sábado, 29 de dezembro de 2018

SOBRE A PRÁTICA DA SIMPLICIDADE

Aos vossos olhos, a simplicidade iluminará e transformará todas as coisas, fazendo com que tudo vejais à luz de Deus. Mostrar-vos-á a verdadeira finalidade da vida, 'o único necessário' do Evangelho, desprender-vos-ei do prazer, do sucesso, da fortuna e de todas as vaidades do mundo. Mostrar-vos-á o pecado como o inimigo de Deus, o adversário irreconciliável de Jesus Cristo, o único mal a temer. Em vossos corações, porém, não deixará ódio e sim compaixão pelos perseguidores da Igreja. Fará com que os vejais mais como infelizes do que como culpados, cegos, transviados, almas no caminho do inferno e dignas de piedade.

A simplicidade vos tornará vigilantes para fugir às ocasiões de pecado, desconfiadas de vós mesmas, mas cheias de confiança na toda poderosa proteção de Deus; e vos conservará em segurança no meio das mais terríveis tentações...  No sofrimento, a simplicidade vos será maravilhoso auxílio. Não mais o vereis como fardo que vos esmaga, como chaga que vos irrita e enerva, como obstáculo intransponível à perfeição. Se fordes simples, vereis o sofrimento através do coração e da bondade de Deus. Vê-lo-eis como remédio misterioso que a Deus apraz usar, em seu amor infinito, para apagar e destruir vossos pecados, encher-vos a alma de riquezas sobrenaturais, unir-vos mais estreitamente a Jesus Cristo e com Ele vos fazer cooperar na redenção do mundo.

Quantos benefícios vos presta a simplicidade em todas as provações da vida! O que é demorado para as almas que não são simples será breve para vós; que lhes parece uma eternidade vos parecerá um minuto. O que as perturba e desorienta, as desencoraja e desanima, o que as torna amargas e irritadas, nunca satisfeitas, vos deixará calmas e tranquilas. Os elevados cumes cobertos de neve, pela sua brancura, separados dos montes que os rodeiam, não estão menos perto do céu quando a tempestade se desencadeia e se abate sobre eles; continuam firmes e imóveis como quando o céu azul os envolve e os banha de luz. O mesmo acontece às almas que a simplicidade eleva e aproxima de Deus. Com sua brancura imaculada, dominam as provações da vida; conservam a calma e a paz no meio da tormenta e se mantêm tão perto de Deus como nos mais belos dias... Da mesma sorte, depois que foram experimentadas, as almas simples revestem aos olhos de Deus o esplendor, a formosura e a transparente pureza que antes não possuíam. 

A simplicidade não vos impedirá de sofrer, mas de tal forma modificará o sofrimento que não mais o reconhecereis. Não continuareis a sofrer do mesmo modo. Não mais sofrer deixará de ser para vós o ideal, como o é para as pessoas do mundo. Não mais exclamareis num grito de triunfo: morreu sem sofrer, não sentiu a morte! como se no mundo não houvesse outro mal que o sofrimento... No entanto, sabereis aceitar para vós e para os vossos o bom sofrimento, quando Deus vo-lo enviar e na medida em que Ele deseja que o suporteis. Utilizá-lo-eis e o transformareis; ou, melhor, será ele que, aceito com espírito de simplicidade, vos transformará, tornando-vos semelhantes a Jesus e atravessando-vos, como a Ele, os pés e as mãos, dilacerando-vos o corpo, cobrindo-vos a cabeça de chagas, abrindo e transpassando-vos o coração.

Assim recebido, como o sofrimento perde a amargura, como se torna suave e como sentireis a verdade desta palavra de fé: 'Todas as lágrimas secam aos pés de Jesus, todas as dores se aquietam e adormecem sob os divinos ósculos'. A simplicidade transformará todos os vossos sentimentos, colocando-vos na verdade, quer se trate de alegria, quer de dor. Far-vos-á ver em luz muito pura que a única tristeza verdadeira é ofender a Deus, desagradar-lhe, contristar o seu coração; ou a pena de ver que outros o ofendem, o desonram ou dele se afastam. Oh! Eis o que vos arrancará lágrimas e, se vos tornardes bastantes santas, vos causará uma espécie de contínua agonia, como a do Salvador.

... A simplicidade vos desprenderá de tantas alegrias vãs, senão ridículas ou ímpias, às quais o mundo se entrega. Far-vos-á compreender a desgraça de todas as loucuras que põem a própria felicidade na riqueza, no prazer, na lisonja, no sucesso, na beleza, nas flores e nos perfumes. ... A alegria só pode existir no coração puro e na alma simples. Aí transborda e se espalha, como um aroma, sobre todas as dores da existência. Como no-lo afirma o Evangelho, as almas simples são felizes mesmo entre lágrimas, porque encontram as mais divinas consolações.

