Eu não existia... Deus me criou; não podia continuar a existir por mim mesmo. Deus me tem conservado: logo sou todo seu. Entregar-me-ei em suas mãos sem reservas. 'Entrego-me nas vossas mãos, com confiança, como um pouco de barro, fazei de mim um homem novo!' Que fim nobre é o meu! A felicidade de Deus consiste em amar a si mesmo e este amor é também um objeto de minha felicidade. Ó liberalidade infinita de Deus: a alma no céu ficará saturada de gozo, não pode imaginar um prazer que não possua. Para um fim sobrenatural, é necessário viver uma vida sobrenatural; todas as minhas ações, palavras e pensamentos devem ser dirigidos pelo sobrenatural: ser o homem sobrenatural.
Eis o ideal! Mas se o homem não alcançar o seu fim será lançado no inferno por toda a eternidade... desespero eterno; sem um momento de descanso, de felicidade. E eu me salvarei? Com tantos pecados? Que dúvida terrível! No entanto, posso assegurar a minha salvação e nela cuido tão pouco. A minha vocação à Companhia é uma prova não só de que Deus quer me salvar, mas que quer me salvar com perfeição. Se queres entrar na vida observa os mandamentos: os mandamentos, os votos, as regras, as ordens dos superiores, eis como posso assegurar a minha salvação: na sua perfeita observância. Ânimo e coragem! Um fim tão nobre merece que se empreguem todos os meios. E todas as mais criaturas Deus criou para a consecução do meu fim e para que eu O glorifique por meio delas. As criaturas me ajudarão: i) buscando nelas o seu Criador pela contemplação; ii) usando delas moderadamente; iii) abstendo-me daquelas que prejudicam a minha salvação. Reta intenção antes de usar qualquer criatura.
Para observar a lei do uso das criaturas necesse est facere nos indifferentes. Durante a explicação dos pontos, parece-me que compreendi a necessidade e os bens desta indiferença. Na vida prática e cotidiana como tem lugar a aplicação deste facere indifferentes. É uma conclusão lógica do que ficou atrás: fui criado por Deus, devo servi-lo e para este fim usar das criaturas tantum quantum. Ora, a respeito do uso de algumas, não sei quanto e quando me ajudam à consecução do meu fim. Logo, devo estar indiferente. É necessário. Sem esta indiferença, a vida religiosa toma-se pesada, custe embora à natureza nada lhe devo conceder. Tempo livre, trabalhos manuais, ofício, mudança de horário, em tudo a aplicação prática do necesse est facere nos indifferentes. Não só nisto mas também nas coisas espirituais, na oração, facere nos indifferentes, quanto à consolação ou à desolação.
Persuadi-me intimamente que não devo servir a Deus como eu quero, mas como Ele quer, e a Sua vontade se manifesta pelo superior, qualquer que seja ele. Esta indiferença pode ser matéria de meditações e reformas com muita aplicação na vida prática, desejando e escolhendo aquilo que mais conduz ao fim. Em geral são as coisas da natureza que mais nos ajudam à consecução do nosso fim; estas, é lícito desejar a procurar não tendo nada em contrário manifestado pela obediência. Eis o ideal do jesuíta: homens crucificados para o mundo e para os quais o mundo seja também crucificado, tais devemos ser por obrigação do nosso estado. Que perfeição exige de mim a Companhia! Como tenho me ocupado pouco em alcançar as sólidas e verdadeiras virtudes! Determinei usar dos meios que a Companhia me oferece: oração, exame geral e particular, leituras, exercícios espirituais, renovação semestral, reforma mensal, sacramentos etc. e com tantos meios não chegarei à perfeição de meu estado? Um jesuíta perfeito, igual em tudo a si mesmo!
Todas as criaturas já estão no mundo. Deus forma o primeiro homem, dá-lhe uma alma racional e colocando-o no paraíso lhe diz: 'Tu me glorificarás, por meio destas criaturas; criei-as para te servirem de meio ao teu fim que é servir-me'. E o homem usa das criaturas para seu deleite e prazer, põe nelas o seu fim! Que loucura! O que não me conduz ao meu fim devo deixar, embora agrade à natureza. Se Deus não tivesse usado de misericórdia comigo eu estaria no inferno. Quantos pecados Deus suportou e não me castigou!
Mas não só não estou no inferno. Estou na Companhia. Que ingratidão se não correspondo à minha vocação; uma vida de mediocridade não basta, é necessário ser santo. Devo trazer sempre à memória os meus pecados, como um estímulo e aguilhão para me levar à perfeição. Senti uma dor viva dos meus pecados. No colóquio me dava grande fervor e consolação imaginar-me aos pés de Jesus Crucificado, abraçando-o como Madalena e o seu sangue me lavara toda a alma. Senti vivamente a bondade divina. Que misericórdia! Jesus, meu Pai, meu amor! Será possível que Vós me não tivésseis perdoado depois de me fazer sentir o que senti? Jesus, continue a usar comigo a vossa misericórdia. Manda-me qualquer castigo, tudo é pouco em relação ao número e enormidade de meus pecados. Perdão, meu amado Jesus!
Impressionou-me nesta meditação, principalmente, os tormentos da vida e dos ouvidos. Milhões e milhões de condenados agitando-se em convulsões horrorosas, o desespero transparecendo no rosto, os cabelos eriçados como outras tantas víboras. Que espetáculo! Resolvi observar com rigor a regra da modéstia para de algum modo satisfazer os pecados que cometi com a vista. Os ouvidos são atormentados por uma gritaria de desespero, imprecações, injúrias e blasfêmias contra Jesus e Maria. Se Deus não houvesse usado de misericórdia para comigo, estaria agora ouvindo blasfêmias contra Jesus e contra minha boa mãe, Maria. Que gratidão não devo mostrar para com Deus. Ó pecado, como és um grande mal, pois mereces tamanho castigo. Um castigo eterno! Passam-se mil anos, um milhão de milhões de anos e ainda está no seu princípio. Como por um prazer instantâneo me hei de por em perigo de ir ao inferno. Ah, não, com o auxílio de Deus, não cometerei nunca um pecado mortal!
(Excertos da obra 'Exercícios Espirituais' do Pe. Leonel Franca)