quinta-feira, 23 de maio de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (III)


21. Em um país onde todos são cegos, basta que um homem tenha apenas um olho para que se diga que ele tem boa visão, e entre uma multidão de pessoas ignorantes, é preciso possuir apenas um leve toque de conhecimento para adquirir a reputação de ser muito instruído; e, da mesma forma, neste mundo perverso e corrupto, é fácil nos lisonjearmos de que somos bons, se não formos tão maus quanto muitos outros. 'Eu não sou como os demais homens' [Lc 18,11]: foi assim que o fariseu se elogiou no templo. Mas para nos conhecermos como realmente somos, não é com as pessoas mundanas que nos devemos comparar, mas com Jesus Cristo, que é o modelo de todos os predestinados. 'Olhai' - diz São Paulo a cada um de nós, citando as palavras que foram ditas a Moisés - 'olhai e fazei segundo o modelo que vos foi mostrado no monte' [Hb 8,5].

Como é que conformei a minha vida à vida do Filho de Deus encarnado, que veio ensinar-me o caminho do Céu com o seu exemplo? Sobe, ó minha alma, ao monte do Calvário e contempla atentamente o teu Salvador crucificado! A isso cada um de nós deve se conformar em seu próprio estado de vida, se quiser ser salvo; tal é o decreto do Pai eterno, que os predestinados 'devem ser conformes à imagem do seu Filho' [Rm 8,29]. Mas posso dizer com verdade e consciência que o imito? Em que sentido? Deixem-me examinar-me a mim próprio. Ah, como sou diferente dEle! E que justo motivo encontro neste exame para me humilhar! Comparando-me com os pecadores, julgo-me um santo; mas, comparando-me com Jesus Cristo, a quem devo imitar, sou obrigado a reconhecer que sou um pecador e um réprobo; e a única consolação que me resta é confiar na infinita misericórdia de Deus. 'Meu Senhor, meu amparo e meu libertador' [Sl 143,2].

22. Lê a vida dos santos e considera a vida de quem mais se assemelha à tua: que grau de santidade tens? Se morresses neste momento, a que parte do Paraíso te julgarias destinado? Talvez entre os inocentes? Ninguém é inocente se tiver cometido um só pecado mortal; e tu por acaso ainda tens na tua alma a tua inocência batismal? Talvez, portanto, entre os penitentes? Mas onde está a vossa penitência, quando, longe de procurardes a mortificação, procurais em tudo agradar a vós mesmos? Pensais que mereceis ser contado entre os mártires? Não falarei de derramamento de sangue, mas onde está a vossa paciência para sofrer apenas o menor problema ou adversidade nesta vida miserável? Julgas-te digno de ser contado entre as virgens? Mas és puro de corpo e de mente? 

Santo Antônio, o abade, depois de ter trabalhado muitos anos para se aperfeiçoar na santidade, imitando as virtudes de todos os anacoretas mais ilustres, teve muito que se humilhar quando ouviu falar de São Paulo, o primeiro eremita, e sentiu que, em comparação com este santo homem, ele próprio nada tinha de religioso. Ó minha alma, vem também e compara-te com os santos: 'recordai-vos dos feitos que vossos antepassados realizaram na época em que viveram' [1Mc 2,51] e encontrarás inúmeras ocasiões para te humilhares e perceberes como estás longe da santidade. É muito bom dizer: 'Eu não faço nada de errado'. Para ser salvo, não basta não fazer o mal, mas é preciso também fazer o bem. 'Evita o mal e faze o bem' [Sl 36,27]. Não basta não ser pecador por profissão, mas é preciso ser santo por profissão. 'Buscai a santidade, sem a qual ninguém poderá ver a Deus' [Hb 12,14].

23. Examina as virtudes que imaginas possuir. Tendes a prudência, a temperança, a fortaleza, a justiça, a modéstia, a humildade, a castidade, o despojamento do espírito, a caridade, a obediência e muitas outras virtudes que podem ser necessárias ou adequadas à vossa condição? Se tiverdes algumas delas, em que grau as possuís? Mas direi mais: examinai-vos primeiro a vós mesmos e vede se tendes realmente essa virtude que pensais possuir. O que quero dizer é: é uma virtude real, ou talvez apenas uma disposição do teu temperamento natural, seja ele melancólico, sanguíneo ou fleumático? E mesmo que essa virtude seja real, é uma virtude cristã ou puramente humana? Todo ato de virtude que não procede de um motivo sobrenatural, para nos levar à bem-aventurança eterna, não tem valor. 

