terça-feira, 5 de abril de 2016

SEDE DE JUSTIÇA E FOME DE SANTIDADE

Os profetas de Israel não deixavam de lembrar que ninguém se podia vangloriar de ser justo diante de Deus se desprezasse os seus deveres para com os homens. Escutemos, por exemplo, Ezequiel: 'Aquele que não oprime ninguém, que devolve o penhor que lhe confiaram, que não saqueia, que dá o pão a quem tem fome, que veste os nus, que não empresta com usura e nem reclama juros, que afasta a sua mão da iniquidade, que julga segundo a verdade entre um e outro homem – esse é verdadeiramente justo', diz o Senhor (Ez 18, 9). 'Para que serve uma fidelidade puramente cultual', lê-se no Livro de Isaías, 'se no dia em que jejuais vos mostrais gananciosos, provocais questões e bateis nos outros? Em vão inclinais a cabeça como o junco e dormis sobre o saco e a cinza. Eis o jejum que me agrada: libertai aquele que oprimis, quebrai toda a espécie de jugo, recolhei os pobres sem abrigo. Então podereis invocar a Deus e Ele responderá: Eis-me aqui' (Is 58, 3-9). Estas exclamações preparavam a pregação de Cristo, que tornou as nossas obrigações para com Deus inseparáveis dos nossos deveres para com os homens.

Deus provou-nos o seu amor pela doação que nos fez de seu Filho. Em Jesus Cristo, Deus uniu-se a toda a humanidade; por Ele, a comunidade humana tornou-se uma família, cujos membros são realmente irmãos. O ato da Encarnação estabeleceu uma conexão fundamental entre estes termos: Deus, o próximo e eu; já não me é permitido isolá-los. Pretender aproximar-me de Deus abstraindo do próximo, é uma ilusão. Entre mim e Deus estão todos os outros homens, também seus filhos. A fidelidade que eu lhe prometo, prová-la-ei pela forma como me dedicar ao meu próximo. Violei algum direito alheio? O Pai comum considera-se lesado. 'Eis que o salário dos trabalhadores que ceifavam os vossos campos, o qual foi defraudado por vós, clama, e o clamor deles subiu até os ouvidos do Senhor dos exércitos' (Ti 5, 4). Ainda mais: mesmo que eu não prejudique positivamente o meu próximo, se, podendo, não remedeio a desgraça do mais humilde dos meus irmãos, Cristo, no dia do Juízo, considerará a minha indiferença como uma afronta feita a si próprio.

Não será menor o erro de querer aproximar-me dos outros esquecendo-me de Deus. Só Deus, em quem somos irmãos, pode estabelecer uma lei que permita sairmos do nosso egoísmo instintivo para chegarmos a um altruísmo sincero. Não há dúvida de que seria falso negar a bondade natural do homem. 'É uma lei da natureza', afirmava Cícero, 'que o homem queira bem ao homem, unicamente porque é homem' (De officiis, 111, 6). A mais segura teologia confirma esta doutrina: 'A natureza', escreve São Tomás, 'pôs no coração do homem uma inclinação natural para amar todos os homens'(Contra Gentes, 111, c. 130). A amizade, a simpatia, a compaixão conseguem por si sós que os homens se esqueçam de si próprios, que se sacrifiquem e se consagrem aos outros. Também não é menos forte o sentimento natural de solidariedade, embora muitas vezes só se manifeste efetivamente no círculo de determinados agrupamentos (nações, classes, partidos). Mas aqui se observa claramente o grande fator de divisão entre os homens – o interesse.

Numa coletividade, o interesse constitui um elo apenas provisório; no fundo, é um dissolvente que fatalmente quebra todas as uniões. Na vida cotidiana, há sempre um momento em que os dois termos – a outra pessoa e eu – tendem a opor-se, e em que o meu direito me parece mais líquido e certo. Devo abrir mão daquilo que essa pessoa reclama para si?

É necessário um terceiro termo para me convencer de que nada perco ao renunciar a alguma coisa em benefício dos meus irmãos. É Deus quem me faz encontrar a felicidade amando o próximo como a mim mesmo. A justiça dos cristãos não se baseia num código: é o exercício de uma fraternidade que ama e que tem a sua origem em Deus. A propósito de São Vicente de Paula, houve alguém que fez esta observação muito oportuna: 'Não foi o amor aos homens que o levou à santidade; foi antes a santidade que o tornou verdadeira e eficazmente caritativo. Não foram os pobres que o deram a Deus; foi Deus quem o deu aos pobres'. Gratry observava o mesmo: 'Os santos não se elevam até o amor de Deus à força de não amarem mais ninguém, mas amam toda a gente mais do que a si próprios por muito amarem a Deus sobre todas as coisas'.

Descobrimos agora a amplitude da 'justiça' de que os discípulos de Cristo têm fome e sede: ela torna-os insaciáveis em alcançar a glória de Deus promovendo a felicidade dos homens; em reconstruir o mundo tal como Deus o ordenou, tendo como alicerce o amor. Renegaríamos, sem dúvida, o nosso nome de cristãos se prejudicássemos voluntariamente um dos nossos irmãos; mas a sede de justiça vai muito mais longe do que o respeito pelos direitos dos outros. É uma inquietação que nos faz recear não darmos aos nossos irmãos tudo o que lhes devemos; é um tormento que não nos dá tréguas enquanto não forem suprimidos os abusos de que os nossos semelhantes são vítimas, e que nos leva a repará-los, na medida em que nos for possível.