Aos vossos olhos, a simplicidade transformará todos os deveres da vida. Mostrar-vos-á os grandes como se ainda fossem maiores e mais santos; far-vos-á sentir por eles maior entusiasmo e maior ardor. Engrandecerá e elevará os que são pequenos; fará transparecer a majestade de Deus nos mais humildes e nos menores. Quantos benefícios vos fará a simplicidade! São as coisas materiais da vida que mais vos fatigam. Os pequenos e humildes deveres, esses ínfimos nadas de cada dia, que se renovam com desesperadora monotonia, que vos envolvem como em emaranhada rede e que, ao fim de algum tempo, vos caem em cima tão pesadamente, eis o que vos cansa e vos abate. Vos sentis feitas para subir; aspirais ganhar a amplidão; e ficais paradas, no meio de águas barrentas, dentro de um pobre barquinho, de onde não conseguis sair! É isso o que vos desespera!

Mas aqui está o meio fácil e sempre ao vosso alcance de ganhar novos horizontes, de vos expandirdes de cada vez buscar maior altura, de incessantemente vos alimentardes das grandes coisas de que tendes fomes e sede! Este meio é a simplicidade! Deus encontra-se aí nessas minúcias, nessas ninharias fatigantes e monótonas, nessas vulgares e comezinhas ocupações, como se encontrava na palha e nas faixas de Belém. Aí está Ele e não o vedes porque vos falta a simplicidade. Se fordes simples, vereis Deus no pó das ações vulgares e materiais de cada dia, do mesmo modo que, no presépio, o viram os olhos de Maria e José; e,  porque o vereis, estas ações se tornarão grandes e santas como Ele. ... A alma simples compreende que 'O Verbo só se fez carne para que a carne se tornasse Verbo'. A simplicidade tem o maravilhoso poder de divinizar o pó! ... sede simples em todas as obras de apostolado, de caridade e de devotamento que realizardes; sede simples, isto é, fazei tudo para Deus.

Há pessoas que se entregam às obras de caridade por ostentação... outras encaram essas obras como passatempo, distração útil ao isolamento e consolo às suas tristezas; outras, ainda, só enxergam o lado filantrópico e social. E todas estão muito longe da simplicidade pregada pelo Evangelho... Algumas desejam sinceramente o bem do próximo, tudo que lhe é útil ao corpo e à alma, ao bem-estar e à salvação: essas, na verdade, esquecem-se de si e vivem para os outros. Mas, no ardor de servir ao próximo, perdem Deus de vista, ou, pelo menos, veem as almas mais do que a Deus. Amam as almas mais por elas do que por Deus. E na intenção que têm, em vez de colocar primeiro Deus e depois as almas, elas põem estas em primeiro lugar. Vêem Deus apenas através das almas e não as almas através de Deus. Essas, embora já possuam a simplicidade, não a tem em grau suficiente, porque sua intenção não é bastante pura.

Finalmente, há as que procuram Deus, mas não o fazem ainda como seria necessário. Em lugar de servir ao plano de Deus, servem às próprias idéias. Gostariam de impor a Deus a visão que têm das coisas, a própria maneira de agir, a própria pessoa. Sua simplicidade não é perfeita. Em qualquer obra, a verdadeira simplicidade consiste em trabalhar para Deus com absoluta pureza de intenção, procurando agradar-lhe antes e acima de tudo... É bela a dedicação ao próximo por amor a Ele; mas essa dedicação é mil vezes mais bela quando a razão é Deus e quando a vivifica o pensamento de que, trabalhando-se para o próximo, se glorifica a Deus.

Se fordes simples, Deus será o primeiro em vosso pensamento e em vossa vontade, como o será também em vosso coração. Tudo provirá dele, tudo se fará por Ele e para Ele, tudo lhe será atribuído.
A glória, o serviço e o amor de Deus, eis a felicidade da alma simples! Não se deve deixar absorver nem mesmo pelos mais instantes e elevados interesses das almas, mas sim renovar incessantemente as intenções e dirigi-las a Deus, vendo sempre Deus nas almas e as almas em Deus.

Não se deve esquecer tão pouco que a única forma de glorificar a Deus é servi-lo, dar-lhe provas de amor e cumprir a sua vontade, isto é, dedicar-se na medida em que Deus o exige, jamais se impondo e agindo sempre de acordo com o plano de Deus e não com o próprio. Portanto, vós, que recebestes de Deus a submissão do apostolado e da caridade, deveis repelir quaisquer pensamentos humanos, egoístas, maldosos, que a vós se apresentem, substituindo-os por intenções inteiramente puras, por pensamentos essencialmente divinos.

Se o demônio vos murmura ao ouvido que o mundo vos estima pelas obras de caridade que pratica e que valeis mais do que os outros, e vos incita espírito de domínio ou de complacência para convosco, se, aos vossos olhos, oculta a glória de Deus deixando aparecer o objetivo humano e temporal, fechai os olhos, fechai os ouvidos a essas pérfidas sugestões, retificai vossa vontade e dizei a Deus: 'Senhor não almejo outro fim a não ser a realização de Vossa obra, outro guia além de Vossa vontade, outra verdade senão a de procurar a Vossa glória, trabalhando na salvação das almas'.

(Excertos da obra 'A Simplicidade Segundo o Evangelho', de Monsenhor Gibergues)