quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

CARTAS A MEU PAI (II)

Pai:

o que está acontecendo com o tempo dos homens? Aqui e ali, faz um calor escaldante; acolá, chuvas que destroem tudo, com deslizamentos de encostas e inundações. A natureza parece estar estremecida, arfante, movendo-se em estertores com as variações climáticas tão violentas. A terra de tantas bênçãos e graças parece ter chegado a todos os limites possíveis diante da insensatez humana, da inconformidade das criaturas com o Criador, diante o pecado que é vendido livremente como se não fosse pecado. Onde isso tudo vai parar? Qual é o limite da Vossa misericórdia?

L. me aborreceu particularmente hoje. Um homem que não sabe usar as palavras viola a graça dos sentidos. Era uma frase e um palavrão, outra frase, outro palavrão... Seria vão tentar persuadi-lo a se conter, quantas vezes não tentei isso? É fácil constatar o óbvio: quem não consegue dominar suas palavras, não consegue dominar seu coração. E os erros se multiplicam, as ações se deterioram, a sensatez hiberna e a vulgaridade assome a predominância absoluta do ser, fazer, pensar, agir. Será que alguém ainda sabe hoje de vossas santas palavras, que nada, nada mesmo, nem mesmo a palavra mais vã, ficará órfã diante de Vós?

Meu Anjo da Guarda tomou jeito por estes tempos e tem me ouvido mais. Antes, falava sem parar, quase que num monólogo consigo mesmo, pois eu ficava mais mudo que uma pedra. Quanta preocupação, meu Deus! Dirija com cuidado! Não se deixe tomar pela preguiça! Por que já não fez o trabalho da escola de quinta-feira que vem! (e a gente ainda estava na segunda!). Agora, é bem mais silencioso e prestativo. Me ouve mais. E fica apenas assim, presente. Estou quase a fazer monólogos comigo diante dele. E me surpreendo como assim caminho a passos largos ao Vosso encontro!

Será que S. recebeu a minha mensagem? Pelo menos, não me respondeu. De qualquer forma, sua conversão não será fácil. Nada na sua casa favorece uma vida espiritual. Seus caminhos serão difíceis e vou precisar de muita paciência para guiá-lo na direção espiritual. Sinto que sua alma se abre para a verdade da graça, mas os seus instintos (instintos!) o mantém na vidinha comum dos jovens que vivem na monotonia das horas vividas para si mesmos, na dormência hipnótica de que o mundo e as coisas do mundo giram exatamente sobre as suas cabeças. Bom, já pedi ajuda ao meu anjo e ao dele. Que eles se entendam primeiro para que eu possa agir mais eficazmente no meu propósito.  

Por outro lado, G. tem feito avanços memoráveis. Sua devoção à Nossa Senhora me acalenta a ideia que ele vai ser um dínamo de espiritualidade cristã. Como são belos os pés do mensageiro que leva a tanta gente as palavras de Cristo e dos Evangelhos. Quantas graças e bênçãos não nascerão daquelas mãos tão prontas a rezar e a confortar! No meio dos tempos dos homens, do calor sufocante, das chuvas torrenciais, quanta alegria, meu Pai, de ver tantos dos vossos filhos na caminhada segura aos vossos braços. G. terá uma bela história de vida, com certeza, e serão longos os seus dias sobre a terra.

Ah, ia me esquecendo, mas estou firme nas caminhadas do fim de tarde. Meu Anjo da Guarda me deu um sério ultimato. Ou cuido realmente da minha saúde ou... Nem quis saber do ou... Meu triglicérides não andou meio elevado? Agora tudo está sob controle, não se preocupe. Faça sol, ou faça chuva, caminho para a saúde do corpo e da alma. Nos caminhos do mundo, e para o Vosso coração.

E isso é tudo por hoje, na vida de um filho vosso no meio do mundo. Boa tarde, pai. Com a vossa bênção, R.

('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).