E, na prática da virtude, juntais aos vossos atos exteriores os atos interiores e espirituais do coração? Ó verdadeiras virtudes cristãs, temo que em mim não sejais mais do que belas aparências exteriores! Mereço a censura da palavra de Deus: 'Porque dizes: rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho necessidade; e não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu' [Ap 3,17]. E, da mesma forma, vale mais para mim o conselho de Santo Agostinho, que é melhor pensar naquelas virtudes em que estamos carentes do que naquelas que possuímos: 'Humilhar-me-ei mais pelas virtudes que me faltam do que me orgulharei das que possuo'.

24. Para que um ato de virtude seja verdadeiramente virtuoso, é necessário que o seja em todas as suas partes componentes, e se for defeituoso num só ponto, torna-se imediatamente viciado. Uma intenção depravada, um único pensamento de vaidade no início, no meio ou no fim de qualquer obra virtuosa é suficiente para corrompê-la e transformá-la numa obra má. Basta que a virtude careça de humildade para que essa virtude, que já não é humilde, deixe de ser uma virtude e se torne uma causa de orgulho mortal. Acontece muitas vezes a quem leva uma vida espiritual que, quanto mais se esforça pela virtude, mais encontra um doce prazer em si mesmo e, por isso, como diz Santo Agostinho, o simples fato de se satisfazer a si mesmo torna-o rapidamente desagradável a Deus: 'Quanto mais o homem pensa que tem razões para estar satisfeito consigo mesmo, tanto mais temo que o seu amor-próprio desagrade a Deus, que resiste aos soberbos' [Lib. de Sancia Virginit., cap.34].

Ó como parecemos pobres quando examinamos a nossa própria espiritualidade e bondade com a ajuda destas reflexões! Queira Deus que não sejamos como aqueles homens que, sonhando que possuem grandes riquezas, acordam à beira da morte e descobrem que não passam de mendigos: 'Dormiram o seu sono, e sentiram fraquejar as suas mãos' [Sl 75,6]. Que Deus queira que a alegação de nossa virtude não seja um argumento para nossa maior condenação: 'E que aquilo que se pensa ser um progresso na virtude não seja uma causa de condenação' [Lib. 5 Moral. cap. vi], nos diz São Gregório.

25. A humildade é como a pureza: por pouco que se contamine, torna-se impura. A pureza é corrompida não só por um ato impuro, mas também por uma palavra ou um pensamento imodesto. E a humildade é também tão frágil que é facilmente contaminada pelo amor ao elogio, por uma palavra ou um pensamento de autoestima, pela vanglória ou pelo amor-próprio. Aquele que ama realmente a pureza não só desterra diligentemente todas as fantasias impuras, mas sempre o faz com horror e abominação; e do mesmo modo, aquele que ama realmente a humildade, longe de se comprazer nos louvores e nas honras, desgosta-se deles e, em vez de fugir das humilhações, as abraça.

Ó como me sinto humilhado aqui, pois vejo que não tenho verdadeiro amor à humildade! Qual é o resultado? Não se estima uma virtude que não se ama, e tem-se pouco desejo de adquirir uma virtude que não se estima nem se ama; e se assim for, ai de mim! Se não tenho amor nem estima pela humildade, é porque não sei quão preciosa é esta virtude em si mesma, nem quão necessária é para mim. Mas, ó meu Deus, soprai sobre mim esta palavra onipotente: 'Faça-se a luz' [Gn 1,3], para que eu seja iluminado e aprenda a conhecer esta importante virtude que Vós quereis que eu ame. E, com a vossa ajuda, amá-la-ei e guardá-la-ei zelosamente, se tiver luz para a compreender.

