sábado, 21 de julho de 2018

INTERPRETAÇÕES DOS SONHOS DE DOM BOSCO (V/Final)


A estreita correlação entre as visões dos sonhos de Dom Bosco com as mensagens e profecias de Fátima é bastante incisiva quando se considera a suposta descrição (certamente apenas parcial) do Terceiro Segredo de Fátima, em manuscrito da Irmã Lúcia, como revelado pelo Vaticano em 26 de junho de 2000:

(i) Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora, um pouco mais alto, um Anjo com uma espada de fogo na mão esquerda; ao cintilar, despedia chamas que pareciam incendiar o mundo; mas apagavam-se com o contato do brilho que, da mão direita, expedia Nossa Senhora ao seu encontro.
(ii) O Anjo, apontando com a mão direita para a terra, com voz forte, disse: Penitência, Penitência, Penitência! 

Na suposta continuação das três partes que constituem o chamado Segredo de Fátima, as duas partes anteriores e já descritas pela vidente corresponderiam ao Primeiro Segredo - a perda eterna das almas e a visão do inferno e o Segundo Segredo - a revelação de castigos universais e os meios para evitá-los. A visão propriamente dita tem origem no Anjo empunhando uma espada de fogo, que remete de imediato a um cenário apocalíptico: 'as chamas pareciam incendiar o mundo'. Não se trata mais de um mundo imerso nas trevas, nem mais o mundo em que fulgurou outrora a luz portentosa da igreja; é apenas um mundo mergulhado num incêndio colossal, num mar de fogo. 

O Anjo empunha a espada de fogo com a mão esquerda e brada à humanidade por conversão apontando para a Terra com a mão direita. A mão direita é símbolo do poder e da justiça de Deus, instrumento da ira santa de Deus. Na invocação dirigida aos homens, a exortação angélica é um brado retumbante e vigoroso dirigido aos homens do pecado, sem mais concessões ou delongas possíveis: Penitência, Penitência, Penitência! 

A espada na mão esquerda reflete uma condição ainda potencial do castigo universal imposto a uma humanidade transtornada pelo pecado, que se tornou indiferente a todos os avisos e manifestações amorosas da Mãe de Deus e que desdenhou por completo das dores e sofrimentos anunciados e vividos tão tragicamente pelos homens e mulheres das gerações anteriores. O flagelo está ainda em suspenso. A luz emanada da mão direita da Virgem tem o poder de estancar e de apagar o fogo da justiça divina, mas este aceno da graça é condicional e depende da resposta da humanidade aos apelos de conversão universal.

(iii) E vimos, numa luz imensa que é Deus, 'algo semelhante a como se vêem as pessoas em um espelho quando lhe passam por diante' um Bispo vestido de branco e 'tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre'. 
(iv) Vários outros bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas a subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos como se fora de sobreiro com a casca.
(v) o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meio em ruínas, e meio trêmulo e com andar vacilante, acabrunhado de dor e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho. 

A 'luz imensa que é Deus' e pressentimentos sobrenaturais já eram experiências vivenciadas pelos videntes de Fátima durante aparições anteriores de Nossa Senhora [por exemplo, eles pressentiram que a visão do Imaculado Coração de Maria cravejado de espinhos, na segunda aparição, não devia ser revelado por eles naquele momento]. Os videntes vêem, com clareza cristalina (como a imagem refletida em um espelho), o Santo Padre como um bispo vestido de branco. O pressentimento sobrenatural confirma a natureza desta visão. 

O Santo Padre está em meio a uma longa e penosa caminhada atravessando cidades em ruínas e montes de cadáveres, sob angústia mortal e passos vacilantes. Nesta caminhada, é seguido por uma legião de sacerdotes e religiosos [e também leigos, como nomeados nesta multidão, em trecho mais adiante da mensagem] que se mantiveram fieis à Igreja. É uma imagem muito similar à da procissão do exílio que chega a uma praça cheia de mortos e feridos,  como narrada no segundo sonho de Dom Bosco. A mesma referência à quebra da fé, à transgressão do sagrado pelo profano, ao relativismo moral, ao catolicismo morno e sociológico, ao abandono da Igreja ao primado de Pedro ('a precipitação vertiginosa do sol em direção à Terra', na sexta aparição). O papa caminha sobre destroços e cadáveres (terríveis consequências* do flagelo do fogo, sinal inequívoco que o apelo triplo do Anjo à penitência terá sido em vão), sob penosos sofrimentos e aflições (a via crucis da Igreja).

