quarta-feira, 22 de setembro de 2021

A VIDA OCULTA EM DEUS: 'LEVANTA-TE, MINHA AMADA...'


'Levanta-te, minha amada; vem, formosa minha. Eis que o inverno passou: cessaram e desapareceram as chuvas. Apareceram as flores na nossa terra, voltou o tempo das canções. Em nossas terras já se ouve a voz da rola' 
(Cântico dos Cânticos 2, 10-12)

O inverno é a estação das trevas e do frio. As noites são longas, os dias são desbotados. Não há folhas, nem flores, nem frutos. Os pássaros ficam em silêncio. Tudo está letárgico, tudo parece morto. Assim também a alma interior padece o seu inverno. Ela conheceu as trevas do espírito, a letargia do coração, aquelas horas em que tudo estava frio, quando tudo nela parecia estar morto. Não havia mais luz, nem calor, nem vida. Deus se escondia. A alma estava sozinha em um deserto sem caminhos, açoitada por todos os ventos, sacudida por todas as tempestades. Era a hora dos misteriosos abandonos, da agonia e do calvário. Mas era preciso ser assim para desfrutar da glória.

Eis que o inverno acabou para sempre! E sois Vós, ó meu Deus, que se digneis anunciá-lo à alma! Vossa palavra não pode enganar, pois sois a própria Verdade. Por outro lado, a alma tem ciência bastante para saber o que isso significa. Podem sobrevir ainda alguns retornos de escuridão e de frio porque a terra não é o céu, mas esses momentos de provação serão poucos e não permanecerão. O inverno acabou. Graças a Vós, ó meu Deus! Que as almas tenham que passar por esta dura jornada é uma necessidade que se impõe à Vossa sabedoria, ainda que possa machucar o Vosso coração. Ficais algo impaciente para superar de vez esse inverno rigoroso. Assim que possível, assim o fazeis. E, uma vez feito, podeis anunciar com alegria à Vossa alma que os tempos de provação já passaram e que os belos dias não mais tardarão.

Entre o inverno e a primavera, permeia a estação chuvosa. Faz menos frio; está menos escuro. Os dias se alongam e, de vez em quando, brilham alguns raios de sol. Mas, geralmente, cai uma chuva embaçada, monótona e persistente. Quase não se pode sair. O horizonte está nublado, baixo, quase ao alcance da mão. No contexto espiritual, a alma interior conhece também uma estação muito semelhante. Em seu espírito há menos escuridão; em seu coração, menos frio. De vez em quando, parece que as coisas vão mudar para melhor. Mas, na maioria das vezes, um véu cinza a envolve. Não se vê muitas coisas à frente. O que haverá por trás dessa cortina sem desenhos e sem cores? Pode-se inferir, mas sem certezas. A espera é longa, monótona, um pouco cansativa para a imaginação. O coração permanece fiel e até ainda mais. Mas a alma demora a se livrar dessa espécie de prisão. Não tardeis, ó meu Jesus!

E Jesus vem. E então anuncia à alma que a estação chuvosa já 'passou', que passou definitivamente. E apresenta imediatamente a prova: 'as flores já brotaram da terra'. A alma, com efeito, não é mais aquela terra endurecida pelo frio ou encharcada pelas chuvas; mais parece o campo na primavera. Está coberta de flores. A campânula, valorosa e cheia de esperança, vê a violeta humilde, tímida e perfumada brotar ao seu lado. Impera o pensamento contemplativo, e o gracioso cravo pende a sua flor, um tanto pesada, em direção ao sol, como uma imagem da alma, cheia de vida interior e pronta a vicejar. Floresce então o puríssimo lírio e, por fim, a rosa primaveril da caridade. As flores das virtudes são exibidas na alma em todos os sentidos, formando em torno dela uma coroa de ornamento incomparável. Eis um dos grandes encantos deste mundo: a  primavera de uma alma interior é algo deslumbrante.

Nesse momento da vida espiritual, os olhos da alma se abrem para o mundo. Vê a terra incensada de almas em flor. O que ela agora é, as outras também o são. O que da obra divina se capta em si mesmo, contempla-se com alegria em outras almas. Ela está maravilhada, extasiada por um espetáculo tão belo. Tudo o mais desaparece aos seus olhos e ela não vê senão isso. Então, à medida que as virtudes se desenvolvem nela, seus olhos se abrem ainda mais e seu olhar se torna mais penetrante. Observa muito melhor a variedade de formas, a riqueza das nuances e a harmonia das cores. Desenvolveu-se nela como que um toque misterioso. Basta uma pequena coisa para adivinhar onde está a obra de Deus nesta ou naquela alma. Também lhe parece que está dotada de um novo sentido para captar os aromas espirituais, que são tão variados quanto as virtudes e como as almas. Para ela, enfim, existem flores do céu na terra. 

Quando a alma sentia frio - quando a chuva nublada e triste da provação a envolvia, ela não sabia senão gemer dolorosamente ou ficar em silêncio; mas agora tudo mudou. Deus, o seu verdadeiro sol, a ilumina, a aquece, a encanta. Não é hora de expressar bem alto a sua felicidade, e de cantar? Sim, de fato, 'chegou a hora do cântico'. E agora a alma interior canta. A canção de amor da eternidade começa aqui nesta terra. Esta é uma melodia misteriosa. O grau de harmonia de sua vontade com a vontade de Deus é sua tônica. Quanto mais perfeita a união, mais a entonação aumenta. Bem aventurada a alma cuja ação tende cada vez mais à plena realização da vontade divina! A sua voz eleva-se às alturas do céu e esta última nota é a que agrada aos ouvidos de Deus. Com ela a melodia termina nesta vida, mas para recomeçar além e para sempre.

Para incentivar a alma interior a segui-lo de vez, o Divino Esposo faz notar que já se pode ouvir o arrulhar da rolinha. Ela não teria deixado o seu refúgio de inverno se a primavera não houvesse chegado. A alma e a pequena ave obedecem à mesma lei. O canto da rolinha tem algo doce, gentil, constante, agradavelmente monótono. Dir-se-ia ser a própria voz de uma afeição autoconfiante que, para ser querida, basta repetir-se sem pulsos extremados, quase num murmúrio, mas sem interrupções. E, no mais íntimo da alma interior, existe também uma voz que canta assim, que...

Canta docemente, quase murmurando, uma melodia muito singela,
que se contenta com algumas poucas notas em intervalos justos:
'Ó Amor que eu amo! Meu Deus, meu Tesouro, meu Tudo, meu Amor que amo!'

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte II -  A Ação de Deus; tradução do autor do blog)