segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XIV)

Certo homem tinha três amigos. Dois desses amigos ele amava de forma tão especial que seria capaz de sacrificar tudo por tais amizades. Para o primeiro amigo, dedicava todo o seu tempo e todo o seu afeto e, para satisfazer todas as suas vontades, esquecia todo o resto e todos à sua volta. Na verdade, ele tinha também uma dedicação acentuada por um segundo amigo. Este segundo amigo o consumia por inteiro nas horas vagas do primeiro amigo, e estar com ele proporcionava uma felicidade particular e uma alegria extrema. E, para não faltar com a verdade, tinha ele ainda um terceiro amigo. Que não era exatamente como os outros dois. A sua companhia não era assim tão frequente, nem tinha realmente um zelo característico de uma amizade sincera e continuada. Era, enfim, um amigo das horas que sobravam.

Certa noite de um incerto dia, foi acordado por uma forte batida na porta. Levantou-se algo sonolento e, apressado, atendeu ao chamado. Era um estranho oficial com uma ainda mais estranha intimação - 'Eis aqui uma intimação que convoca você a participar de uma audiência judicial' - 'Audiência judicial? Mas de que estou sendo acusado?' respondeu o homem, apavorado - 'Eu não sei. Sou apenas o oficial da intimação. Tenho outras tantas intimações a fazer. Você deve comparecer amanhã diante do juiz. Favor assinar aqui, por favor'. E, em seguida, partiu apressado. 

O homem, agora um suspeito intimado pela justiça, estava perplexo e apavorado. 'De que estarei sendo julgado? O que pode ter acontecido, que coisa mais inesperada e sem sentido. O que posso fazer? O que devo fazer? Tenho poucos recursos e não tenho como pagar advogados'. As perguntas e as dúvidas consumiam o pobre homem. 'Meus amigos, devo procurar os meus diletos amigos, a quem poderia recorrer senão a eles? Eles poderão me ajudar, eles vão depor a meu favor, pois conhecem a minha integridade moral. Eles certamente me ajudarão a sair desta enrascada'. E, sem mais esperar, aprontou-se e saiu para contactar os seus amigos.

Chegado à casa do primeiro e maior amigo, bateu à porta resoluto. 'Este vai me ajudar de pronto, tenho sido para ele um amigo fiel e servil, nele tenho colocado toda a minha dedicação e todo o meu apuro'. 'Quem é?' rugiu uma voz impaciente. 'Quem vem me incomodar a esta hora da noite?' - 'Sou eu, meu bom amigo, preciso imensamente de sua ajuda generosa e imediata'. A contragosto, a porta se abriu e o amigo mal humorado o atendeu: 'Mas, você precisa de minha ajuda justo agora?' - 'Desculpe-me, velho amigo, mas preciso de você desesperadamente'. E contou-lhe sobre o oficial, a intimação, o tribunal, o julgamento do dia seguinte. - 'Conto com você, para me apoiar e me defender nesta questão. Você sabe que eu sou inocente. Por favor, me ajude'.  

- 'Sinto muito, mas infelizmente não será possível. Tenho todo o dia de amanhã tomado por um importante encontro de negócios, ao qual tenho me devotado há bastante tempo. Levo em enorme consideração a nossa frutuosa amizade e o seu zelo para comigo durante tanto tempo, mas não posso perder este negócio. Sei das suas dificuldades materiais e, neste sentido, posso lhe ajudar de alguma maneira'. Entrou em casa e voltou em seguida com um elegante terno nas mãos. 'Eis um terno refinado, que muito lhe ajudará a fazer boa figura frente ao juiz durante a sua defesa'. Desculpe-me, mas isto é tudo que posso fazer neste momento'. E, sem mais delongas, deu boa noite e lhe fechou a porta na cara. - 'Um terno', pensava o homem, dobrando cuidadosamente a roupa, 'uma amizade que eu julgava eterna tem o preço de um terno?'.

'Esqueça a ingratidão, homem, para que serve ter mais de um amigo? Vamos atrás de quem vai me receber de braços abertos e me confortar neste momento: o meu bom e velho segundo amigo'. Com estes pensamentos otimistas, dirigiu-se o pobre homem a uma segunda casa. A recepção, embora mais tarde da noite, foi mais calorosa. O segundo amigo o recebeu na ante-sala e perguntou-lhe o motivo de tanta ansiedade. O oficial, a intimação, o tribunal. O amigo o interrompeu solícito: 'Que absurdo, que acusação mais temerária. Como podiam acusar o amigo de coisas tão terríveis? Claro que ele estava à disposição, ele podia voltar na semana seguinte e aí pensariam juntos a melhor defesa, como responder às insinuações caluniosas, como provar a ilibada reputação do amigo...' - 'Agradeço a consideração, meu amigo, sabia que podia contar com você. Mas preciso de sua ajuda logo, urgente, porque o julgamento já está marcado para amanhã!'.

