quinta-feira, 9 de maio de 2013

VISÕES DO INFERNO (III)


DE SANTO ANSELMO (1033 - 1109, doutor da Igreja):

1. Eles (os condenados) jazem nas 'trevas exteriores' ... Pois, lembrai-vos, o fogo do Inferno não emite nenhuma luz. Assim como, ao comando de Deus, o fogo da fornalha babilônica perdeu o seu calor, mas não perdeu a sua luz, contrariamente, sob o comando de Deus, o fogo do Inferno, conquanto retenha a intensidade do seu calor, arde eternamente nas trevas.

2. É uma tempestade que nunca mais acaba, de trevas, de negras chamas e de negra fumaça de enxofre a arder, por entre as quais os corpos estão amontoados uns sobre os outros, sem uma nesga de ar. De todas as pragas com que a terra dos faraós foi flagelada, uma praga só, a das trevas, foi chamada de horrível. Qual o nome, então, que devemos dar às trevas do Inferno, que hão-de durar, não por três dias apenas, mas por toda a eternidade?

3. O horror desta estreita e negra prisão é aumentado pelo seu tremendo cheiro nauseabundo. Toda a imundície do mundo, todos os monturos e escórias do mundo, segundo está escrito, correrão para lá, como para um vasto e fumegante esgoto, quando a terrível conflagração do último dia houver purgado o mundo. Também o enxofre, que arde lá em tão misteriosa quantidade, enche todo o Inferno com seu intolerável fedor. E os corpos dos próprios danados exalam um cheiro tão pestilento que, como diz São Boaventura, só um deles bastaria para infectar todo o mundo.

4. Até o ar deste mundo, esse elemento vital e puro, torna-se fétido e irrespirável quando fica fechado longo tempo. Considerai, então, quanto deve ser irrespirável e fétido o ar do Inferno. Imaginai num cadáver fétido e pútrido, que tenha jazido a decompor-se e a apodrecer na sepultura, uma matéria gosmenta de corrupção líquida. Imaginai um tal cadáver preso das chamas, devorado pelo fogo de enxofre a arder e a emitir densos e horrendos fumos de nauseante e repugnante decomposição. E de seguida, imaginai esse cheiro nauseabundo multiplicado um milhão de vezes, por milhões de fétidas carcaças comprimidas na treva fumarenta, numa enorme fogueira de podridão humana. Imaginai tudo isso, e tereis uma pálida ideia do horror fétido do Inferno.

5. Mas tal fetidez extrema não é, terrível pensamento este, o maior tormento físico a que os danados estão sujeitos. O tormento do fogo é o maior suplício a que o demônio sempre tem sujeitado as suas vítimas. Colocai o vosso dedo, por um só momento, na chama duma vela, e logo sentireis a dor do fogo. Mas o fogo terreno foi criado por Deus para benefício do homem, para manter nele a centelha da vida e para ajudá-lo nas suas necessidades, ao passo que o fogo do Inferno é duma outra natureza e foi criado para atormentar e punir o pecador sem arrependimento.

6. O fogo terrestre, outrossim, consome-se mais ou menos rapidamente, conforme o objeto que ele ataca for mais ou menos combustível, ao ponto da inteligência humana ter sempre procurado inventar soluções para garantir ou frustrar a sua duração. Mas o sulfuroso breu que arde no Inferno é uma substância que foi especialmente criada para arder contínua e perpetuamente com indizível fúria. Além disso, o fogo terrestre destrói e consome-se ao mesmo tempo que arde, de maneira que quanto mais intenso ele for, mais curta será a sua duração; enquanto que o fogo do Inferno tem a propriedade de preservar aquilo que ele queima, e embora ataque com incrível violência, permanece para sempre.

7. E ainda, o nosso fogo terreno, não importando que intensidade ou tamanho possa ter, é sempre duma extensão limitada; mas o mar de fogo do Inferno é ilimitado, sem praias nem fundo. Está documentado que o próprio demônio, ao ser-lhe feita a pergunta por um soldado, foi obrigado a confessar que, se uma montanha inteira fosse jogada dentro do oceano ardente do Inferno, seria queimada num instante como um pedaço de cera. E esse terrível fogo não aflige os condenados somente por fora, pois cada alma perdida transforma-se num inferno dentro de si mesma, com o fogo sem limites enraivecendo-se na sua essência. Oh, quão terrível é a sorte desses desgraçados seres! O sangue ferve e referve nas veias; o cérebro fica fervendo no crânio; o coração, no peito flamejando e ardendo; os intestinos, uma massa vermelha e quente de polpa a arder; os olhos, tão sensíveis, flamejando como bolas fundidas.

8. Ainda assim, quanto vos falei da força, da qualidade e da imensidão desse fogo, é como se fosse nada, quando comparado com a sua intensidade, uma intensidade que é justamente tida como sendo o instrumento escolhido pela Justiça Divina para punição da alma, assim como igualmente do corpo. Trata-se dum fogo que procede diretamente da Ira de Deus, agindo assim não pela sua própria constituição, mas como instrumento do castigo divino. Assim como a água do Batismo limpa espiritualmente tanto a alma como o corpo, assim o fogo do Inferno tortura simultaneamente o espírito e a carne.