26. Todas as manhãs devemos fazer esta oração e oferta cotidiana a Deus: 'Ofereço-vos, ó meu Deus, todos os meus pensamentos, todas as minhas palavras e todas as minhas ações deste dia. Concedei-me que sejam pensamentos de humildade, palavras de humildade e ações de humildade para a vossa glória'. Também ao longo do dia será bom repetir esta jaculatória: 'Senhor Jesus, dai-me um coração contrito e humilde'. Estas poucas palavras contêm tudo o que podemos pedir a Deus; porque ao rezar por um coração contrito, pedimos-lhe o que é necessário para assegurar o perdão da nossa vida passada, e ao rezar por um coração humilde, tudo o que é necessário para assegurar a vida eterna. 

Que na hora da morte eu me encontre com um coração contrito e humilhado! Então, que confiança não terei na misericórdia de Deus, se puder exclamar com o rei Davi: 'Um coração contrito e humilde, ó meu Deus, não desprezarás'. Muitas vezes fazemos orações a Deus às quais Ele poderia responder com justiça: 'Não sabeis o que pedis' [Sl l,19], mas quando pedimos a santa humildade, sabemos com certeza que estamos a pedir algo que é mais agradável a Deus e mais necessário para nós mesmos; e ao pedir isso devemos acreditar que Deus manterá a sua promessa infalível: 'Pedi e vos será dado' [Mt 7,7].

27. Se examinarmos todas as nossas quedas em pecado, veniais ou graves, a causa será sempre encontrada em algum orgulho oculto; e são verdadeiras, de fato, as palavras do Espírito Santo: 'Porque o orgulho é o princípio de todo o pecado' [Eclo 10,15]. O próprio Nosso Senhor Jesus Cristo nos advertiu dessa verdade em seu Evangelho, onde diz: 'E todo aquele que se exaltar será humilhado' [Mt 23,12]. Deus não pode dar maior humilhação a uma alma do que permitir que ela caia em pecado; porque o pecado é o mais profundo de todos os abismos, o mais baixo, vil e ignominioso. Por isso, cada vez que somos humilhados ao cair em pecado, é certo que antes nos exaltamos por algum ato de orgulho; porque só os soberbos são ameaçados com o castigo desta humilhação: 'E humilhou-se depois, porque o seu coração se tinha exaltado' [cf 2Cr 32,25-26]. Pois assim está escrito sobre o rei Ezequias na Sagrada Escritura, e o escritor inspirado também disse: 'Antes da ruína, o coração do homem se ensoberbece' [Pv 18,12].

Nunca houve um caso de pecado, diz Santo Agostinho, nem haverá, nem poderá haver, em que o orgulho não tenha sido, em certa medida, a ocasião: 'Nunca houve, nunca haverá e nunca poderá haver pecado sem orgulho' [Lib. de Salute, 19]. Sejamos tão verdadeiramente humildes que não incorramos no castigo dessa humilhação. Ninguém pode cair se estiver deitado no chão; e ninguém pode pecar enquanto for humilde. Meu Deus, ó meu Deus, deixai-me ficar no meu nada, porque é o estado mais seguro para mim.

28. Lemos a respeito de muitos que, depois de terem sido renomados por sua santidade, fervorosos no exercício da oração, detentores de grandes penitências e virtudes notáveis, e depois de terem sido favorecidos por Deus com os dons do êxtase, revelações e milagres, caíram, no entanto, no vício hediondo da impureza à menor aproximação da tentação. E quando considero isto, acho que não há pecado que degrade tanto a alma como este pecado impuro dos sentidos, porque a alma, de ser racional e espiritual, como os anjos, torna-se assim carnal, sensual e torna-se como as bestas embrutecidas 'que não têm inteligência' [Sl 31,9].

