IX
DOS EFEITOS DA CARIDADE - ALEGRIA OU GOZO, PAZ, MISERICÓRDIA, BENEFICÊNCIA, ESMOLA E CORREÇÃO FRATERNA
Que efeitos produz na alma o exercício da virtude da Caridade?
Primeiramente gozo ou alegria (XXVIII, 1)*.
O gozo, efeito da Caridade, anda misturado com alguma tristeza?
Quando é gozo de complacência em Deus como Bem Infinito, não, Senhor; mas afirmativamente, quando nos alegramos em Deus, termo de nossa bem-aventurança futura e não possuída, como sucede às almas do Purgatório e a quantos vivem na terra (XXVIII, 2).
Por que anda neste caso acompanhado de tristeza?
Porque há ou pode haver algum obstáculo físico ou moral que se oponha à união íntima com Ele.
E, em tal caso, predomina a alegria ou a tristeza?
Predomina a alegria que tem por objeto e causa principal a felicidade e o gozo eterno, pacífico, seguro, que, na contemplação de sua essência, desfruta o divino Amigo (Ibid).
Produz algum outro efeito o ato principal da Caridade?
Sim, Senhor; produz a paz (XXIX, 3).
Em que consiste?
Na tranquilidade que desfruta o espírito quando todos os nossos pensamentos e afetos, e os de todas as criaturas intelectuais, se orientam e dirigem a Deus, fim supremo da felicidade (XXIX,1).
Produz a caridade algum outro fruto ou ato secundário?
Sim, Senhor; o ato de misericórdia (XXX).
Que entendeis por misericórdia?
Uma virtude especial, fruto da Caridade, ainda que distinta dela, que inclina o ânimo a compadecer-se das misérias e desgraças do próximo, considerando-as, de algum modo, como próprias, visto que afligem ao nosso irmão, e tendo em conta que podemos ver-nos em idênticas condições (XXX, 1-3).
Possui nobreza especial a virtude da Misericórdia?
É por excelência a virtude de Deus, não porque Ele seja capaz de sentimentos afetivos de dor ou tristeza, mas pelos benefícios que concede por impulsos do seu amor (XXX, 4).
É entre os homens a virtude própria dos perfeitos?
Sim, Senhor; pois quanto mais um ser se aproxima de Deus, tanto mais compassivo e inclinado está para remediar desgraças e misérias, por todos os meios espirituais e temporais ao seu alcance (Ibid).
É de grande proveito a prática desta virtude para restabelecer e garantir a paz social?
Sim, Senhor.
Há algum ato exterior que seja efeito da virtude da caridade?
Há vários, e o primeiro é a beneficência (XXXI, 1).
Em que consiste a beneficência?
Como o seu próprio nome indica, consiste em fazer algum bem a outrem (Ibid).
É sempre ato da virtude da caridade?
Sempre, sim, Senhor (Ibid).
Pode ser ato de virtudes distintas da caridade, ainda que dela dependentes?
Pode e efetivamente o é, quando à razão geral do bem que se faz ao próximo, se ajunta a de ser necessário, devido, ou outras razões especiais (Ibid).
Que virtude intervém na beneficência, quando é obrigatória?
A virtude da Justiça (XXX, 1, ad 3).
E quando, sem o ser, se acha o próximo em necessidade?
A virtude da misericórdia (Ibid).
Como se chama o ato de caridade que consiste em beneficiar ao próximo, mediante a virtude da misericórdia?
Chama-se esmola (XXXII, 1).
Quantas classes há de esmola?
Duas: espiritual e corporal (XXXII, 2).
Quais são as esmolas corporais?
São as seguintes: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, visitar os enfermos, remir os cativos e sepultar os mortos (Ibid).
Quais são as espirituais?
Rogar a Deus por vivos e defuntos, ensinar os ignorantes, dar bom conselho a quem o for mister, consolar os tristes, castigar os que erram e perdoar as injúrias (Ibid).
Deus dá grande importância à esmola?
Dá-lhe tanta que, segundo o Evangelho, ela servirá de critério no dia de Juízo para fundamentar a sentença de prêmio ou condenação eterna.
Quando teremos obrigação grave e estrita de dar esmola?
Quando o próximo se ache em necessidade espiritual ou corporal grave e não haja quem o socorra (XXXII, 5).
Ainda que a necessidade não seja grave, nem opressora, há obrigação estrita de não acumular, mas de empregar em proveito do próximo ou da sociedade, os bens espirituais e temporais supérfluos que tenhamos recebido de Deus?
Sim, Senhor.
Há alguma esmola que tenha particularíssima importância?
Sim, Senhor: a correção fraterna (XXXIII, 1).
Que entendeis por correção fraterna?
A esmola espiritual ordenada a dar remédio aos pecados do próximo (Ibid).
É esta esmola ato da virtude da caridade?
Sim, Senhor; por intermédio da misericórdia e com o concurso da prudência, encarregada de excogitar meios adequados para conseguir fim tão excelente, como delicado e difícil (Ibid).
Constitui obrigação de preceito?
