre sem jamais ter refletido sobre a situação em que se encontra. Aceitam o lhes chega e seguem as suas inclinações até onde as suas oportunidades lhe permitem. Guiam-se principalmente pelo prazer e pela dor, não pela razão, pelos princípios ou pela consciência. Também não tentam interpretar este mundo, determinar o que significa ou reduzir o que vêem e sentem a um sistema. Mas, quando começam a contemplar a situação aparente em que nasceram – quer pela sua mente reflexiva, quer por curiosidade intelectual – logo chegam à conclusão de que é um labirinto e uma perplexidade. É um enigma que não conseguem resolver. Parece cheia de contradições e desprovida de qualquer desígnio. O que é, como proceder nela, como é o que é, de que modo se pode começar a entendê-la, qual é o nosso destino, tudo são mistérios.

Mergulhados nessa dificuldade, alguns compuseram uma filosofia de vida e outros, outra, pensando ter descoberto a chave que lhes permitiria ler aquilo que é tão obscuro. Dez mil coisas passam diante de nós, uma após a outra, ao longo da vida: que devemos pensar delas? Que cor atribuir-lhes? Devemos vê-las de maneira alegre e gozosa? Ou de maneira melancólica? De maneira desalentada ou esperançosa? Devemos tomá-las levianamente ou conferir gravidade a cada assunto? Devemos tornar maiores as coisas de pouca importância ou tirar peso às de grande importância? Guardar na mente o que foi e passou, olhar para o futuro ou deixar-nos absorver pelo presente?

Como devemos olhar as coisas? Esta é a pergunta que todas as pessoas reflexivas fazem a si mesmas, e cada uma lhe responde a seu modo. Desejam pensar por meio de regras, mediante algo que esteja dentro delas e ao mesmo tempo lhes permita harmonizar e ajustar o que está fora. Essa é a necessidade experimentada pelas mentes reflexivas. Agora, permiti-me que pergunte: Qual é a chave real, qual a interpretação cristã deste mundo? Qual o critério que a Revelação nos dá para avaliar e medir este mundo? E a resposta é: o grande acontecimento deste tempo litúrgico, a Crucifixão do Filho de Deus.

A morte do Verbo eterno de Deus feito carne é a nossa grande lição quanto ao modo como devemos pensar e falar deste mundo. A sua Cruz atribuiu a tudo o que vemos o seu devido peso, a todas as riquezas, a todos os benefícios, a todas as categorias, a todas as distinções, a todos os prazeres; à concupiscência da carne, à concupiscência dos olhos e à soberba da vida. Pesou todas as emoções, as rivalidades, as esperanças, os medos, os desejos, os esforços e os triunfos do homem mortal. Deu significado ao instável e vacilante percurso da vida terrena, às suas provações, tentações e sofrimentos. Reuniu e tornou consistente tudo o que parecia discorde e sem propósito. Ensinou-nos como viver, como usar deste mundo, o que aguardar, o que desejar, o que esperar. É a melodia em que se reúnem e harmonizam todas as dissonâncias da música deste mundo.

Olhai à vossa volta e vede o que o mundo vos apresenta tanto de alto como de baixo. Ide à corte dos príncipes. Vede a riqueza e a arte de todas as nações reunidas para honrar o filho de um homem. Observai como os muitos se prostram diante dos poucos. Considerai as formalidades e o cerimonial, a pompa, o luxo, o esplendor – e a vanglória. Quereis saber o valor de tudo isso? Olhai para a Cruz de Cristo. Ide ao mundo da política: vede a inveja que opõe nação a nação, a competição entre uma economia e outra, exércitos e frotas enfrentados uns com os outros. Examinai os diversos estamentos da sociedade, os seus partidos e as suas contendas, as aspirações dos ambiciosos e as intrigas dos astutos. Qual é o fim de toda essa agitação? A sepultura. Qual é a sua medida? A Cruz.

Ide também ao mundo do intelecto e da ciência: considerai as maravilhosas descobertas feitas pela mente humana, a variedade de artes que essas descobertas fizeram surgir, os quase milagres pelas quais demonstra o seu poder, e considerai a seguir o orgulho e a autoconfiança da razão, e a absorção do pensamento em objetos transitórios, que é a sua conseqüência. Quereis julgar retamente tudo isso? Olhai para a Cruz.

