segunda-feira, 23 de março de 2015

A FÉ EXPLICADA (XVII): SOBRE A POSSESSÃO DIABÓLICA


A possessão diabólica é um fenômeno singular em que um corpo humano é tomado e invadido por uma espírito diabólico, que passa a dominar e a manipular este corpo como se fosse o seu próprio. Há, portanto, duas características intrínsecas à possessão: (i) a presença do demônio no corpo do possuído; (ii) o domínio completo e despótico do demônio sobre o corpo. Esta manifestação pode incluir um ou mais espíritos malignos conjuntamente e possui um caráter periódico indefinido (a manifestação não ocorre o tempo todo, mas em períodos repentinos e específicos). Por outro lado, a possessão é sempre limitada, porque a ação diabólica, por mais virulenta que possa ser, não é capaz de se apoderar da liberdade humana, a qual é sempre preservada por Deus. 

São inúmeras as referências de possessões diabólicas nos Evangelhos; no capítulo 5 do Evangelho de São Marcos, Jesus se defronta com um caso de possessão envolvendo uma legião inteira de espíritos malignos:

'Assim que saíram da barca, um homem possesso do espírito imundo saiu do cemitério, onde tinha seu refúgio e veio-lhe ao encontro. Não podiam atá-lo nem com cadeia, mesmo nos sepulcros, pois tinha sido ligado muitas vezes com grilhões e cadeias, mas os despedaçara e ninguém o podia subjugar. Sempre, dia e noite, andava pelos sepulcros e nos montes, gritando e ferindo-se com pedras. Vendo Jesus de longe, correu e prostrou-se diante dele, gritando em alta voz: Que queres de mim, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te por Deus, que não me atormentes. É que Jesus lhe dizia: Espírito imundo, sai deste homem! Perguntou-lhe Jesus: Qual é o teu nome? Respondeu-lhe: Legião é o meu nome, porque somos muitos. E pediam-lhe com instância que não os lançasse fora daquela região. Ora, uma grande manada de porcos andava pastando ali junto do monte. E os espíritos suplicavam-lhe: Manda-nos para os porcos, para entrarmos neles. Jesus lhos permitiu. Então os espíritos imundos, tendo saído, entraram nos porcos; e a manada, de uns dois mil, precipitou-se no mar, afogando-se'.

O texto permite a caracterização de alguns elementos típicos da possessão verdadeira: (i) o endemoniado ou energúmeno (outros nomes dados à pessoa possuída) manifesta uma força descomunal, muito além da sua capacidade física normal; (ii) o possuído expressa viva dor e tormento diante do sagrado: 'Conjuro-te por Deus, que não me atormentes'; (iii) o possuído manifesta traços animalescos, como urros, gritos e obsessão por lugares inóspitos. E, principalmente, por aparentar uma comodidade absurda na posse, tende a manifestar uma retaliação violenta em relação à expulsão do corpo possuído ou, em caso consumado, pender por uma 'transferência de posse'. Estes elementos demonstram a gravidade e os riscos extremos do fenômeno da possessão diabólica.

Evidentemente, as possessões não constituem eventos comuns, mas seriam tão raros assim hoje em dia, numa sociedade que se desacostumou por completo com a ideia do pecado? Pois é o pecado grave, tornado uma rotina de blasfêmias e de revolta contra Deus, que constitui a fonte primária das possessões. Muitas vezes, por outro lado, a possessão é o resultado da franca disponibilidade da pessoa à ação diabólica, por meio dos chamados pactos ou concessões da alma ao maligno. Em casos muito particulares ainda, a Providência Divina permite um estado de perseguição maligna em grau muito elevado a pessoas especialmente santas, como atributos e provações extremas para a sua própria ascensão espiritual.

Em função da natureza e do grau de intervenção diabólica presente em um dado fenômeno de possessão, a Igreja faz uso de fórmulas específicas ou adota um ritual completo de exorcismo. Neste processo, incorre uma série de súplicas e orações invocatórias, acopladas a ritos sacramentais, jejum e silêncio, sem quaisquer interpelações ou 'diálogos' com os espíritos malignos. O procedimento final visa não apenas expulsar o demônio do possuído, como também o de não permitir que a ele possa retornar e nem se transmudar para outra pessoa presente, bem como extinguir o pecado ou a possível causa que deu origem à possessão diabólica.