quinta-feira, 10 de setembro de 2020

O HEROÍSMO COTIDIANO DA VIDA CRISTÃ

Como nos primeiros séculos do cristianismo, assim nos tempos modernos, nos países do mundo, onde a perseguição religiosa aqui e ali se enfurece, abertas e sutis, mas não menos duras, os mais humildes fieis podem de um momento para outro encontrar-se diante da dramática necessidade de escolher entre a própria fé, que tem o dever de conservar inata, e a liberdade, os meios para sustentar a vida, a própria vida. Mas também nas épocas normais, nas vicissitudes e nas condições ordinárias da família cristã, sucede de vez em quando que as almas se encontrem bruscamente colocadas na alternativa de violar um imprescindível dever ou de expor-se a sacrifícios e riscos dolorosos e duros: na saúde, nos bens, na posição familiar e social, colocadas portanto na necessidade de ser e demonstrar-se heroicas, se querem permanecer fieis às suas obrigações e permanecer na graça de Deus.

Quando os nossos predecessores de veneranda memória, e particularmente o Sumo Pontífice Pio XI na Carta Encíclica Casti Connubii, chamaram a atenção e recordaram as santas e inamovíveis leis da vida matrimonial, ponderavam e tinham perfeitamente consciência de que, em não poucos casos, aos esposos cristãos pede-se um verdadeiro heroísmo para observar inviolavelmente as suas leis. Trata-se de respeitar os fins do matrimônio desejados por Deus ou de resistir aos incentivos ardentes e lisonjeiros das paixões e de solicitações, que a um coração inquieto insinuam que vá procurar fora o que, na legítima união não encontram ou creem não ter encontrado tão plenamente como haviam esperado; ou que, para não quebrar ou diminuir o vínculo das almas e do mútuo amor, sobrevenha a hora de saber perdoar, de esquecer um litígio, uma ofensa, um aborrecimento, talvez grave; quantos dramas íntimos nascem, desenvolvem suas amarguras e peripécias atrás do véu da vida cotidiana! Quantos heroicos sacrifícios escondidos! Quantas angústias do espírito para conviver e manter-se cristãmente constante no próprio dever e no próprio cargo!

E esta mesma vida cotidiana, qual força de alma não pede muitas vezes: quando toda manhã se deve voltar aos mesmos trabalhos, talvez rudes e fastidiosos em sua monotonia; quando é melhor suportar com sorriso nos lábios, amável e alegremente, os defeitos recíprocos, os jamais vencidos contrastes, as pequenas divergências de gosto, de hábitos, de ideias, que a vida em comum traz, quando, em meio de mínimas dificuldades e incidentes, muitas vezes inevitáveis, não deve perturbar-se e diminuir a calma e o bom-humor; quando, em um encontro frio, é urgente saber calar, parar a tempo o lamento, mudar e adoçar a palavra que, lançada fora, daria desafogo aos nervos irritados, mas difundiria uma nuvem opaca na atmosfera das paredes domésticas! Mil particulares ínfimos, mil fugazes momentos da vida cotidiana, cada qual deles é bem pouca coisa, é quase um nada, mas que a continuidade e o adicionar-se terminam tornando tão pesados, e pelos quais, entretanto, por uma tão considerável parte, é entrelaçada e afetada, no mútuo sofrimento, a paz e a alegria de um lar.

Não procureis em outros lugares a fonte de tais heroísmos. Nas dificuldades da vida familiar, como em todas as circunstâncias da vida humana, o heroísmo tem sua raiz essencial no sentimento profundo e dominador do dever, daquele dever, com o qual não é possível transigir ou pactuar, que deve prevalecer em tudo e sobre todos: sentimento do dever que, para o cristão, é consciência e reconhecimento do domínio soberano de Deus sobre nós, de sua soberana autoridade, de sua soberana bondade; sentimento que quando se apresenta como a vontade de Deus claramente manifestada, não é passível de discussão, e a todos impõe inclinar-se; sentimento que, além de tudo, nos faz compreender que a vontade divina é a voz de um infinito amor para conosco; sentimento, em uma palavra, não de um dever abstrato ou de uma lei prepotente e inexorável, hostil e esmagadora da liberdade humana, do dever e do agir, mas que corresponde e se inclina às exigências de um amor, de uma amizade infinitamente generosa, transcendente e que rege as multiformes vicissitudes do nosso viver aqui na terra.

(Papa Pio XII)