Havendo ocasião e circunstâncias oportunas, sim, Senhor (XXXIII, 2).
Quem está obrigado a corrigir?
Todos os que se sentem animados do espírito de caridade e sem as faltas ou pecados que tratam de emendar, estão obrigados a corrigir o seu próximo, quem quer que seja, ainda que seja superior, com a obrigação de guardar as devidas atenções e considerações, e contanto que possam abrigar a esperança fundada de emenda; em caso contrário, estão dispensados, e devem abster-se de corrigir (XXXIII, 3 – 6).
X
DOS VÍCIOS OPOSTOS À CARIDADE E DE SEUS ATOS - ÓDIO, TÉDIO OU PREGUIÇA ESPIRITUAL, INVEJA, DISCÓRDIA, OBSTINAÇÃO, CISMA, GUERRA, RIXA (DUELO), SEDIÇÃO E ESCÂNDALO
Qual é a primeira coisa de que deve estar isento o coração do homem para tratar com seus semelhantes?
Do sentimento do ódio (XXXIV).
Que é o ódio?
É o vício mais funesto e diametralmente oposto ao ato principal da caridade, o amor de Deus e do próximo (XXXIV, 2-4).
É possível que alguma criatura tenha ódio a Deus?
Sim, Senhor (XXXIV, 1).
Como pode isto ser, considerando-se que Deus é Bem Infinito e Autor de todos os bens, naturais e sobrenaturais das criaturas?
É tal a depravação moral de alguns seres, que não consideram a Deus como bem infinito e fonte de toda a perfeição e de toda luz, mas apenas como legislador que proíbe cometer pecados e juiz que castiga os cometidos, dos quais não querem arrepender-se (Ibid).
Logo, o ódio a Deus é uma espécie de obstinação diabólica no mal?
Sim, Senhor.
Há pecado maior do que este?
Não, Senhor (XXXIV, 2).
Pode ser lícito em alguma ocasião odiar ao próximo?
Não, Senhor (XXXIV, 3).
Mas se há homens que praticam o mal, por que não havemos de odiá-los?
Não devemos odiar aos que procedem mal, mas tão somente detestar o seu pecado, em atenção ao amor que devemos ter-lhes (Ibid).
Não poderemos jamais desejar-lhes algum mal?
Não, Senhor; se bem que, em virtude do amor que devemos ao próximo, à sociedade e sobre tudo a Deus, podemos desejar-lhes alguns males e castigos como meios de trazê-los ao bom caminho e ressalvar os direitos da sociedade e da honra de Deus (Ibid).
Podemos desejar a alguém a condenação eterna?
Por grandes que sejam seus crimes e pecados, nunca será lícito, pois tal ato é diretamente oposto à caridade que nos ordena desejar a todos, exceto aos demônios e aos réprobos que já estão no inferno, a bem-aventurança celestial.
Há algum vício oposto particularmente ao segundo ato de caridade, chamado gozo ou alegria?
Sim, Senhor; o vício da tristeza quando se manifesta em forma de fastio das coisas e bens sobrenaturais que são o objeto da caridade (XXXV).
Como é possível tal fastio?
Porque os homens têm o gosto espiritual tão depravado, que não acham prazer em Deus e assim consideram o que a Ele se refere como coisa odiosa, sombria e melancólica.
É sempre pecado mortal?
Quando degrada o apetite sensitivo e chega a invadir a razão, sim Senhor (XXXV, 1).
Por que neste caso é pecado mortal?
Porque é diretamente contrário à caridade que, ao impor-nos a obrigação de amar a Deus sobre todas as coisas, nos manda buscar nele a alegria, o repouso e a tranquilidade (XXXV, 3).
É a tristeza, de que vimos falando, pecado capital?
Sim, Senhor; porque é origem de outros muitos que os homens cometem, certas vezes pretendendo evitá-la e em outras vezes impelidos por ela mesma (XXXV, 4).
Que nome tem?
Chama-se tédio ou fastio espiritual.
Podereis enumerar os pecados derivados da preguiça?
Sim, Senhor; desesperação, pusilanimidade, indolência para observar os mandamentos, rancor, malícia e divagação pelos campos do ilícito (XXXV, 4 ad 2).
É a preguiça o único vício oposto à alegria da caridade?
Não, Senhor; há outro, chamado inveja (XXXVI).
Em que se diferencia a inveja da preguiça ou tédio espiritual?
Em que, o tédio se opõe a alegrar-se no bem divino conforme é e está em Deus e que nós teremos de gozar algum dia, e a inveja se opõe a alegrar-se no bem do próximo (XXXV, XXXVI).
Logo, que entendeis por inveja?
Um pesar do bem alheio, não porque nos prejudique, mas porque outro o possui (XXXVI, 1- 3).
A inveja é pecado?
Sim, Senhor, porque o bem do próximo produz ao invejoso desgosto e incômodo, quando lhe deveria causar alegria (XXXYI, 2).
É sempre pecado mortal?
Sim, Senhor, por ser essencialmente contrário à caridade; só pode ser venial quando se limite aos primeiros movimentos indeliberados da sensibilidade (XXXVI, 3).
