Emídio Esquivel cerrou os olhos cansados. Muito, muitíssimo cansados. Embora a claridade do dia ensolarado entrasse aos borbotões pelas altas janelas e o envolvessem em um manto de fúria luminosa, suas retinas planavam em penumbras cada vez mais volumosas. O ar vinha e voltava sem quietude nos pulmões em brasa, num arremedo do eco vital; suas narinas abriam desesperadas buscando o vazio e o peito arfava em compressões e expansões cada vez menos regulares e cada vez mais espasmódicas. A morte se esgueirava pelos cantos do espaçoso quarto de hospital e tateava, pelo chão impecavelmente branco, em busca da posição agônica da última espreita. Emídio estava morrendo.
Os olhos fechados apagaram a penumbra e os sentidos entorpecidos pelos medicamentos contra a dor. Em algum abismo indefinível do seu corpo, a própria dor se aquietara e parecia à espera. Somente o peito inflava e zunia o ar que fugia celeremente pelo respirar ofegante. Estava só, irremediavelmente só, para cruzar a fronteira definitiva, o último abismo. Teve medo. Um medo peculiar, uma noção clara de que nervos, membros e pensamentos não sustentavam por completo a compleição do ser. Que podia haver algo mais, algo além da epiderme vegetativa, da degeneração contínua dos anseios e gemidos, da falência inevitável dos sentidos e dos sonhos prematuros.
Viu silenciosamente como num filme o desenrolar de toda uma vida, encenada em detalhes e esmero absoluto, tão nitidamente como se o tempo dos anos vividos fosse apenas o momento do agora. Projetou-se em milhares de imagens translúcidas que invadiam corpos, mentes, pensamentos, gestos e sentimentos e, de todos eles, renasceu com a dimensão da eternidade. Compreendeu o seu eu e o seu eu em tudo e em todos, mirante de toda a verdade. Desvestiu-se do homem que é pó e assumiu-se criatura infante de Deus.
O filme começou, então, a rodar celeremente ao contrário e em saltos mirabolantes. As imagens passavam trêmulas e esmaecidas, em meio ao vozerio de ruas e sons estridentes vindos de todos os lados e de todas as direções. Ora distorcidas, ora congeladas, mais e mais imagens confluíam como um fluxo de visões irreais à sua volta, arrastando-o em vertigem espantosa e convergindo para um enorme e colossal abismo negro. Algo estava agora errado, muito errado. À silente e caudalosa trilha de luz que seguira até há pouco convertera-se num emaranhado de vórtices e de redemoinhos espantosos, que o submergia num oceano de trevas indescritíveis.
'A luz, quero a luz!' O grito lhe pareceu vir de abismos ainda mais inimagináveis do seu ser, e teve a convicção clara do que seria a sua alma. 'A luz, quero a luz!' A sua voz lhe pareceu demasiado nítida e teve a suspeição de estar sendo ouvido com perfeição claríssima. Tentou abrir os olhos, captar a luz ensolarada da manhã singular. Apenas despertou a dor aquietada em abismos insondáveis que tomou de impulso todo o seu ser, consumido agora em agonia pura. Os pulmões ardiam como brasas e o ar calcinava a sua língua. 'A luz, quero a luz!' O último espasmo consumiu sua derradeira entrega. O quarto inteiro mergulhou, então, em trevas e a luz se difundiu por completo nos abismos da alma diante de Deus.
('Histórias que Ouvi Contar' são crônicas do autor deste blog)