domingo, 24 de março de 2013

HOSANA AO FILHO DE DAVI!


No Domingo de Ramos, tem início a Semana Santa da paixão, morte e ressurreição de Nosso senhor Jesus Cristo. Jesus entra na cidade de Jerusalém para celebrar a Páscoa judaica com os seus discípulos e é recebido como um rei, como o libertador do povo judeu da escravidão e da opressão do império romano. Mantos e ramos de oliveira dispostos no chão conformavam o tapete de honra por meio do qual o povo aclamava o Messias Prometido: 'Hosana ao Filho de Davi: bendito seja o que vem em nome do Senhor, o Rei de Israel; hosana nas alturas'.

Jesus, montado em um jumento, passa e abençoa a multidão em polvorosa excitação. Ele conhece o coração humano e pode captar o frenesi e a euforia fácil destas pessoas como assomos de uma mobilização emotiva e superficial; por mais sinceras que sejam as manifestações espontâneas e favoráveis, falta-lhes a densidade dos propósitos e a plena compreensão do ministério salvífico de Cristo. Sim, eles querem e preconizam nEle o rei, o Ungido de Deus, movidos pelas fáceis tentações humanas de revanche, libertação, glória e poder.

Mas Jesus, rei dos reis, veio para servir e não para reinar sobre impérios forjados pelos homens. '... meu reino não é deste mundo' (Jo 18, 36). Jesus vai passar no meio da multidão sob ovações e hosanas de aclamação festiva; Jesus vai ser levado sob o silêncio e o desprezo de tantos deles, uns poucos dias depois, para o cimo de uma cruz no Gólgota.

Neste Domingo de Ramos, o Evangelho evoca todas as cenas e acontecimentos que culminam no calvário de Nosso Senhor Jesus Cristo: os julgamentos de Pilatos e Herodes, a condenação de Jesus, a subida do calvário, a crucificação entre dois ladrões e a morte na cruz...'Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito' (Lc 23,46). E desnuda a perfídia, a ingratidão, a falsidade e a traição dos que se propõem a amar com um amor eivado de privilégios e concessões aos seus próprios interesses e vantagens. 

A fé é forjada no cadinho da perseverança e do despojamento; sem isso, toda crença é superficial e inócua e, ao sabor dos ventos, tende a se tornar em desvario. Dos hosanas de agora ao 'Crucifica-O! Crucifica-O!' (Lc 23, 20) de mais além, o desvario humano fez Deus morrer na cruz.  O mesmo desvario, o mesmo ultraje, a mesma loucura que se repete à exaustão, agora e mais além no mundo de hoje, quando, em hosanas ao pecado, uma imensa multidão, em frenesi descontrolado, crucifica Jesus de novo em seus corações! 

MEDITAÇÕES SOBRE A PAIXÃO DE JESUS (II)


 JESUS LEVA A CRUZ AO CALVÁRIO

1. Publicada a sentença contra nosso Salvador, apoderam-se imediatamente dele com fúria. Arrancam-lhe novamente aquele trapo de púrpura e o revestem com suas vestes, para ser crucificado sobre o Calvário, lugar destinado para a morte dos malfeitores. ‘Despiram-lhe a clâmide e o revestiram com suas vestes e o conduziram para ser crucificado’ (Mt 27, 31). Arranjam duas rudes traves, fazem com elas às pressas uma cruz e obrigam-no a carregá-la sobre os ombros até ao lugar de seu suplício. Que barbaridade impor nos ombros do réu o patíbulo sobre o qual deve morrer. Mas assim deve ser, ó meu Jesus, pois que vós tomastes sobre vós todos os meus pecados.

