quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A MORTE DE SANTA BERNADETTE


Em 1877, ei-la novamente na enfermaria por motivo de uma série de novas hemoptises que dão rebate acerca do seu estado pulmonar. Não mais será vista na sacristia. Entrou na sua paixão, a paixão da Irmã Bernarda oferecida a Deus pelos pobres pecadores. Não sabemos tudo, nem as inspirações que lhe foram dadas nos momentos de êxtase, nem a compreensão com que ela pôde ser iluminada ante a tristeza infinita de Maria que pensava nos pecadores do Mundo. Mas estamos seguros de que o sentido da sua vida não foi outra coisa senão um oferecimento perpétuo de si mesma a Deus em favor desses homens desconhecidos e cegos.

... Toda a sua vida vibra desse mesmo tom de penitência, de compaixão para com aqueles que, com expressão de ternura, ela chama de pobres pecadores. Foi essa a sua maternidade, fraca imagem feminina de pureza absoluta, o resgate desse bando manchado de homens e mulheres chafurdando no pecado, e que ela adotava a cada instante nas suas dores. Foi por eles que se deitou sobre o leito da enfermaria, como sobre uma cruz da qual quase nunca mais se desencravará.

No inverno de 1877 sobreveio-lhe no joelho direito um abcesso tuberculoso. Não se conhecia ainda nenhuma medicação eficaz contra essas manifestações ósseas. Sofreu sem alívio, intoleravelmente, a tal ponto que se lhe via no rosto o desfiguramento. Cresceu-lhe no joelho um tumor enorme, que lhe foi deformando totalmente a perna, e que permanece ainda hoje muito visível no ataúde, debaixo das dobras inumeráveis do vestido monacal, que essa protuberância do joelho levanta à direita.

Nunca se queixou, ou se lhe escapava um grito, pedia perdão: 'Sou mais feliz com meu crucifixo no leito do que uma rainha em seu trono', disse ela um dia. Mais ainda. As devastações da doença contribuíam para estabilizar nela o que se poderia chamar de 'serenidade tuberculosa', esse predomínio da alma sobre os movimentos da natureza, que o físico mostra, como se essa doença fosse uma espiritualização.

... Agora ei-la reduzida a completa inatividade: aqueles trabalhos de bordado, em que se tornara tão hábil, aqueles coraçõezinhos que pintava nas imagens, aquele processo de decoração em ovos, que consistia em raspar certos lugares a casca pintada, - (tanto faz, dizia ela, caçoando de seu trabalho ingênuo, ganhar o céu raspando ovos quanto fazendo qualquer outra coisa!). Está entregue inteiramente ao seu martírio e à vida eucarística; a comunhão torna-se sua única alegria.

Ia subindo; sua união com Deus tornava-se constante. Aquela que, vinte anos antes, lograra um antegozo da vida beatífica não falava senão do Céu. ... Todos os que viviam em torno dela notaram isto, que à medida que seu pobre rosto emagrecia e sua feições se desfaziam, os olhos conservavam essa magnífica flama, próprio dos tuberculosos, e que se avivava ainda mais quando ela os levantava para o Crucifixo. 

... A tuberculose óssea generalizava-se. A Irmã Maria Bernarda [nome original de Santa Bernadette] emagrecia, e seu corpo, gasto pelo leito, cobria-se de chagas. E para que sua paixão fosse completa e conforme ao seu modelo, Deus a 'abandonou'. Perdeu a confiança; perdeu a paz; perdeu a certeza do Céu; julgou-se indigna de ser salva. Dir-se-ia que só naquele momento compreendeu intimamente o enorme cabeçal de graças que lhe foram concedidas. Sentiu o terror de não tê-las aproveitado. Já não é senão uma pobre coisa que sofre. 

... Distribuiu os pobres objetos que lhe haviam pertencido a todas as religiosas, e pediu que enviassem seu véu de estamenha à Irmã Isabel Vidal, que lhe ensinara a ler e escrever. só guardou o crucifixo, dizendo: 'Fica-me este. De nada mais preciso'... No momento de receber a comunhão, naquele dia, exclamou com voz, cuja força surpreendeu: 'Minha querida Madre, peço-vos perdão de todos os desgostos que vos causei pelas minhas infidelidades na vida religiosa. Peço perdão às companheiras dos maus exemplos que lhes dei, sobretudo com meu orgulho'.


Durante toda a semana santa vai sofrendo o seu martírio: 'A minha paixão durará até que eu morra!'.Assim fala e luta contra o demônio, cujo ataque sente nitidamente. Tem medo e grita. É mister dar-lhe segurança acerca da vida tão santa que levou e que ela julga indigna das graças recebidas. Por causa das sufocações, não pode ficar deitada. Sentam-na numa poltrona, com a perna doente colocada sobre um tamborete, frente à chaminé, de modo que veja a estátua da Santíssima Virgem.

Na quarta-feira da Páscoa, 16 de abril, às duas horas da tarde, o Pe. Febvre é chamado precipitadamente, porque ela quer se confessar. Em seguida reclama o rescrito da benção especial, in articulo mortis, que Pio IX, a quem escrevera um dia intitulando-se seu 'pequeno zuavo', lhe enviara. Como não tinha mais força para segurar o crucifixo, pediu que lho prendessem ao peito. Às duas horas e meia, seus belos olhos cheios de luz e de vida no rosto extenuado elevaram-se para o céu. Sua fisionomia respirava sossego, serenidade e não sei que gravidade melancólica; depois, com expressão indefinível, que manifestava antes surpresa do que dor, exclamou: 'Oh!Oh!Oh!' Juntamente estremeceu-lhe todo corpo; depois, com voz bem acentuada: 'Meu Deus, eu vos amo de todo o meu coração, de toda a minha alma, com todas as minhas forças!'

Estas linhas são de uma religiosa testemunha daqueles derradeiros instantes tão solenes. Em seguida, a Irmã Bernarda pede ainda perdão de todas as faltas. Diz: 'Tenho sede!' Apresentam-lhe um copo de água. Antes de molhar nele os lábios, faz o seu último sinal de cruz, um daqueles sinais de cruz que aprendera de Maria e que sempre foram causa de admiração para os que a rodeavam. Alguns minutos mais tarde, murmurou: 'Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por mim pobre pecadora...pobre pecadora...' E deu suavemente o último suspiro. Era o dia 16 de abril de 1879, às 3 horas e um quarto da tarde.

(Excertos da obra 'A humilde Santa Bernadette' de Colette Yver)