-'Amanhã?' O riso fácil desapareceu do rosto amigável do segundo grande amigo. 'Amanhã... amanhã é impossível!' É que amanhã já estou comprometido com uma festa da minha família. Vai ser o aniversário de 50 anos do meu irmão e já combinamos uma festa de dia inteiro, num sítio muito aprazível e com a participação de toda a minha família. Até a minha filha mais velha que anda sumida vai dar as caras. Sinto muito, meu amigo, entendo as suas necessidades, mas amanhã... amanhã é impossível'. - 'Amanhã é impossível; amanhã é impossível'. A frase ficou martelando na cabeça do pobre vistante. - 'Olha, o máximo que eu posso fazer é lhe acompanhar até a porta do tribunal; quem sabe a minha companhia pode lhe ser útil em alguma coisa? Assim, vou até lá com você logo cedo e ainda dará tempo para ir para o sítio e para a festa da minha família; o que você acha?' A pergunta ficou sem resposta pois o pobre homem, em total desconsolo, já havia alcançado a rua...

'Resta-me apenas o terceiro amigo, que mal conheço e por quem pouco apreço tenho. Estou perdido', a angústia começava a devorá-lo. 'Mas, depois de duas decepções tão grandes, de amizades que pareciam tão sinceras, o que seria mais um não de um amigo de poucas horas?'. Rumou o nosso desconsolado homem para a casa do seu terceiro amigo. À sua chegada, abriu-se uma espaçosa porta e lhe foi concedido o imediato assento no interior da casa. - 'Minha casa é a casa dos meus amigos. Seja bem-vindo e não se intimide por me procurar em momento inoportuno e a esta hora tardia. Os amigos, os verdadeiros amigos, não são para estas horas?'. Balbuciante e deveras trêmulo, esfregando as mãos no terno em desalinho, o pobre homem revelou ao seu terceiro e afastado amigo, todas as peripécias do seu drama: o oficial, a intimação, o tribunal, o julgamento do dia seguinte. - 'Você poderia me ajudar de alguma forma?' - 'Meu amigo, você ainda me pergunta se eu posso ajudar? Eu sou seu amigo, amigo de todas as horas, mesmo quando não estamos juntos. Você vai pernoitar na minha casa e quero que você se sinta aqui como se estivesse em sua própria casa. Amanhã iremos juntos ao tribunal e juntos ficaremos diante do juiz e eu serei, em todos os momentos, a sua segunda voz. Afinal, eu sou ou não sou o seu amigo?'

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Três amigos. Tão próximos de todos nós, homens comuns, como eu e você. Todos nós temos três amigos. O primeiro amigo que servimos incondicionalmente é o dinheiro. Fazemos tudo por ele, a ele damos toda a nossa atenção, todo o nosso tempo, toda a nossa devoção. O nosso segundo amigo são os parentes: pais, irmãos, filhos e netos. A eles, damos afeição, carinho, submissão; esquecemos de nós e lhes damos tudo o que possuímos, todos os presentes e todas as benesses. O terceiro amigo, o escondido de nós mesmos, são as nossas boas obras, são aqueles pequenos gestos, palavras e sentimentos que formam a nossa vocação de Filhos de Deus.

Um dia, numa manhã luminosa ou numa noite fria, um oficial de justiça virá bater à porta da nossa alma - esse visitante sobrenatural é a morte. E nos convocará sem ressalvas a prestarmos contas dos nossos atos diante do tribunal de Deus. Não haverá delongas, nem subterfúgios, nem instâncias a recorrer. Eu, você, a humanidade dos homens comuns terá apenas os três amigos a recorrer nestes derradeiros instantes.

O primeiro amigo - o dinheiro - há de lhe conceder apenas um terno. Toda a sua riqueza, ainda que enorme, vai lhe valer apenas o terno da sua última quimera. O seu segundo amigo - seus parentes - quer o amem muito ou mais ou menos, quer os tenha amado de todo coração, vão seguir os seus passos somente até a campa no cemitério. Não seguirão contigo, nem lhe farão companhia além; ali haverão de o deixar sozinho e retomar o cotidiano de suas próprias vidas.

Estará consigo, então, neste derradeiro adeus, apenas o seu terceiro amigo - as boas obras. Elas, sim, não lhe vestirão de galas externas e nem lhe abandonarão à beira do túmulo, mas compartilharão, como testemunhas fieis e solidárias, as suas palavras e a sua defesa diante do trono do juízo de Deus. E somente por elas, pela estrita intervenção cuidadosa deste seu terceiro amigo, é que o seu nome será escrito eternamente no Livro da Vida.

(texto de autor desconhecido, reescrito e adaptado pelo autor do blog)