XVI
DOS PRECEITOS RELATIVOS À PRUDÊNCIA
Existe no Decálogo algum preceito relativo à prudência?
Não, Senhor; porque os preceitos do Decálogo, expressão do que a lei natural exige, têm por objeto os fins da vida humana, e a prudência versa sobre os meios de consegui-los; se bem que, em certo modo a ela se referem todos os mandamentos, como reguladora de todas as virtudes (LVI. 1)*.
Logo, os preceitos relativos à prudência são posteriores e complementares dos do Decálogo?
Sim, Senhor; e se encontram também na Sagrada Escritura, no Antigo Testamento, e de modo mais concreto no Novo (Ibid).
Não há no Antigo Testamento preceitos severíssimos contra os vícios opostos à prudência?
Sim, Senhor; contra a astúcia, o dolo e a fraude (LVI, 2).
Por que proibiu Deus de modo tão especial estes pecados?
Porque quase sempre se tocam com as matérias da Justiça, ponto de vista de todo o Decálogo (Ibid).
XVII
DA VIRTUDE DA JUSTIÇA — O DIREITO NATURAL, POSITIVO, PRIVADO, PÚBLICO, NACIONAL, INTERNACIONAL, CIVIL E ECLESIÁSTICO — JUSTIÇA LEGAL E PARTICULAR — VÍCIOS OPOSTOS
A virtude da justiça segue em categoria e importância à da prudência?
Dado o seu caráter particular, a prudência, sem a qual não pode existir nenhuma virtude moral, ocupa o primeiro lugar; depois dela, a Justiça (LVII, CXXI).
Que entendeis por Justiça?
A virtude que tem por objeto o direito, isto é, o justo (LVII, 1).
Que entendeis quando afirmais que tem por objeto o direito ou o justo?
Que está destinada a manter a paz e harmonia entre os homens, fazendo que cada um respeite as pessoas, atribuições, faculdades e bens legitimamente adquiridos e possuídos pelos outros (Ibid).
A que normas devemos atender para averiguar quais são os direitos legítimos dos outros?
Primeiramente, ao que dita a razão natural; em segundo lugar, aos convênios havidos entre os homens prudentes e, por último, às disposições da autoridade legitima (LVII, 2-4).
Como se chama o direito fundado nos ditames da razão?
Chama-se direito natural.
E o fundado em convênios e em leis promulgadas pela autoridade competente?
Direito positivo, o qual se divide em privado e público, e este, por sua vez, em nacional e internacional, baseado o primeiro em convênios privados e em leis da nação e o segundo, em pactos entre os diversos Estados (Ibid).
Não falastes também de direito civil e eclesiástico?
Sim, Senhor; e se distinguem em que o primeiro se apóia em atos emanados da autoridade civil e o outro nos da eclesiástica.
Limita-se o direito, enquanto objeto da virtude da Justiça, a impor ordem nas relações dos particulares entre si, ou estende-se às dos particulares com o conjunto ou sociedade?
Abrange as duas coisas (LVTII, 5-7).
Que nome tem a virtude da Justiça no segundo caso?
Chama-se Justiça legal (Ibid).
E no primeiro?
Justiça particular (Ibid).
Poderíeis definir com precisão a virtude da justiça?
Sim, Senhor; consiste na disposição consciente, duradoura e irrevogável da vontade, mediante a qual se dá a cada um tudo o que lhe pertence (LVTII, 1).
Como se chama o vício oposto a esta virtude?
Chama-se injustiça; e o mesmo se opõe tanto à justiça legal quando prejudica o bem comum, como à particular, cujo objeto é manter as relações dos cidadãos sobre a base da igualdade (LIX).
Em que consiste propriamente este último pecado de injustiça?
Em atentar livre e espontaneamente contra o direito de outrem, isto é, em negar o que outro natural e razoavelmente deve e pode querer (LIX, 3).
XVIII
DO JUÍZO COMO ATO DA JUSTIÇA PARTICULAR
Tem a Justiça algum ato de especial importância, considerada, sobretudo, como justiça particular?
Sim, Senhor; o ato do Juízo, que consiste em determinar com exatidão aquilo que a cada um se deve dar, principalmente se se trata de ofício para administrar justiça aos litigantes, cargo próprio dos juízes, ou em particular para discernir em consciência e por amor à Justiça, até onde se estendem os deveres e os direitos de cada um (LX).
Em caso de dúvida, deve inclinar-se o Juízo para o lado da benevolência?
Tratando-se do próximo, sim, Senhor; pois a Justiça exige que jamais se pronuncie sentença condenatória, quer seja exterior, ou simplesmente interior e de pensamento, enquanto permaneça de pé alguma dúvida (LX. 4).
Apesar disto, podemos em determinadas ocasiões presumir e suspeitar da existência do mal sem provas suficientes?
Sim, Senhor; quando devamos preveni-lo ou remediá-lo, pois a Justiça legal, a prudência e a caridade nos mandam ser cautelosos e supor, ao menos como possível, a maldade de certos homens, ainda que dela não tenhamos a certeza, mas apenas conjecturas (LX, 4, ad 3).
Tendes que formular alguma reserva a esta doutrina?
Sim, Senhor; porque ainda neste caso, temos obrigação de não emitir contra quem quer que seja, juízo formalmente desfavorável.
Poderíeis explicar-me com um exemplo?
Se eu visse um homem de catadura suspeita, não teria o direito de julgá-lo ladrão, nem mesmo consigná-lo como tal; porém se o visse rondar a minha casa ou as dos meus amigos, teria direito de tomar cuidado para que tanto dentro de minha casa como das deles, tudo estivesse a salvo de uma surpresa ou tentativa de roubo.
* referências aos artigos da obra original
('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)