Sou compelido a adorar com temor os supremos julgamentos de Deus e também, para minha própria advertência, a saber que o orgulho foi a razão de tão grande queda; portanto, todos nós deveríamos exclamar com o profeta: 'sou miserável porque o peso de vossos castigos me abateu' [Sl 87,16 ] e dizer a nós mesmos as palavras que Ele disse a Lúcifer: 'disseste que subiria sobre as nuvens mais altas e se tornaria igual ao Altíssimo e, entretanto, foste precipitado à morada dos mortos, ao mais profundo abismo [Is 14,14-15]. A alma é humilhada de acordo com a medida de sua auto-exaltação, e grande deve ter sido o orgulho que foi seguido por uma humilhação tão tremenda e abominável. Ah, quanto mais precioso é um grau de humildade em comparação com mil revelações ou êxtases! De que serve, diz Santo Agostinho, possuir a pureza, a castidade e a virgindade imaculadas, se o orgulho domina o coração? 'De que serve a continência para aquele que é dominado pelo orgulho?' [Serm. de Verb. Dom.]. 

É uma sábia e justa disposição de Deus permitir a queda do orgulhoso em todos os pecados e especialmente no da devassidão, como sendo o mais degradante de modo que, por tão grande queda, ele deve ser envergonhado, humilhado e curado de seu orgulho. Ó Santo Tomás, quão bem disseste: 'Aquele que está preso pela soberba e não o sabe, cai no pecado da impureza, que é manifestamente vergonhoso por si mesmo, para que por este pecado se levante humilhado da sua confissão' [Suma 22, qu. clxi, art. 6, ad 3] A partir daí, continua o santo, é mostrada a gravidade do pecado da soberba; e como um médico muitas vezes permite que seu paciente sofra de um mal menor para libertá-lo de um maior, assim Deus permite que a alma caia no pecado dos sentidos, para que possa ser curada do vício da soberba. A qualquer altura sublime de santidade que tenhamos atingido, uma queda é sempre de temer. Porque, como diz Santo Agostinho, não há santidade que não se perca pela soberba: 'Se há santidade em ti, teme que a percas. Como? Pela soberba' [Serm. 13 de Verb. Dom.].

29. Por mais que o nosso amor-próprio cristão queira evitar o remorso e o arrependimento que sempre se seguem às humilhações causadas pelo pecado, devemos, no entanto, desejar e procurar ser humildes, porque, se formos humildes, nunca podemos ser humilhados. 'Ó minha alma' - devemos dizer a nós mesmos - 'ó minha alma, olha bem para dentro de ti e sê humilde, se não queres que Deus te humilhe com vergonha temporal e eterna'. Deus promete exaltar os humildes, e o Céu está cheio de humildes; Deus também ameaça os orgulhosos com a humilhação, e o Inferno está cheio de orgulhosos. Deus assim promete e ameaça, de modo que, se não permanecermos em humildade atraídos por suas grandes promessas, devemos pelo menos permanecer em humildade por medo de suas divinas ameaças: 'E qualquer que a si mesmo se exaltar será humilhado, e aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado' [Mt 23,12].

Deus considera favoravelmente as petições dos humildes e inclina-se a atendê-las: 'Atende à oração dos humildes, e não rejeita as suas súplicas' [Sl 101, 18]. Mas, por mais que o orgulhoso invoque a Deus, Deus não lhe dará consolação espiritual. Santo Agostinho diz: 'Deus não virá, ainda que o invoqueis, se estiverdes ensoberbecidos' [Enarr. In Sl 74]. Todas estas coisas são conhecidas e muito repetidas, mas é porque as conhecemos e não as praticamos que merecemos a repreensão dada pelo profeta Daniel a Nabucodonosor: 'Não humilhaste o teu coração, mesmo sabendo todas estas coisas' [Dn 5,22].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

quarta-feira, 22 de maio de 2024

ORAÇÃO DA SABEDORIA CELESTIAL


Confirmai-me Senhor, pela graça do Espírito Santo. Confortai em mim o homem interior e livrai meu coração de todo cuidado inútil e de toda ansiedade, para que não me deixe seduzir pelos vários desejos das coisas terrenas, sejam vis ou preciosas, mas para que as considere todas como transitórias, e me lembre que eu mesmo sou passageiro, como elas, pois nada há estável debaixo do sol, onde tudo é vaidade e aflição de espírito. Como é sábio quem assim pensa!

