domingo, 24 de junho de 2018

RUMO À SANTIDADE (III)


Havíamos começado com orações vocais, simples, encantadoras, que aprendemos na infância e que não gostaríamos de abandonar nunca. A oração, iniciada com esta ingenuidade pueril, desenvolve-se agora em caudal largo, manso e seguro, porque vai ao passo da amizade por Aquele que afirmou: 'Eu sou o Caminho' (Jo 14, 6). Se amamos Cristo assim, se com divino atrevimento nos refugiamos na abertura que a lança lhe deixou no lado, cumpre-se a promessa do Mestre: 'Se alguém me ama, guardará a minha doutrina, e meu Pai o amará, e viremos a ele e nele faremos morada' (Jo 14, 23). 

O coração necessita então de distinguir e adorar cada uma das Pessoas Divinas. De certa maneira, o que a alma realiza na vida sobrenatural é uma descoberta semelhante às de uma criaturinha que vai abrindo os olhos à existência. E entretém-se amorosamente com o pai e com o Filho e com o Espírito Santo; e submete-se facilmente à atividade do Paráclito vivificador, que se nos entrega, sem o merecermos, os dons e as virtudes sobrenaturais! 

Corremos como o cervo, que anseia pelas fontes das águas: com sede, gretada a boca, ressequida. Queremos beber nesse manancial de água viva. Mergulhamos ao longo do dia nesse veio abundante e cristalino de frescas linfas que saltam até a vida eterna. Sobram as palavras, porque a língua não consegue expressar-se. Deus, quando acudimos a Ele com arrependimento, da nossa miséria tira riqueza; da nossa debilidade, fortaleza. O que não nos há de preparar então, se não o abandonamos, se frequentamos a sua companhia todos os dias, se lhe dirigimos palavras de carinho confirmadas com nossas ações, se lhe pedimos tudo, confiados na sua onipotência e na sua misericórdia? Se prepara uma festa para o filho que o traiu, só por tê-lo recuperado, o que não nos outorgará a nós, se sempre procuramos ficar ao seu lado? 

Longe da nossa conduta, portanto, a lembrança das ofensas que nos tenham feito, das humilhações que tenhamos padecido - por muito injustas, descorteses e rudes que tenham sido - porque é impróprio de um filho de Deus ter preparado um registro para apresentar uma lista de agravos. Não podemos esquecer o exemplo de Cristo, e a nossa fé cristã não se troca como quem troca de roupa; pode debilitar-se, robustecer-se ou perder-se. Esta vida sobrenatural dá vigor à fé, e a alma se apavora ao considerar a miserável nudez humana sem o divino. E perdoa e agradece: 'Meu Deus, se contemplo a minha pobre vida, não encontro nenhum motivo de vaidade e, menos ainda, de soberba; só encontro abundantes razões para viver sempre humilde e compungido. Bem sei que não há nada tão senhoril como servir'. 

Levantar-me-ei e rodearei a cidade; pelas ruas e praças buscarei aquele a quem amo... (Ct 3,2). E não é só a cidade; correrei todo o mundo de trás para a frente - por todas as nações, por todos os povos, por picadas e atalhos - para alcançar a paz de minha alma. E a descubro nas ocupações diárias, que para mim não são estorvo; que são - pelo contrário - vereda e motivo para amar mas e mais, e mais e mais me unir a Deus. 

E quando nos espreita - violenta - a tentação do desânimo, dos contrastes, da luta, da tribulação, de uma nova noite na alma, o salmista nos põe nos lábios e na inteligência estas palavras: 'Com Ele estou no tempo da adversidade' (Sl 90, 15). O que vale, Jesus, diante da tua cruz, a minha?; diante das tuas feridas, os meus arranhões? o que vale, diante do teu Amor imenso, puro e infinito, este fardo de nada que me puseste às costas? E os vossos corações - como o meu - se enchem de uma santa avidez, confessando-lhe - com obras - que morremos de amor. 

Nasce uma sede de Deus, uma ânsia de compreender as suas lágrimas; de ver seu sorriso, seu rosto. Julgo que o melhor modo de exprimi-lo é voltar a repetir com a Escritura: 'Como o servo que anseia pelas fontes das águas, assim por Vós anela minha alma, ó meu Deus!' (Sl 41,2). E a alma avança comprometida em Deus, endeusada: fez-se o cristão viajante sequioso, que abre a boca às águas da fonte. Com essa entrega, o zelo apostólico se inflama, aumenta de dia para dia e pega esta ânsia aos outros, porque o bem é difusivo. Não é possível que a nossa pobre natureza , tão perto de Deus, não arda em fomes de semear pelo mundo inteiro a alegria e a paz, de regar tudo com as águas redentoras que brotam do lado aberto de Cristo, de começar e acabar  todas as tarefas por amor. 

Falava há pouco de dores, de sofrimento, de lágrimas. E não me contradigo se afirmo agora que, para um discípulo que procura amorosamente o Mestre, é muito diferente o sabor das tristezas, das penas, das aflições: desaparecem, mal se aceita deveras a Vontade de Deus, logo que cumprimos com gosto os seus desígnios, como filhos fiéis, ainda que os nervos pareçam desfazer-se e o suplício se nos afigure insuportável. 

Interessa-me confirmar de novo que não me refiro a uma forma extraordinária de viver cristãmente. Medite cada um no que Deus fez por si e no modo como correspondeu. Se formos valentes nesse exame pessoal, perceberemos o que nos falta. Ontem me comovia ao ouvir falar de um catecúmeno japonês que ensinava catecismo a outros que ainda não conheciam Cristo. E envergonhava-me... Necessitamos de mais fé , mais fé! E, com a fé, a contemplação. 

Recordemos com fé aquela divina advertência que enche a alma de inquietação e, ao mesmo tempo, lhe sabe a favo de mel: Redemi te, et vocavi te nomine tuo: meus es tu (Is 43,1) - 'Eu te redimi e te chamei pelo teu nome: tu és meu!' Não roubemos a Deus o que é seu. Um Deus que nos amou a ponto de morrer por nós, que nos escolheu desde toda a eternidade, antes da criação do mundo, para sermos santos na sua presença e que continuamente nos oferece ocasiões de purificação e de entrega. Caso ainda tenhamos alguma dúvida, há outra prova que recebemos de seus lábios: Não fostes vós que me escolhestes, mas eu que vos escolhi para irdes e dardes fruto; e para que permaneça abundante esse fruto do vosso trabalho de almas contemplativas (cf Jo 15, 16). Portanto, fé, fé sobrenatural. 

(Parte III da Homilia 'Rumo à Santidade', pronunciada em 26/11/1967, por São Josemaria Escrivá)