sábado, 23 de abril de 2016

OS FRUTOS DA GRAÇA

Tudo se renova em nós desde que encontremos no Filho de Deus uma juventude eterna. São João dá-nos a certeza: com o seu olhar de águia, olha para a fonte de toda a luz e diz-nos: 'A vida manifestou-se e nós vimo-la, e damos dela testemunho, e vos anunciamos esta vida eterna, que estava no Pai e nos aparecem' (I Jo 1 ,2). O discípulo amado comunica-nos o que viu com palavras simples e transparentes: dá-nos parte da verdade essencial, e todo aquele que vive dela vê abrir-se o caminho que leva às profundidades de Deus. 

As circunstâncias deste mundo só nos fazem parar se deixarmos de atentar no essencial. A razão humana, incapaz de se concentrar no único bem necessário às nossas almas resgatadas, não pode iluminar os caminhos interiores: só a fé os descobre, numa confissão sincera da nossa total impotência. A humildade fiel faz brotar todas as fontes da graça. Desde o momento em que deixamos de lhe vedar a entrada na nossa alma pelo pecado, a claridade divina irrompe por todo o nosso ser: a sua medida não é a mesma que a nossa, e a sua liberdade infinitamente generosa é o segredo de Deus. 'Eu terei misericórdia com quem me aprouver ter misericórdia; e terei piedade de quem me aprouver ter piedade' (Rm 9, 15) e 'Deixei que me encontrassem os que não me procuravam; mostrei-me aos que não me buscavam' (Rm 9, 20).

Porque foi que Ele nos escolheu, porque foi que nos preferiu a milhões de outras pessoas? Esta graça só pode ser o sinal de um amor imenso: 'Foi por amor que ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, por sua livre vontade' (Ef 1, 5). Este Pai que nos deu o Seu Filho poderá na verdade recusar-nos alguma coisa? 'O que não poupou nem o seu próprio Filho, mas por nós todos o entregou à morte; como não nos dará também com ele todas as coisas?' (Rm 8, 32).

O Filho ofereceu o seu sangue e a sua vida: poderia porventura dar-nos prova mais perfeita do seu amor? E entre os bens do seu próprio coração deu-nos a sua Mãe bem-amada, aquela que o anjo louvou pela sua fé, para que ela nos transmitisse todas as riquezas da graça. E apenas nos pede em troca que acreditemos nEle e no Pai, que acreditemos na virtude do seu preciosíssimo sangue derramado por nós, no valor dos seus sacramentos, na vida da Igreja, sua esposa, e no poder da oração: 'Se pedirdes a meu Pai alguma coisa, em meu nome, Ele vo-la dará; pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja perfeita' (Jo 16, 23-24).

Por mais fracos e miseráveis que sejamos, temos um caminho aberto e seguro; para curar a nossa alma, é-nos oferecido um remédio sempre eficaz: a oração. Deus conhece as nossas necessidades, mas espera de nós o pedido humilde e a imploração do seu socorro. Precisamos de orar! Não como uma torrente de palavras, mas com o mais simples impulso interior: invocar o nome de Deus com confiança durante o trabalho cotidiano pode ser o suficiente. O que importa é a vontade filial de nos apoiarmos no Pai e o esforço suavemente insistente para elevar para Ele uma oração cheia de fé: esta perseverança toca infalivelmente o coração de Deus: 'Pedi e recebereis procurai e encontrareis; batei e abrir-se-vos-á' (Mt 7, 8). 

Nada resiste à alma que confia no amor do Pai: Ele próprio deve ceder à esperança fiel, ao abandono que invoca a sua bondade infinita. O próprio Espírito nos inspira esta conduta e nos revela estes segredos de poder e de amor: 'É Deus que opera tudo em todos: é um só e o mesmo Espírito que opera estes dons, repartindo a cada um como quer' (I Cor 12, 6-11). Ele não fala em feitos sobre-humanos nem em cuidados torturantes, mas em recolhimento, em verdade interior, em humildade e doçura, e principalmente em confiança e abandono filial: 'Não vos aflijais, pois... o vosso Pai celeste conhece as vossas necessidades. Buscai, pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o resto vos será dado por acréscimo' (Mt 6, 31-33).

A timidez espiritual, forma insidiosa e disfarçada do amor-próprio, só é desmascarada e repelida pela luz da graça. O despeito de nada poder nem valer coisa nenhuma transforma-se em gratidão: torna-se evidente que devemos entregar-nos ao próprio Deus. Entramos assim nas relações perfeitas que devem unir a criatura perdida e o Salvador que a encontra e a resgata: somos beneficiários sem mérito nenhum da nossa parte, enquanto Ele é o doador e o dom inestimável: 'Que tens tu que não recebesses? E se o recebeste, porque te glorias como se o não tiveras recebido?' (I Cor 4, 7).

O nosso vil ardor em procurar a consideração e as boas graças dos homens tem como fonte a nossa falta de interesse pelas maravilhas que a graça quer operar em nós e a nossa cegueira perante a dignidade de filhos de Deus. O ciúme e a ambição que envenenam a vida do homem não têm outra raiz senão o desconhecimento dos seus privilégios divinos: o orgulho e a vaidade não se apoiam num apreço exagerado, mas num apreço irrisoriamente insuficiente por aquilo que é nosso, se o quisermos aceitar. Há um sentimento de inferioridade que é um insulto para Deus e um grave perigo para a alma. 

A psicanálise fala do recalcamento dos instintos mas desconhece a recusa das inspirações divinas, cujos efeitos são infinitamente mais nocivos para o ser racional. É este complexo que leva a alma a dobrar-se sobre o mundo material, depois sobre si mesma e, por fim, a atrofiar-se. Urge arrancar esse germe da morte que é o desprezo do nosso verdadeiro destino e do dom de Deus: 'Despojai-vos sem demora da vossa vida passada, do homem velho corrompido pelas paixões enganadoras; renovai-vos no espírito do vosso entendimento: revesti-vos do homem novo, criado segundo Deus na justiça e na santidade verdadeiras' (Ef 4, 22-24).

Devemos obedecer e submeter-nos: é a lei de toda a criatura enquanto não está incluída na ordem da graça, mas a mensagem de salvação que nos é dirigida é o remédio para todas as formas de miséria. Aprendamos a viver segundo o exemplo do Espírito: se isso parece uma escravatura aos homens que não conhecem a chave do seu ser, nós sabemos que é nisso que consiste a mais pura liberdade: 'Não recebais em vão a graça de Deus, pois Ele diz: Eu te ouvi no tempo aceitável e te ajudei no dia da salvação' (II Cor 6, 2).

(Excertos da obra 'Intimidade com Deus', de um cartuxo anônimo)