Dai-me, Senhor, sabedoria celestial, para que aprenda a buscar-vos, e achar-vos, antes que tudo, a gostar-vos e amar-vos acima de tudo, e a compreender todas as coisas como são, segundo a ordem de vossa sabedoria. Dai-me prudência, para afastar-me do lisonjeiro, e paciência para suportar a quem me contraria. Porque é grande sabedoria não se deixar mover por todo sopro de palavras, nem prestar ouvidos aos traiçoeiros encantos da sereia; pois só deste modo prossegue a alma com segurança no caminho começado.

(Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)

terça-feira, 21 de maio de 2024

FRASES DE SENDARIUM (XXX)

'Diante dos homens, é virtude suportar os inimigos; diante de Deus, a virtude é amá-los' 

(São Gregório Magno)

Pensas nos pobres, desconsidera os ricos; pedes pelos humildes e descarta os soberbos, suplica a graça divina pelos teus parentes e omite os teus inimigos em suas orações? Não és cristão! Ama a todos sem distinção alguma: nem pelo peso das riquezas, nem pelas atitudes de orgulho extremado, nem pela ação tresloucada e, ainda mais do que tudo, nunca pela tua deplorável capacidade humana de julgar e condenar tão facilmente! Como servo e discípulo do Mestre, ama apenas, apenas ama... 

segunda-feira, 20 de maio de 2024

TRÊS ORAÇÕES A JESUS EUCARÍSTICO


Senhor meu Jesus Cristo, que, por amor aos homens, ficais dia e noite neste Sacramento, todo cheio de misericórdia e amor, esperando, chamando e acolhendo todos os que vêm visitar-Vos, eu creio que estais presente no Sacramento do altar. Adoro-Vos do abismo do meu nada e agradeço-Vos todas as graças que me tendes feito, especialmente a de Vos terdes dado a mim neste Sacramento, a de me haverdes concedido por advogada Maria, vossa Mãe Santíssima, e finalmente, a de me haverdes chamado a visitar-Vos nesta igreja.

Saúdo hoje o vosso Coração amantíssimo e quero saudá-lo por três fins: primeiro, em agradecimento pelo grande dom de Vós mesmo; segundo, em reparação das injúrias que tendes recebido, neste Sacramento, de todos os vossos inimigos; terceiro, com a intenção de Vos adorar, por esta visita, em todos os lugares da Terra onde Vós, neste divino Sacramento, estais menos reverenciado e mais abandonado.

Meu Jesus, amo-Vos de todo o meu coração. Arrependendo- me de, no passado, ter ofendido tantas vezes a vossa bondade infinita. Proponho, com a vossa graça, não mais Vos ofender no futuro. E nesta hora, embora miserável como sou, eu me consagro todo a Vós e Vos dou e entrego a minha vontade, os meus afetos, os meus desejos e tudo o que me pertence. Daqui em diante fazei de mim, e de tudo o que é meu, o que Vos aprouver. Somente Vos peço e quero o vosso santo amor, a perseverança final e o perfeito cumprimento da vossa vontade. Amém.

(Santo Afonso Maria de Ligório)


Ó Jesus, Pão vivo descido do céu, como é grande a Vossa bondade! Para perpetuar a fé na Vossa Presença Real na Eucaristia, com extraordinário poder, vos dignastes mudar as espécies do pão e do vinho em Carne e Sangue, como se conservam no Santuário Eucarístico de Lanciano. Aumente sempre mais a nossa fé em Vós, Senhor sacramentado! Ardendo de amor por Vós, fazei com que, nos perigos, nas angústias e nas necessidades, só em Vós encontremos auxílio e consolação, ó divino Prisioneiro dos nossos tabernáculos, ó Fonte inesgotável de todas as graças. Suscitai em nós a fome e a sede do Vosso alimento eucarístico para que, saboreando este pão celeste, possamos gozar da verdadeira vida agora e para sempre. Amém.