9. Todos as faculdades da alma são torturadas; e todos os sentidos do corpo outro tanto: os olhos com impenetráveis trevas; o nariz com fétidos nauseantes; os ouvidos com berros, uivos e execrações; o paladar com matéria sórdida, corrupção leprosa, sujeiras sufocantes inomináveis; o tato com aguilhões e chuços em brasa e cruéis línguas de chamas. E através dos vários tormentos dos sentidos, a alma imortal é torturada eternamente, na sua própria essência, no meio de léguas e léguas de ardentes fogos acesos nos abismos pela Majestade de Deus infinitamente ofendida, e soprados numa perene e sempre violenta fúria pela Ira da Onipotência Divina.

10. Considerai, finalmente, que o tormento dessa prisão infernal é acrescido pela companhia nefasta dos próprios condenados. A má companhia, sobre a terra, é tão prejudicial às pessoas, que até os próprios animais, por instinto, fogem da companhia do que lhes seja mortal ou nocivo. No Inferno, porém, todas as leis estão trocadas, pois lá não há nenhum pensamento de família, de pátria, de laços, de amizade. Os condenados odeiam e gritam uns aos outros a sua raiva e tortura, que são intensificadas pela sua presença, enfurecendo-se mutuamente.

11. Todo o senso de humanidade é esquecido ou negado. Os gritos dos réprobos em desespero enchem os mais recuados cantos do vastíssimo abismo.As mentes e as bocas dos condenados estão cheias de blasfêmias contra Deus, de ódio pelos seus companheiros de suplício, e de maldições contra as almas que foram suas cúmplices nos pecados. Nos tempos antigos, era costume punir o parricida, o homem que erguera a sua mão assassina contra o pai, arremessando-o nas profundezas do mar dentro dum saco, no qual também eram colocados um galo, um burro e uma serpente.

12. A intenção dos inventores dessa lei, que parece muito cruel nos nossos tempos, era punir tal gênero de homicídio também pela presença e ação de animais violentos e venenosos. Mas o que é a violência ou fúria desses animais estúpidos, comparada com a fúria da execração que rompe dos lábios tostados e das gargantas inflamadas dos danados no Inferno, quando eles contemplam nos seus companheiros de desgraça aqueles mesmos que os levaram ou incitaram ao pecado, aqueles cujas palavras criaram as primeiras sementes do mal nos seus espíritos, aqueles cujas atitudes insensatas conduziram-nos ao delito, aqueles cujos olhos os tentaram e desviaram do caminho da virtude? Só podem voltar-se contra esses seus cúmplices do pecado, insultando-os e amaldiçoando-os. Não terão, contudo, nenhum socorro nem ajuda, visto que já é demasiado tarde para o arrependimento (que eles mesmos abominam).

13. Finalmente, considerai o terrível tormento daquelas almas condenadas, as que tentaram e as que foram tentadas, agora todas juntas e, ainda por cima, na companhia dos demônios. Esses demônios afligirão os réprobos de duas maneiras: com as suas horríveis presenças e com as suas odiosas acusações. Não podemos ter uma ideia de quão horríveis são esses demônios. Uma vez, Santa Catarina de Sena viu um demônio, tendo escrito que preferia caminhar por cima de carvões em brasa, até ao fim da sua vida, a ter que olhar de novo, por um só instante, para tão horroroso monstro.

14. Tais demônios, que originariamente foram belíssimos anjos, tornaram-se tão feios e repugnantes quanto antes tinham de formosos e atraentes. Eles escarnecem e riem com desprezo das almas perdidas que arrastaram para a ruína. E é pelos diabos que são feitas, no Inferno, as vozes de acusação dos condenados: 'Por que pecaste? Por que deste ouvidos às tentações dos amigos? Por que abandonaste as tuas práticas piedosas e as tuas boas ações? Por que não evitaste as ocasiões de pecado? Por que não deixaste aquele mau companheiro? Por que não desististe daquele mau hábito, daquele hábito impuro? Por que não ouviste os conselhos do teu confessor? Por que, mesmo depois de haveres tombado a primeira, ou a segunda, ou a terceira, ou a quarta, ou a centésima vez, não te arrependeste dos teus maus passos e não voltaste para Deus, que esperava apenas pelo teu arrependimento para te absolver dos teus pecados? Agora, o tempo para o arrependimento já passou. O tempo no mundo ainda existe, mas tempo na eternidade não existe mais.'

15. 'Tempo houve para pecar às escondidas, para satisfazer a preguiça e o orgulho, para cobiçar o ilícito, para ceder às tentações e aos maus instintos, para viver como as bestas do campo, ou antes, pior do que as bestas, porque elas apenas são irracionais, não possuindo uma razão que as guie. Tempo houve no mundo, mas tempo no Inferno não existe mais. Deus falou-te por intermédio de tantas vozes, mas não quiseste ouvi-las. Não quiseste esmagar esse orgulho e esse ódio do teu coração, não quiseste devolver aqueles bens mal adquiridos, não quiseste obedecer aos preceitos da tua Santa Igreja, nem cumprir os teus deveres religiosos, não quiseste abandonar aqueles péssimos companheiros, não quiseste evitar aquelas perigosas tentações.' 

Tal é a linguagem desses atormentadores diabólicos, com palavras de sarcasmo e de reprovação, de ódio e aversão. De aversão, também sim, pois os próprios demônios, quando pecaram como anjos, fizeram-no por meio dum pecado incompatível com a natureza de tão angélicas criaturas: o da rebelião do seu intelecto (pela infidelidade contra Deus). Por tudo isso, estes mesmos demônios infernais só podem desprezar e odiar os réprobos, revoltados com o nojo e a aversão de terem de contemplar semelhantes pecados também nos homens ímpios, que desse modo ultrajaram a Deus e profanaram o templo do Espírito Santo, aviltando-se e degradando-se a si mesmos.