'Lembrai-vos dos que são maltratados, como se habitásseis o mesmo corpo'. Este conselho da Epístola aos Hebreus (Hb 13, 3) deve ser uma norma de ação para todos os cristãos. A falta de respeito, a denegação da justiça, infligidas aos outros, devemos nós senti-las como se fôssemos nós os atingidos: devemos senti-las em nossa carne.

No fim do seu livro Les Sources, Gratry resumia deste modo a sua mensagem: 'Só peço uma coisa ao mundo contemporâneo: a vontade resoluta, decidida, de abolir a miséria. Que se decida publicamente, solenemente, a tomar como divisa a indicação de Moisés: 'Ó Israel, não suportarás que haja em teu seio um só mendigo nem um só indigente'. Que todos os povos, todos os partidos estejam de acordo neste único ponto e o ponham em prática incansavelmente. Isso basta. Afirmo que é por esse caminho que a justiça, a verdade e a religião se propagam pela face da terra'.

Este apelo pungente, doloroso, não ficou sem eco. É inegável que, de há umas décadas para cá, a boa vontade geral se tem esforçado por melhorar a condição dos homens que sofrem, isto é, da maior parte dos seres humanos. Também é certo que os cristãos tomaram uma ampla parte nesta recuperação da justiça. Gostaríamos, no entanto, que todos os discípulos de Cristo, sem exceções, tivessem sido os seus promotores. Nem todos compreenderam imediatamente que o entrechoque de interesses deve ceder o lugar a uma cooperação equitativa; que a esmola é uma hipocrisia quando substitui o salário; que a reabilitação das classes desfavorecidas exige a renúncia aos privilégios da fortuna.

Não tenhamos ilusões; as reformas sociais a que se procedeu desde o início deste século foram muitíssimas vezes obtidas pelo recurso à força, e outras tantas concedidas sob o domínio do medo. Muitos males passados e futuros se teriam podido ou se poderiam evitar se os cristãos cerrassem fileiras e se transformassem em campeões da justiça!

Não devemos pensar que estas considerações se situam fora da esfera do reino de Deus. Para ser eficaz, a luta contra a miséria deve ser combatida em suas origens. E um cristão não pode resignar-se a ver o pecado alterar a ordem do mundo. A sua sede de justiça confunde-se com a sua fome de santidade. E não é menos verdade que, contribuindo para tornar mais humana a sorte dos homens, é a Cristo em pessoa que os seus discípulos glorificam.

Um desgraçado que esteja em contato com cristãos emshy;penhados em lutar pela dignidade e pelos direitos dos meshy;nos favorecidos, com cristãos dispostos a suportar todas as misérias para aliviar as dos outros, esse desgraçado não tarda a reconhecer que ”nem só de pão vive o homem” e que a virtude é a condição necessária para um progresso real e duradouro.

Mas o verdadeiro drama do cristão que toma a sério o Evangelho é não poder viver dentro da justiça, pois faz parte de um estado social que contradiz o seu ideal de fraternidade e santidade. Condena a guerra, e tem de viver numa sociedade que a prepara; come o pão de cada dia, mas num mundo onde centenas de milhares de indivíduos padecem fome; serve-se das vantagens de um regime econômico que permite abusos revoltantes; exerce talvez uma profissão em que não lhe é permitido ser rigorosamente honesto.

Não há dúvida de que se dedica, no círculo restrito da sua atividade, a denunciar o mal, a reduzi-lo, a repará-lo. Mas nem por isso deixa de partilhar da responsabilidade dos grupos a que pertence. Os pecados coletivos de uma sociedade que tolera a miséria e a imoralidade pública são, em parte, pecados seus, pois é um dos membros dessa sociedade. Estes pecados que vê com horror, não pode ele impedir que se cometam. Tem de viver e sofrer nessa tensão contínua. Compreende-se agora que, nesta contradição atroz, soframos, depois do Cordeiro de Deus, 'o pecado do mundo', e que, por este despedaçamento da nossa consciência e do nosso coração, prolonguemos o sofrimento de Cristo crucificado, para redenção dos homens. É vocação nossa viver esta contradição, aceitar no meio da multidão a solidão da cruz, ter apenas a amargura das nossas desilusões para matar a nossa sede de justiça.

Sede benéfica, pois o seu aguilhão nos lembra incessantemente que devemos dedicar-nos aos nossos irmãos. Sede abençoada, porque o próprio Cristo a acalma, fazendo-nos vislumbrar, para além das tristezas e dúvidas do presente, dias melhores em que os nossos descendentes hão de viver em sociedades mais fraternais. Sede de justiça e fome de santidade, que se misturam no nosso interior num mesmo tormento, e que serão plenamente saciadas se tivermos sofrido o bastante para que Deus nos reconheça no último dia e nos diga: 'Vinde, abençoados de meu Pai. Tive sede, e me destes de beber, pois tudo o que fizestes ao mais pequeno dos meus irmãos, a mim o fizestes'.

(Excertos da obra ' Sermão da Montanha', de Georges Chevrot, Ed. Quadrante, 1988)