* Em visões particulares, logo após a Terceira Aparição da Virgem, Jacinta revelou a Lúcia ter visto o Santo Padre a chorar numa casa muito grande, de joelhos e com as mãos no rosto, enquanto lá fora havia muita gente que lhe atiravam pedras ou que lhe rogavam pragas. Em outra ocasião, teve a visão do Santo Padre, a rezar diante do Imaculado Coração de Maria junto com uma multidão, enquanto uma outra multidão faminta se arrastava pelas estradas sem ter nada para se alimentar. Diante desse relato, Lúcia a instou a permanecer calada, porque senão isso poderia revelar o teor do Terceiro Segredo.

Mas a Paixão ainda está por vir. E a Igreja, à semelhança de Cristo, há de perpassar integralmente pelos padecimentos do seu próprio Calvário. O Sumo Pontífice e a multidão chegam, então, ao trecho final da caminhada - uma encosta íngreme e acidentada com uma cruz tosca no cimo. A Igreja descobre e sobe, trêmula, vacilante e desolada, o seu Gólgota. Amargo preço por ter abandonado os portos seguros da graça para ir de encontro à civilização moderna ('a grande cidade meio em ruínas') como uma nau sem rumo em mar revolto. A cruz - tosca cruz - é o símbolo de uma Igreja esmaecida do seu fulgor mas que, apesar de tudo, não perdeu a sua herança divina. Num mundo conturbado pelo pecado, dilacerado pelo pecado, ainda permanece firme sobre o Gólgota a Cruz de Cristo!

(vi) chegado ao cimo do monte, prostrado de joelhos aos pés da grande Cruz, [o papa] foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas.
(vii) e, assim mesmo, foram morrendo, uns trás dos outros, os bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas e várias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de várias classes e posições. 
(viii) Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos, cada um com um regador de cristal na mão, e neles recolhiam o sangue dos mártires e com eles regavam as almas que se aproximavam de Deus'.

As pés da Cruz, dá-se o martírio de papa e de uma multidão de fieis. Na verdade, acontece um massacre porque não se trata de um atentado a uma parte da Igreja, a um corolário da fé cristã, a algum dos seus dogmas, mas de uma guerra tremenda contra toda a Igreja. As armas podem disparar tiros e os arcos podem disparar setas: para arruinar desde os fundamentos da Igreja de Jesus Cristo, os inimigos investem para matar o corpo e a alma de milhões e de milhões, seja pelos conflitos armados, seja pelo cipoal de heresias, pela incredulidade, pelo ateísmo, pelo agnosticismo, pelo materialismo e por tantas outras doutrinas sectárias, 'setas' que matam a alma de tantos e tantos filhos da Igreja. O 'grupo de soldados' é um símbolo de uma ação planejada e implementada sob uma sólida e diabólica estratégia militar. Ao martírio de sangue está associado o martírio espiritual, cujos frutos serão cuidadosamente recolhidos pelos anjos para se regar as novas vinhas do Senhor e para gerar sementes de uma humanidade renovada. 

E este será um evento espantoso, fruto de uma intervenção direta e extraordinariamente sobrenatural, que sabemos há de vir por meio daquela 'que combate e dispersa os mais fortes exércitos da terra'. A Igreja vai padecer enormemente e viver o seu Calvário, porque Roma desprezou as profecias e se aviltou nos seus erros e contradições, mas renascerá triunfante porque Deus 'reservou a vitória sobre os seus inimigos a Si mesmo' (Pio IX). Esta confirmação do triunfo da Igreja e a explicação destes eventos por Nossa Senhora certamente devem estar incluídos no contexto do que ainda não se sabe do chamado Terceiro Segredo de Fátima.