Ó Redentor meu! O meu coração não pode chegar aqui sem se afligir muito! Que é isto agora nos cristãos? Hão-de ser sempre os que mais Vos devem os que Vos aflijam? Aqueles a quem melhores obras fazeis, aos que escolheis para Vossos amigos, entre quem andais e Vos comunicais pelos Sacramentos? Não estão ainda fartos dos tormentos que por eles passastes?
Ó Pai Eterno! Olhai que não são para esquecer tantos açoites e injúrias e tão gravíssimos tormentos. Como, pois, Criador meu, podem sofrer umas entranhas tão amorosas como as Vossas, que aquilo que fez vosso Filho com tão ardente amor e para mais Vos contentar (pois Lhe mandaste que nos amasse), seja tido em tão pouco como hoje em dia têm esses hereges o Santíssimo Sacramento, que Lhe tiram as Suas moradas, destruindo as Igrejas? Se alguma coisa Lhe ficasse por fazer para Vos contentar! Mas tudo fez com perfeição. Não bastava, Pai Eterno, que não tivesse onde reclinar a cabeça enquanto viveu e sempre em tantos trabalhos, senão que agora, essas moradas que tem para convidar Seus amigos (por nos ver fracos e saber que é preciso que os que hão-de trabalhar se sustentem com tal manjar) lhas tirem? Não tinha Ele já pago suficientemente pelo pecado de Adão? Sempre que tornamos a pecar, há-de pagá-lo este amantíssimo Cordeiro? Não o permitais, Imperador meu. Aplaque-se já Vossa Majestade. Não olheis aos nossos pecados, mas sim a que nos redimiu o Vosso Sacratíssimo Filho, e aos Seus merecimentos e aos da Sua gloriosa Mãe e de tantos santos e mártires que morreram por Vós!
Pensais, irmãs, que é pequeno bem procurar este bem de nos darmos todas ao Todo sem fazermos partilhas? E, pois que n'Ele estão todos os bens, como digo, louvemo-lO muito, irmãs, por nos ter reunido aqui onde não se trata de outra coisa senão disto. E assim, não sei porque o digo, pois todas as que aqui estais me podeis ensinar a mim. Confesso não ter neste caso tão elevada a perfeição como eu a desejo e entendo que convém, tal como em todas as virtudes, pois é mais fácil escrever do que cumprir; e ainda nisto não atinara, porque, algumas vezes, sabê-lo dizer consiste na experiência, e se eu atinar é por ter feito o contrário a estas virtudes.
Parece coisa imperfeita, minhas irmãs, este queixarmo-nos sempre de males leves; se podeis sofrê-lo, não o façais. Quando é grave o mal, ele por si mesmo se queixa; é outro queixume e logo se dá a conhecer. Olhai que sois poucas e, se uma tem este costume, é bastante para cansar a todas, se vos amais e há caridade; se não, a que tiver um mal verdadeiro, diga-o e tome o necessário; que, se perdeis o amor próprio, sentireis tanto qualquer alívio, que não tenhais medo o tomeis sem necessidade, nem vos queixeis sem causa. Quando o há, seria muito pior não o dizer, que tomá-lo sem ela, e muito mal se não se apiedassem de vós.
Muitas vezes vo-lo digo, irmãs, e agora quero-o deixar aqui escrito, para que não vos esqueçais de que, nesta casa, e até mesmo toda a pessoa que quiser ser perfeita, fuja a mil léguas de: 'tive razão', 'fizeram-mo sem razão', 'não teve razão quem isto fez comigo'... De más razões livre-nos Deus. Parece que haveria razão para que o nosso bom Jesus sofresse tantas injúrias e Lhas fizessem, e tantas injustiças? A que não quiser carregar a cruz, senão a que lhe derem muito assente em razão, não sei para que está no convento; volte para o mundo, e ainda aí lhe não guardarão essas razões. Porventura podeis sofrer tanto, que não fiqueis a dever nada? Que razão é esta? Por certo, eu não a entendo.
Que Deus não nos deixe querer isto, mas, aquela a quem lhe parecer que entre todas é tida em menos, considere-se a mais feliz; e assim é, se o souber levar como deve, que não lhe faltará honra nesta vida nem na outra. Acreditai-me nisto. Mas que disparate eu dizer que creiam em mim, dizendo-o a verdadeira Sabedoria! Pareçamo-nos, filhas minhas, nalguma coisa com a grande humildade da Virgem Sacratíssima, cujo hábito trazemos, pois é confusão chamarmo-nos freiras suas; que, por muito que nos pareça que nos humilhamos, ficamos bem longe de ser filhas de tal Mãe e esposas de tal Esposo.
Oh! como deveria ser outra esta vida para não se desejar a morte! Como a nossa vontade se inclina diversamente daquilo que é vontade de Deus! Ele quer que queiramos a verdade, nós queremos a mentira; quer que queiramos o eterno, nós inclinamo-nos ao que acaba; quer que queiramos coisas grandes e subidas, queremo-las baixas e da terra; queria quiséssemos só o certo, amamos o duvidoso. Até parece uma farsa, filhas minhas! E assim, suplicai a Deus que nos livre para sempre destes perigos e nos liberte já de todo o mal. E ainda que o nosso desejo não seja com perfeição, esforcemo-nos a fazer esta petição. Que nos custa pedir muito, se pedimos a Quem é poderoso? Mas, para melhor acertarmos, deixemos que dê conforme a Sua vontade, pois já Lhe demos a nossa. E seja para sempre santificado o Seu nome, nos céus e na terra, e em mim seja sempre feita a Sua vontade. Amém.
(Excertos da Obra 'Caminhos da Perfeição', de Santa Teresa de Ávila)