quarta-feira, 29 de julho de 2020

SOBRE A PRUDÊNCIA E O DISCERNIMENTO

Numa carta endereçada ao 'povo de Deus', 152 bispos brasileiros manifestaram-se publicamente e de forma contundente sobre o atual governo, numa pregação de linha única e conformada exclusivamente pela crítica, pelo antagonismo, pela negação completa de quaisquer ações ou contribuições potencialmente relevantes ou positivas do governo vigente nos cenários atual e recente do país. Como crítica de linha única e sem anteparos de eventuais contraposições, tende a ser injusta. E, sendo de autoria de bispos da Igreja, resulta em objeto de consternação. Consternação porque evoca a perda de referência nos marcos de sobriedade, prudência e discernimento como virtudes cristãs, pelos quais se faz recordação a seguir de algumas passagens da encíclica Veritatis Splendor (Esplendor da Verdade), publicada pelo papa João Paulo II em 6 de Agosto de 1993: 

… Hoje, porém, parece necessário refletir sobre o conjunto do ensinamento moral da Igreja, com a finalidade concreta de evocar algumas verdades fundamentais da doutrina católica que, no atual contexto, correm o risco de serem deformadas ou negadas. De fato, formou-se uma nova situação dentro da própria comunidade cristã, que experimentou a difusão de múltiplas dúvidas e objeções de ordem humana e psicológica, social e cultural, religiosa e até mesmo teológica, a propósito dos ensinamentos morais da Igreja. Não se trata já de contestações parciais e ocasionais, mas de uma discussão global e sistemática do patrimônio moral, baseada sobre determinadas concepções antropológicas e éticas. Na sua raiz, está a influência, mais ou menos velada de correntes de pensamento que acabam por desarraigar a liberdade humana da sua relação essencial e constitutiva com a verdade. Rejeita-se, assim, a doutrina tradicional sobre a lei natural, sobre a universalidade e a permanente validade dos seus preceitos; consideram-se simplesmente inaceitáveis alguns ensinamentos morais da Igreja; pensa-se que o próprio Magistério possa intervir em matéria moral, somente para 'exortar as consciências' e 'propor os valores', nos quais depois cada um inspirará, de forma autônoma, as decisões e as escolhas da vida.

Em particular, deve-se ressaltar a discordância entre a resposta tradicional da Igreja e algumas posições teológicas, difundidas mesmo nos Seminários e Faculdades eclesiásticas, sobre questões da máxima importância para a Igreja e a vida de fé dos cristãos, bem como para a própria convivência humana… Generalizada se encontra também a opinião que põe em dúvida o nexo intrínseco e indivisível que une entre si a fé e a moral, como se a pertença à Igreja e a sua unidade interna se devessem decidir unicamente em relação à fé, ao passo que se poderia tolerar, no âmbito moral, um pluralismo de opiniões e de comportamentos, deixados ao juízo da consciência subjetiva individual ou à diversidade dos contextos sociais e culturais

Na sequência do texto, encontra-se a seguinte exortação dirigida explicitamente aos bispos da Igreja:

'Ao dirigir-me com esta Encíclica a vós, Irmãos no Episcopado, desejo enunciar os princípios necessários para o discernimento daquilo que é contrário à 'sã doutrina', apelando para aqueles elementos do ensinamento moral da Igreja, que hoje parecem particularmente expostos ao erro, à ambiguidade ou ao esquecimento... Estas e outras questões — como: que é a liberdade e qual a sua relação com a verdade contida na lei de Deus? qual é o papel da consciência na formação do perfil moral do homem? como discernir, em conformidade com a verdade sobre o bem, os direitos e os deveres concretos da pessoa humana? — podem-se resumir na pergunta fundamental que o jovem do Evangelho pôs a Jesus: 'Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?'. Enviada por Jesus a pregar o Evangelho e a 'instruir todas as nações (...) ensinando-as a observar tudo' o que Ele mandou (Mt 28, 19-20), a Igreja propõe sempre de novo, hoje também, a resposta do Mestre: esta possui luz e força capazes de resolver inclusive as questões mais discutidas e complexas.

...É sempre nessa mesma luz e força que o Magistério da Igreja realiza a sua obra de discernimento, acolhendo e pondo em prática a admoestação que o apóstolo Paulo dirigia a Timóteo: 'Conjuro-te, diante de Deus e de Jesus Cristo, que há de julgar os vivos e os mortos, e em nome da sua aparição e do seu Reino: prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, censura e exorta com bondade e doutrina. Porque virá o tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina. Desejosos de ouvir novidades, escolherão para si uma multidão de mestres, ao sabor das paixões, e hão de afastar os ouvidos da verdade, aplicando-os às fábulas. Tu, porém, sê prudente em tudo, suporta os trabalhos, evangeliza e consagra-te ao teu ministério' (2 Tm 4, 1-5; cf Tt 1, 10.13-14).

(destaques em negrito pelo autor do blog)