sábado, 8 de setembro de 2012

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (II)...

Bonifrates era um simples eschola, aprendiz de aprendiz do mestre de ofícios. E, como mero eschola, cabia ao próprio as tarefas menos nobres de acabamento da igreja barroca, na qual entregava diariamente sua pesada lida há quase um ano. Trabalhara, é verdade, na marcação das volutas e demais peças de alto-relevo dos altares laterais, particularmente nos anjinhos em torno das imagens dos santos franciscanos de Santa Rosa de Viterbo e de Santa Isabel da Hungria. E chegara mesmo a tornear peças da fachada lateral e do fronstispício  do altar da capela. Mas o que almejava mesmo era ombrear-se com Zaqueu Beato, lendário mestre dos mestres de ofício, que trabalhara, anos e anos, na conformação dos entalhes finais de acabamento em ouro do altar principal. Eis aí a sua seletiva ambição: superar o mito e ingressar na história. Eis aí também o desconsolo de sua fértil imaginação: sabia-se insignificante diante do tão grande mestre, e a simples vista de tais obras primas minavam o gigantismo de suas pretensões remotas.

E, repetidas vezes, apoderava-se dele aquele enorme estado de abatimento, um misto de incerteza diante dos dotes presumidos e da frustração em face às suas realidades patentes. Que moldura de ouro caberia no retrato insípido de um simples serviçal? Bem, e para ser bem honesto, a perseverança não era muito o seu forte. Para que se esmerar no trabalho de preparação da madeira bruta, esmerilhar um alto-relevo que passaria pelas minúcias do acabamento, cinzelar o quartzito e o esteatito com polimento e curvaturas perfeitas se a glória da arte final caberia sempre ao artesão ilustre? E como a impaciência é filha-mor do orgulho, deixou de lado macete e cinzel, e deitou-se amuado, a conjecturar como o mundo tramava contra as suas mais belas fantasias.

O mestre-construtor, porém, não tinha nem paciência e nem pretensões algumas que não fossem as de garantir o pronto andamento dos trabalhos; e, para maior desconsolo de Bonifrates, não estava num dia dos mais interessantes. E, sem forja e talhe algum, mandou o serviçal ir trabalhar em outra freguesia, o que se traduz por ir fazer o seu ofício nas cornijas mais recônditas das duas torres arredondadas da igreja. Era o mesmo que ser condenado à solitária: um serviço absolutamente inútil e inexpressivo, num local de acesso restritíssimo que nenhuma alma de mínima prudência nem chegaria perto, o 'fim do mundo' daquela soberba construção.

O golpe foi duro e o fato sem razão de delongas. Armado de uma ira nada santa, Bonifrates galgou os degraus da escada em caracol pisando nos cascos, subindo, subindo sem fim. Atravessou o vão das torres, esgueirou-se pelas aberturas da guarita, avançou pelo trecho aberto do engradamento do telhado e se aprumou como pôde no ápice da cumeeira exposta. Lívido, arquejante, agoniado. E, então, viu o velho debruçado na cornija mais íngreme e esconsa da segunda torre. O corpo envelhecido mas rijo, contorcido mas aprumado, cinzel nas mãos desbastando a alvenaria e as pernas engastadas no madeirame da cobertura. Bonifrates não podia acreditar no que tinha diante os olhos: as espirais perfeitas, em simetria absoluta, conformando o beiral da abóboda ainda nua, com a ornamentação exuberante da fachada logo acima. O cinzel do velho homem não golpeava a matéria, mas antes a moldava, com paciência e com destreza extremas e, hipnotizado, o serviçal acompanhou o delicado ritual do rude metal delineando a minúscula voluta na pedra bruta. Que trabalho de mestre, que precisão de gênio, destinado ao nada, feito em lugar nenhum, sem testemunhas e sem história...

- Perdão, senhor - a voz do aprendiz feriu o silêncio mortal das horas, vejo que és um mestre dos ofícios, de tão grande e exímia destreza e habilidade, mas que fazes aqui?

- O que faço aqui, respondeu com voz firme e suave o velho artesão, é a arte que sempre fiz, em todos os lugares e desde muito tempo; é a mesma arte que já fiz nos altares, no lavabo em pedra-sabão da sacristia, na fachada da igreja, nas imagens de santos e anjos, nos púlpitos da capela...

- 'Zaqueu Beato!' O pensamento de Bonifrates perscrutou em segundos a visão do mito e as obras primas de sua criação na portada e na nave da igreja abaixo. E, mal expressando tantos pensamentos em desalinho súbito, perguntou:

- Mas, aqui? Para quê, se homem algum vai conseguir chegar a este local inacessível? Para quê, se ninguém vai ver esta obra de arte pelos séculos, se valor algum será dado por trabalho que ninguém vai nem saber que existiu?

Os olhos do velho artesão não exprimiam culpa nem justificação alguma. Apenas olharam o aprendiz com a sabedoria dos homens que sabem que ideal algum se constrói sem a constância e a perseverança plenas. 

- Os homens certamente não saberão nunca. Deus o saberá pela eternidade.

E, voltando-se ao trabalho árduo, na constância dos santos e no anonimato dos tempos, Zaqueu Beato continuou a escrever a sua história humana.