Essa questão atual já tem 8 anos de idade. Mas continua atual como nunca. Afinal, a Igreja de Cristo pode ou não pode ter dois papas? E dependendo do SIM ou do NÃO, um verdadeiro tsunami cismático pode resultar desta resposta... Em ambos os casos, os argumentos a favor ou contra essa condição estão baseados na possibilidade de um papa poder ou não poder renunciar. Se a renúncia do papa Bento XVI não foi válida, ele seria ainda o papa da Igreja e a Igreja não teria dois papas. Se, ao contrário, a renúncia papal foi válida, Francisco é o papa da Igreja e Bento XVI um papa emérito e, assim, a Igreja tem hoje efetivamente dois papas.
Os argumentos apresentados a seguir, subdivididos em duas postagens distintas, resumem as principais premissas ou hipóteses que tendem a favorecer uma ou outra concepção da resposta à questão 'A Igreja pode ter dois papas?', na acepção análoga à questão 'Um papa pode renunciar em favor de um outro papa?'
PARTE II - ARGUMENTOS A FAVOR DO SIM
(i) uma vez que o papa recebeu diretamente de Cristo a autoridade para governar a Igreja, possui, portanto, competência expressa para, entre tantas outras coisas, depor ou aceitar a renúncia de qualquer um dos seus membros, inclusive a própria, podendo então dissolver por livre arbítrio o vínculo que o une à mesma, se julgar que tal ato é de proveito à Igreja;
(ii) o vínculo de matrimônio espiritual entre o papa e a Igreja tem uma natureza limitada e passível de dissolução no tempo, por ser totalmente distinta da natureza do matrimônio cristão (que é um sacramento e amparado pelas palavras de Cristo) e do matrimônio espiritual entre Cristo e a sua Igreja (este sim, não passível de qualquer interrupção ou diluição, posto que amparado pelas palavras de Cristo e pela consumação dos séculos);
(iii) o ato de renúncia papal constitui um ato de absoluta decisão e de liberdade pessoal, não podendo, portanto, ser regulamentado por proposições canônicas de quaisquer naturezas;
(iv) a renúncia de um papa não obstrui ou impede a continuidade do governo eclesiástico da Igreja, mas introduz meramente uma pausa no processo vigente, até a indicação de um sucessor por um processo legitimado pelos cânones específicos da Igreja, como acontece comumente nos casos da morte de um pontífice;
(v) a concessão de um poder dado por Deus ao sucessor de Pedro na terra incorpora, como primícias irrevogáveis, o livre arbítrio do sucessor de Pedro para atuar livre e incondicionalmente da forma que pautar ser a mais propícia aos interesses de Cristo e da Igreja (uma condução ilegítima nestes termos poderia demandar a suspensão ou mesmo o afastamento do pontífice, mas nunca o favorecimento ou o impedimento de um ato próprio de renúncia);
(vi) como Vigário de Cristo na terra, o papa exerce um poder divino limitado no tempo do seu próprio pontificado; o ato de renúncia não obstrui ou diminui esse poder divino enquanto aplicável; o que se reduz e efetivamente diminui é o tempo do exercício pleno pelo papa desse poder divino, a partir do ato de renúncia que abrevia esse tempo;
(vii) desta forma, o poder divino e o primado de Pedro (autoridade papal) não são conceitos coligados ou interdependentes por completo; o primeiro se exaure quando se renuncia ao segundo (com a perda da autoridade pontifícia); assim, o papa que renuncia não é mais papa no sentido em que não possui mais o sumo poder (não é mais o 'sumo sacerdote');
(viii) a renúncia de um papa não constitui nem uma inovação despropositada e nem uma aberração canônica, uma vez que os papas podem legislar sobre quaisquer assuntos de interesse da Igreja, desde que não estabeleçam premissas contrárias à sã doutrina; nesse sentido, podem introduzir mecanismos de renúncia ou precedentes legais de afastamento da função pontifícia (foi, nesse contexto que o papa Celestino V estabeleceu uma lei eclesiástica relativa à renúncia papal e, em seguida, a aplicou no seu próprio caso);
(ix) a renúncia de um papa é um instrumento absolutamente legal e legítimo (embora deva constituir um evento de natureza e de contexto excepcionais), se visa atender primariamente aos interesses da Igreja e não aos interesses pessoais do papa que renuncia;
(x) Jesus Cristo estabeleceu as bases da sua Igreja e formulou, no seu lastro, os seus grandes princípios e sacramentos, não existindo, portanto, contestações de ordem canônica ou bíblica (pressupostos da Lei Mosaica, por exemplo) a um ato (renúncia papal) que não viola ou destitui quaisquer princípios fundamentais ou sacramentos da Igreja.