(Oração do Santuário Eucarístico de Lanciano)


Ó doce Hóspede da minha alma, meu Jesus cordialmente amado, que a tua suave recepção seja para mim hoje ocasião de remissão de todos os meus pecados, de reparação de todas as minhas negligências e de recuperação de toda a minha vida perdida. Que ela seja para mim salvação eterna, cura da alma e do corpo, abrasamento de amor, renovação de virtude e inclusão da minha vida em ti por toda a eternidade. Que ela opere em mim a liberdade do espírito, a santidade da vida, a dignidade dos costumes; que ela seja para mim o escudo da paciência, a insígnia da humildade, o apoio da confiança, o consolo na tristeza, o socorro para a perseverança. Que ela seja para mim a armadura da fé, a firmeza da esperança, a perfeição da caridade, o cumprimento dos teus mandamentos, a renovação do espírito, a santificação na verdade e a consumação de toda a religião. Que ela seja para mim uma fonte de virtudes, o crescimento de todo o bem e o testemunho eterno do teu amor. Amém.

(Santa Gertrudes de Helfta)

domingo, 19 de maio de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Enviai, Senhor, o vosso Espírito e renovai a face da terra' (Sl 103)

Primeira Leitura (At 2,1-11) - Segunda Leitura (1 Cor 12,3b-7.12-13) -  Evangelho (Jo 20,19-23)

  19/05/2024 - SOLENIDADE DE PENTECOSTES 

25. 'RECEBEI O ESPÍRITO SANTO'

 

Emitte Spiritum tuum et creabuntur. Et renovabis faciem terrae

'Enviai, Senhor, o vosso espírito criador e será renovada toda a face da terra'

Originalmente, Pentecostes representava uma das festas judaicas mais tradicionais de 'peregrinação' (nas quais os israelitas deviam peregrinar até Jerusalém para adorar a Deus no Templo), sempre celebrada 50 dias após à Páscoa e na qual eram oferecidas a Deus as primícias das colheitas do campo. No Novo Pentecostes, a efusão do Espírito Santo torna-se agora o coroamento do mistério pascal de Jesus Cristo, na celebração da Nova Aliança entre Deus e a humanidade redimida.

Eis que os apóstolos encontravam-se reunidos, com Maria e em oração constante, quando 'todos ficaram cheios do Espírito Santo' (At 2, 4), manifestado sob a forma de línguas de fogo, vento impetuoso e ruídos estrondosos, sinais exteriores do poder e da grandeza da efusão do Novo Pentecostes. Luz e calor associados ao fogo restaurador da autêntica fé cristã; ventania que evoca o sopro da Verdade de Deus sobre os homens; reverberação que emana a força da missão confiada aos apóstolos reunidos no cenáculo e proclamada aos apóstolos de todos os tempos.

O Paráclito é derramado numa torrente de graças, distribuindo dons e talentos, porque 'Há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Há diversidade de ministérios, mas um mesmo é o Senhor. Há diferentes atividades, mas um mesmo Deus que realiza todas as coisas em todos' (1 Cor 12, 4-6). Na simbologia dos vários membros de um mesmo corpo, somos mensageiros e testemunhas de Cristo no meio dos homens, na identidade comum de Filhos de Deus partícipes e continuadores da missão salvífica de Cristo: 'Como o Pai me enviou, também Eu vos envio' (Jo 20, 21).

No Espírito Consolador, não somos mais meros expectadores de uma efusão de graças e dons tão diversos, mas apóstolos e testemunhas, iluminados e portadores da Verdade, pela qual será renovada a face da terra e pelo qual será apagada a mancha do pecado no mundo: 'Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos' (Jo 20, 22-23).

sábado, 18 de maio de 2024

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

Cultivai o santo recolhimento, isto é, vivei em sociedade de vida, de união e de amor com Deus, com Nosso Senhor. O santo recolhimento é a raiz da árvore, a vida das virtudes e até do amor divino: é a força da alma concentrada em Deus para daí irromper e expandir-se. Permanecei sempre no interior, vivei em vosso interior, possui-vos, virai-vos de fora para dentro, deixai este mundo; retirai-vos com Jesus em vosso coração, onde Ele vos move a alma, falai-lhe a linguagem interior que só o amor entende e compreende. Entretei uma doce e habitual conversação em vosso interior e não o percais de vista, se quiserdes conformar-vos àquele que dizia: 'Jesus é minha alegria e felicidade!' Lembrai-vos deste princípio de vida, de que só encontrareis felicidade no serviço de Deus na vida interior de oração e de amor.

