quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

A BÍBLIA EXPLICADA (XIV)

A HERESIA DA 'MALDIÇÃO HEREDITÁRIA'

A chamada 'maldição hereditária' ou 'pecados de descendência' é uma proposição herética bastante recente, oriunda da interpretação descuidada ou maliciosa de excertos isolados de textos bíblicos do Velho Testamento. Neste contexto formal, os pecados dos nossos ancestrais poderiam ser transmitidos (tal como alguma doença infecciosa) até nós, ao longo de gerações. Assim, tal como o pecado original da herança adâmica, existiria também um pecado de descendência gerado pela herança genealógica. Ao batismo, impor-se-ia, então, a necessidade de uma chamada 'cura de gerações' para nos livrar do lastro dos pecados e maldições impostas aos nossos antepassados diretos. Manifestações públicas destas curas têm sido eventos comuns e bastante ruidosos em muitos ritos de diferentes seitas neopentecostais. No testemunho de tais preceitos, são comumente explicitados os seguintes trechos bíblicos:

Eu sou o Senhor, teu Deus, um Deus zeloso que vingo a iniquidade dos pais nos filhos, nos netos e nos bisnetos daqueles que me odeiam, mas uso de misericórdia até a milésima geração com aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos (Ex 20, 5 - 6).

O Senhor passou diante dele, exclamando: 'Javé, javé, Deus compassivo e misericordioso, lento para a cólera, rico em bondade e em fidelidade, que conserva sua graça até mil gerações, que perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado, mas não tem por inocente o culpado, porque castiga o pecado dos pais nos filhos e nos filhos de seus filhos, até a terceira e quarta geração' (Ex 34, 6-7).

O Senhor é lento para a cólera e rico em bondade; ele perdoa a iniquidade e o pecado, mas não tem por inocente o culpado, e castiga a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e a quarta geração (Num 14, 18).

Não te prostrarás diante delas para render-lhes culto, porque eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus zeloso, que castigo a iniquidade dos pais nos filhos, até a terceira e a quarta geração daqueles que me odeiam, mas uso de misericórdia até a milésima geração com aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos (Deut 5, 9 - 10).

Todas estas proposições, consideradas isoladamente do contexto original, fazem a mesma referência quanto a um castigo divino pela iniquidade dos pais nos filhos, até a terceira ou quarta geração. Na verdade, todas são repetições do seguinte trecho original do Êxodo, num contexto mais abrangente: 

'Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de minha face. Não farás para ti escultura, nem figura alguma do que está em cima, nos céus, ou embaixo, obre a terra, ou nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto. Eu sou o Senhor, teu Deus, um Deus zeloso que vingo a iniquidade dos pais nos filhos, nos netos e nos bisnetos daqueles que me odeiam, mas uso de misericórdia até a milésima geração com aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos. Não pronunciarás o nome de Javé, teu Deus, em prova de falsidade, porque o Senhor não deixa impune aquele que pronuncia o seu nome em favor do erro. Lembra-te de santificar o dia de sábado... (Ex 20, 2 - 8).

A proposição está inserida no contexto de uma aliança com um povo, o povo judeu, e na rejeição explícita , nos termos desta aliança, em relação à idolatria a outros deuses. Neste contexto, incluem-se a santificação do dia do sábado, o culto das imagens e, portanto, a maldição hereditária. A raiz dessa concepção herética é, portanto, a mesma da santificação do sábado ou a indefectível postulação de que 'os católicos veneram imagens'. Deus não está pregando o pecado da descendência, tal como não está proibindo taxativamente a confecção de imagens. Deus está aqui condenando a idolatria como pecado gravíssimo, que inclui a transgressão ao dia destinado ao Senhor, a produção de imagens de ídolos que roubam a adoração devida somente a Deus, bem como as repercussões tremendas deste pecado abominável tanto nos ímpios que os praticaram como na sociedade como um todo na qual este clã ou povo está inserido, e isso por muito tempo. Numa livre abordagem de cunho generalista, como se explicaria, então, o preceito claramente extrapolado da infinita misericórdia que Deus concede aos seus filhos que O amam e que guardam os seus mandamentos pela expressão 'até a milésima geração'?

O pecado é inerente ao próprio pecador e somente a ele, assim ensina a autêntica fé cristã. A salvação eterna de cada homem é fruto do livre arbítrio e de suas escolhas pessoais, não sendo afetada pelo reflexo do destino ou de um viés de fatalidade, imposto pelos pecados dos nossos antepassados diretos. A misericórdia de Deus é o fruto das sementes que plantamos e que cultivamos, ao longo de nossas vidas, no caminho da graça, sem repercussões de pecados alheios, como tão claramente explicitado em Ez 18 (ver o texto por inteiro):

É o pecador que deve perecer. Nem o filho responderá pelas faltas do pai nem o pai pelas do filho. É ao justo que se imputará sua justiça, e ao mau a sua malícia (Ez 18, 20).