É pecado capital?
Sim, Senhor, porque origina outros muitos, já por se derivarem dela, já por entrarem nela inteiramente (XXXVI, 4).
Que pecados se derivam da inveja?
A murmuração, a maledicência ou difamação, a alegria na adversidade do próximo, a tristeza na sua prosperidade e o ódio (Ibid).
Há vícios opostos à caridade, por se oporem também à paz?
Sim, Senhor.
Quais são?
A discórdia, que reside no coração, a porfia nas palavras e na ação: o cisma, a rixa, a sedição e a guerra (XXXVII, XLII).
Em que consiste a discórdia?
Na atitude do que, deliberadamente e consciente do seu erro, se opõe ao parecer e ditame dos outros, em coisas que pertencem à honra de Deus ou ao bem do próximo; em manter a dita atitude ainda que seja de boa fé, em matéria indispensável para a salvação; e, em qualquer circunstância, sustentá-la com obstinação e pertinácia (XXXVII, 1).
Em que consiste a porfia?
Em contender com palavras (Ibid).
É pecado a porfia ou contenção?
É pecado quando se porfia pelo prazer de contradizer; também o é, com maioria de razão, quando se prejudica o próximo, ou os foros da verdade; também o é finalmente, quando, ainda que se defenda a verdade, se faz em tom imoderado e com palavras mortificantes (XXXVIII, 1).
Que entendeis por cisma?
A cisão ou ruptura com que alguém, livre e espontaneamente, se aparta da unidade eclesiástica, recusando obstinadamente submeter-se à Autoridade do Soberano Pontífice, ou conviver com os demais fiéis, como membro da mesma Igreja (XXXIX, 1).
Por que enumerais a guerra entre os pecados opostos à caridade?
Porque a guerra injusta é um dos maiores crimes que se podem cometer contra o próximo.
É lícito em alguma ocasião fazer a guerra?
Com causa suficiente e sem cometer injustiças durante o seu desenvolvimento, sim, Senhor (XL, 1).
Que entendeis por causa suficiente?
A dura necessidade de fazer respeitar pelas armas os direitos essenciais para as boas relações entre os homens, rompidas por uma nação que se nega a desagravar e satisfazer (Ibid).
Sem estas duas condições é alguma vez lícita a guerra?
Não, Senhor (Ibid).
Praticam ato de virtude os que pelejam na guerra justa e pessoalmente não cometem injustiças?
Sim, Senhor; porque se expõem aos maiores perigos, para defender a causa de Deus e de seus irmãos.
Em que consiste o pecado oposto à paz, chamado rixa?
Em uma espécie de guerra entre particulares, estabelecida sem mandato da autoridade pública; por este único conceito é sempre falha grave para quem a provoca (XLI, 1).
Acha-se compreendido neste vício o combate especial chamado duelo?
Sim, Senhor; com a agravante de que o duelo se combina a sangue frio e não sob o impulso repentino das paixões.
É o duelo ato essencialmente mau?
Sim, Senhor; porque o duelista põe em grave perigo a sua vida e a do seu adversário, contra o disposto por Deus.
Em que consiste a sedição como vício oposto à Caridade?
Na formação de partidos ou bandos, no seio de uma nação ou Estado com o objeto de conspirar ou de promover arruaças e tumultos, uns contra os outros, ou contra a autoridade e o poder legítimo (XLII, 1).
Tem especial gravidade o pecado de sedição?
Sim, Senhor; porque assim como não pode haver bem mais apreciado num povo do que a ordem pública, base e condição indispensáveis para a sua prosperidade, assim também não se pode cometer contra ele maior crime do que o da guerra intestina; assim, em certo modo, a sedição é um crime superior ao da guerra injusta (XLII, 2).
Há algum pecado especial oposto à caridade per ser contrário ao seu ato exterior, chamado beneficência?
Sim, Senhor; o pecado de escândalo (XLIII).
Em que consiste o pecado de escândalo?
Em dizer ou fazer alguma coisa capaz de ocasionar a ruína espiritual do próximo, ou em tirar das palavras e feitos de outros, ocasião de pecar; no primeiro caso se dá escândalo, no segundo se recebe (XLIII, 5).
Escandalizam-se somente os imperfeitos?
Ainda que qualquer ato reprovável possa levar a turbação ao ânimo dos mais virtuosos, no sentido próprio da palavra, só os imperfeitos se escandalizam (XLIII, 5).
Podem os justos dar escândalo?
Não, Senhor; porque, enquanto forem justos, nada farão que possa escandalizar e, se alguém tira dos seus feitos motivos de escândalo, deve atribuí-lo à própria malícia e perversidade (XLIII, 6).
Têm os justos, em determinadas ocasiões, a obrigação de abster-se de algumas coisas para não escandalizar os pusilânimes?
Não sendo em coisas necessárias para a salvação eterna, sim, Senhor (XLIII,7).
Há obrigação de abandonar algum bem para evitar o escândalo dos maus?
Não, Senhor (XLIII, 7, 8).
* referências aos artigos da obra original
('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)