(São Pedro Julião Eymard)

sexta-feira, 17 de maio de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXXI)

 

Capítulo XL

Razões e Exemplos para a Devoção às Santas Almas - Obrigação de Caridade e de Justiça - O Roubo aos Falecidos - A Propriedade Devastada - O Velho Soldado e o seu Legado Piedoso Não Cumprido

Acabamos de considerar a devoção às almas do Purgatório como uma obra de caridade. A oração pelos mortos, dissemos, é uma obra santa, porque é um exercício muito salutar da mais excelente das virtudes, a caridade. Esta caridade para com os defuntos não é apenas facultativa e de conselho, mas é também de preceito, não menos do que dar esmolas aos pobres. Como existe uma obrigação geral de caridade para dar esmolas, com quanto maior razão não somos obrigados pela lei geral da caridade a ajudar os nossos irmãos sofredores no Purgatório?

Esta obrigação de caridade está muitas vezes associada a uma obrigação de justiça rigorosa. Quando um moribundo, quer por palavra, quer por testamento escrito, exprime os seus últimos desejos no que diz respeito às obras de piedade; quando encarrega os seus herdeiros de mandar celebrar um certo número de missas, de distribuir uma certa soma em esmolas, para qualquer boa obra que seja, os herdeiros são obrigados, em estrita justiça, a partir do momento em que entram na posse da propriedade, a cumprir sem demora os últimos desejos do falecido.

Este dever de justiça é tanto mais sagrado quanto estes legados piedosos não passam frequentemente de restituições disfarçadas. Ora, o que nos ensina a experiência cotidiana? Será que as pessoas se apressam com religiosa exatidão a cumprir essas piedosas obrigações que dizem respeito à alma do defunto? Infelizmente, muito pelo contrário. Uma família que se apodera de uma fortuna considerável distribui ao seu pobre parente defunto os poucos sufrágios que ele reservou para seu próprio benefício espiritual; e se as sutilezas da lei civil os favorecem, os membros dessa família não se envergonham, sob o pretexto de alguma informalidade, de anular fraudulentamente o testamento para se livrarem da obrigação de fazer esses legados piedosos. Não é em vão que o autor da Imitação de Cristo nos aconselha a satisfazer os nossos pecados durante a nossa vida e a não depender demasiado dos nossos herdeiros, que muitas vezes negligenciam a execução das piedosas doações feitas por nós para o alívio das nossas pobres almas.

Para estas famílias - todo cuidado é pouco! É uma injustiça sacrílega combinada com uma crueldade atroz. Roubar a um pobre, diz o IV Concílio de Cartago, é como tornar-se o seu assassino (Egentium Necatores). Que diremos, pois, daqueles que roubam os mortos, que os privam injustamente dos seus sufrágios e os deixam sem assistência nos terríveis tormentos do Purgatório? Além disso, aqueles que se tornam culpados desse roubo infame são frequentemente punidos mais severamente por Deus, mesmo nesta vida. Às vezes, ficamos espantados ao ver uma fortuna considerável derreter-se, por assim dizer, nas mãos de certos herdeiros; uma espécie de maldição parece pairar sobre certas heranças. No dia do Juízo Final, quando o que agora está oculto se manifestar, veremos que a causa dessa ruína terá sido frequentemente a avareza e a injustiça dos herdeiros, que negligenciaram as obrigações impostas a eles em relação aos legados piedosos relativos à herança.

Aconteceu em Milão, diz o Padre Rossignoli, que uma magnífica propriedade, situada a pouca distância da cidade, foi completamente devastada pelo granizo, enquanto os campos vizinhos permaneceram ilesos. Este fenómeno atraiu a atenção e o espanto; fazia lembrar as pragas do Egito. O granizo devastou os campos dos egípcios e respeitou a terra de Gessen, habitada pelos filhos de Israel. Este foi considerado como um flagelo semelhante. O granizo misterioso não podia ter-se confinado exclusivamente aos limites de uma propriedade sem obedecer a uma causa inteligente. As pessoas não sabiam como explicar este fenômeno, quando a aparição de uma alma do Purgatório revelou que se tratava de um castigo infligido aos filhos ingratos e culpados, que tinham negligenciado a execução da última vontade do seu falecido pai relativamente a certas obras de piedade.