Mais ainda: vede a miséria, vede a pobreza e a indigência, vede a opressão e o cativeiro; ide para onde o alimento é escasso e a moradia insalubre. Considerai a dor e o sofrimento, as doenças longas ou agudas, tudo o que é pavoroso e repugnante. Quereis saber que peso têm todas essas coisas? Olhai para a Cruz. Por isso, todas as coisas convergem para a Cruz – e para Aquele que dela pende – todas as coisas lhe estão subordinadas, todas as coisas necessitam dela. É o seu centro e a sua interpretação. Pois Ele foi levantado sobre ela para que pudesse atrair a si todos os homens e todas as coisas.

Mas, dir-nos-ão, a perspectiva da vida humana e do mundo que a Cruz de Cristo nos confere não é a que teríamos por nós mesmos; que não é um modo de ver evidente por si mesmo; as coisas são muito mais claras e ensolaradas do que nos parecem à luz da Quaresma. O mundo parece ter sido feito precisamente para que um ser como o homem desfrute dele, e o homem foi posto neste mundo; o homem tem a capacidade de desfrutar, e o mundo lhe fornece os meios de fazê-lo.

Que modo de pensar tão natural, que filosofia simples e ao mesmo tempo agradável! Mas, como é diferente da filosofia da Cruz! A doutrina da Cruz, poder-se-ia dizer, desarranja as duas partes de um sistema que parecem ter sido feitas uma para outra; separa o fruto de quem o come, o prazer de quem o desfruta. Que problema soluciona? Não será que antes cria um problema?

Respondo, em primeiro lugar, que seja qual for a força desta objeção, não faz senão repetir aquilo que Eva sentiu e Satanás incitou no Éden. Não viu a mulher que o fruto proibido era 'bom para comer' e 'de aspecto desejável'? Será então de estranhar que também nós, os descendentes do primeiro casal, nos encontremos num mundo onde há um fruto proibido, e que as nossas tentações consistam em que ele esteja ao nosso alcance e que a nossa felicidade consista em usufruirmos dele? O mundo, à primeira vista, parece feito para o prazer, e o conhecimento da Cruz de Cristo é uma visão solene e triste que interfere com essa aparência. Seja; mas não consistirá o nosso dever em que nos abstenhamos desse prazer, se era um dever até no Éden?

Mais ainda: dizer que esta vida está feita para o prazer e para a felicidade é encarar de maneira extremamente superficial as coisas. Para aqueles que olham além da superfície, este mundo conta uma história muito diferente. No fim das contas, a doutrina da Cruz somente nos ensina – embora de maneira infinitamente mais contundente – a mesmíssima lição que este mundo ensina àqueles que nele vivem longo tempo, que dele adquirem muita experiência, que o conhecem. O mundo é doce aos lábios, mas amargo ao paladar. Agrada no começo, mas não no fim. Parece alegre por fora, mas o mal e a miséria estão ocultos nele.

Quando um homem passou pelo mundo um certo número de anos, exclama como o autor do Eclesiastes: 'Vaidade das vaidades, tudo é vaidade' (Ecl 1, 2). Mais: se não tiver a religião cristã por guia, terá de ir além e dizer: 'Tudo é vaidade e descontentamento do espírito' (Ecl 6, 2); tudo é desapontamento, tudo é tristeza, tudo é dor. As dolorosas sentenças que Deus pronuncia contra o pecado estão embutidas no mundo e obrigam o homem a afligir-se, quer queira quer não. Portanto, a doutrina da Cruz de Cristo apenas antecipa a nossa experiência do mundo. É verdade que nos exorta a chorar os nossos pecados no meio de tudo o que sorri e brilha ao nosso redor; mas, se não lhe fizermos caso, acabaremos por chorá-los quando estivermos submetidos ao seu terrível castigo. Se não reconhecermos que este mundo se tornou miserável por causa do pecado, olhando para Aquele sobre quem os nossos pecados recaíram, acabaremos por sentir a miséria deste mundo quando as consequências dos nossos pecados recaírem sobre nós.

Temos de reconhecer, pois, que a doutrina da Cruz não se encontra à superfície do mundo, pois a superfície das coisas é meramente brilhante, e a Cruz é triste. É uma doutrina escondida, encontra-se sob um véu. Amedronta-nos à primeira vista, e sentimo-nos tentados a revoltar-nos contra ela. Tal como São Pedro, exclamamos: 'Que Deus não o permita, Senhor! Isto não te acontecerá!' (Mt 16, 22). No entanto, é uma doutrina verdadeira, pois a verdade não se encontra à superfície das coisas, mas nas suas profundezas.

(Sermão do Sexto Domingo da Quaresma - Parte I, pelo Cardeal John Henry Newman)