Sabemos que em todos os países e em todos os lugares, fala-se de casas assombradas, tornadas inabitáveis, com grande prejuízo para seus proprietários. Ora, se tentarmos descobrir a causa disso, geralmente descobriremos que uma alma esquecida por seus parentes volta para reclamar os sufrágios que lhe são devidos. Quer seja atribuído à credulidade, à excitação da imaginação, à alucinação, ou mesmo ao engano, permanecerá sempre um fato bem provado para ensinar aos herdeiros insensíveis como Deus castiga tal conduta injusta e sacrílega, mesmo nesta vida.

O seguinte evento, que foi relatado por Tomás de Cantimpre (Rossign., Merv., 15), demonstra claramente quão culpáveis são, aos olhos de Deus, os herdeiros que defraudam os mortos. Durante as guerras de Carlos Magno, um valente soldado tinha servido nos mais importantes e honrosos cargos. A sua vida era a de um verdadeiro cristão. Contente com o seu soldo, abstinha-se de qualquer ato de violência e o tumulto do campo nunca o impediu de cumprir os seus deveres essenciais, embora em assuntos de menor importância tivesse sido culpado de muitas pequenas faltas comuns aos homens da sua profissão. Tendo atingido uma idade muito avançada, adoeceu; e vendo que a sua última hora tinha chegado, chamou à sua cabeceira um sobrinho órfão, de quem tinha sido pai, e expressou-lhe os seus desejos de morte. 

'Meu filho' - disse ele - 'sabes que não tenho riquezas para te legar; só tenho as minhas armas e o meu cavalo. As minhas armas são para ti. Quanto ao meu cavalo, vende-o quando eu tiver entregue a minha alma a Deus, e reparte o dinheiro entre os padres e os pobres, para que os primeiros ofereçam o Santo Sacrifício por mim, e os outros me ajudem com as suas orações'. O sobrinho chorou e prometeu executar sem demora os últimos desejos do seu tio e benfeitor moribundo. O velho soldado morreu pouco depois, o sobrinho tomou posse das armas e levou o cavalo. Era um animal muito bonito e valioso. Em vez de o vender imediatamente, como tinha prometido ao seu falecido tio, começou por usá-lo em pequenas viagens e, como estava muito satisfeito com ele, não quis desfazer-se dele tão cedo. Adiou com o duplo pretexto de que não havia nada que obrigasse ao cumprimento imediato da sua promessa e que aguardaria uma ocasião favorável para obter um preço elevado por ele. Assim, adiando de dia para dia, de semana para semana e de mês para mês, acabou por abafar a voz da consciência e esqueceu a obrigação sagrada que havia assumido para com a alma do seu benfeitor.

Seis meses se passaram, quando, certa manhã, o falecido apareceu-lhe dirigindo-se a ele em termos de severa reprovação. 'Homem infeliz' - disse ele - 'esqueceste a alma do teu tio; violaste a promessa sagrada que fizeste no meu leito de morte. Onde estão as missas que deverias ter mandado rezar? Onde estão as esmolas que deveríeis ter distribuído aos pobres para o repouso da minha alma? Por causa da vossa negligência culpada, sofri tormentos inauditos no Purgatório. Finalmente, Deus teve piedade de mim; hoje vou gozar a companhia dos bem-aventurados no Céu. Mas tu, por um justo julgamento de Deus, morrerás dentro de poucos dias e serás submetido às mesmas torturas que me restariam suportar se Deus não tivesse tido misericórdia de mim. Sofrerás durante o mesmo tempo que eu deveria ter sofrido, depois do qual começarás então a expiação das tuas próprias faltas'.

Alguns dias depois, o sobrinho adoeceu gravemente. Chamou imediatamente um sacerdote, relatou-lhe a visão e confessou os seus pecados, chorando amargamente. 'Vou morrer em breve' - disse ele - 'e aceito a morte das mãos de Deus como um castigo que muito mereci'. Ele expirou em sentimentos de humilde arrependimento. Essa foi apenas a menor parte dos sofrimentos que lhe foram anunciados como punição por sua injustiça; trememos de horror ao pensar na parte restante que ele estava prestes a cumprir na outra vida.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.