2. Jesus não recusa a cruz, abraça-a até com amor, sendo ela o altar destinado para a consumação do sacrifício de sua vida pela salvação dos homens. ‘E levando sua cruz às costas, saiu para aquele lugar que se chama Calvário’ (Jo 19, 17). Os condenados saem da casa de Pilatos e entre eles se acha também nosso divino Salvador. Ó espetáculo que causou admiração ao céu e à terra: ver o Filho de Deus que segue para morrer por esses mesmos homens que a ela o condenam. Eis realizada a profecia: ‘E eu sou como um cordeiro que é levado para ser sacrificado’ (Lm 11, 19). Jesus oferecia um aspecto tão lastimoso, que as mulheres judias, ao vê-lo, não puderam deixar de chorar: ‘E o choravam e lamentavam’ (Lc 23, 27). Meu caro Redentor, pelos merecimentos dessa viagem dolorosa, dai-me a força de levar com paciência a minha cruz. Eu aceito todas as dores e desprezos que me destinais a sofrer; vós os tornastes amáveis e doces, abraçando-os por vosso amor. Dai-me força de suportá-los com paciência.

3. Contempla, minha alma, o que se passa com o vosso Salvador; vê como de suas chagas ainda frescas escorre o sangue, como está coroado de espinhos e carregado com a cruz. A cada movimento, renovam-se as dores de todas as suas chagas. A cruz começa a atormentá-lo já antes do tempo, pisando seus ombros chagados e martelando-lhes os espinhos da coroa. Ó Deus, quantas dores a cada passo. Consideremos também os sentimentos de amor com que Jesus vai subindo o Calvário, onde o espera a morte. Ó meu Jesus, vós ides morrer por nós. Eu vos voltei as costas no passado e quereria morrer de dor: mas no futuro não sou capaz de abandonar-vos mais, meu Redentor, meu Deus, meu amor, meu tudo. Ó Maria, minha Mãe, alcançai-me a graça de levar a minha cruz com toda a paz.

('A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo', de Santo Afonso Maria de Ligório)

sábado, 23 de março de 2013

MEDITAÇÕES SOBRE A PAIXÃO DE JESUS (I)


JESUS É CONDENADO POR PILATOS

1. Pilatos, depois de haver tantas vezes declarado a inocência de Jesus, mais uma vez a proclama, protestando ser ele inocente do sangue daquele justo (Mt 27, 24), e contudo pronunciou a sentença e o condenou à morte. Ó injustiça nunca vista no mundo! Ao mesmo tempo que o juiz declara inocente o acusado, ele o condena. Ah, meu Jesus, vós não mereceis a morte, mas eu a mereço. Visto, porém, que quereis satisfazer por mim, não é Pilatos, mas é o vosso próprio Pai que vos condena a pagar a pena a mim devida. Eu vos amo, ó Pai eterno, que condenais vosso Filho inocente para livrar-me a mim que sou réu. Eu vos amo, ó Filho eterno, que aceitais a morte devida a um pecador.

2. Pilatos, tendo condenado a Jesus, o entrega às mãos dos judeus, para que façam com ele o que desejavam: ‘Entregou Jesus ao arbítrio deles’ (Lc 23, 25). É de fato o que acontece: quando se condena um inocente, não se limita a pena, mas é ele abandonado às mãos dos inimigos, para que o façam padecer e morrer como lhes aprouver. Pobres judeus, vós então pedistes o castigo, dizendo: ‘Seu sangue caia sobre nós e nossos filhos’ (Mt 27, 25). E o castigo já veio! Desgraçados, sofreis e haveis de sofrer até ao fim do mundo o castigo desse sangue inocente. Ó meu Jesus, tende piedade de mim, que com minhas culpas também motivei a vossa morte. Não quero ficar obstinado como os judeus, quero chorar os maus tratos que vos dei e amar-vos sempre, sempre, sempre.

3. Eis que se lê diante do Senhor a injusta sentença, condenando-o à morte da cruz. Ele a ouve, e, inteiramente submisso à vontade do Pai, obediente a aceita com toda a humildade: ‘Humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte e morte de cruz’ (Fl 2, 8). Pilatos na terra diz: 'Morra Jesus!' E o eterno Pai no céu diz também: 'Morra o meu Filho'. E o Filho responde por sua vez: 'Eis-me aqui; eu obedeço e aceito a morte e a morte da cruz'. Meu amado Redentor, vós aceitais a morte que me é devida. Seja bendita a vossa misericórdia para sempre: eu vos agradeço sumamente. Mas visto que vós, inocente, aceitais a morte da cruz por mim, eu, pecador, aceito a morte que me destinardes com todos os sofrimentos que a acompanharem e desde já a uno à vossa morte e a ofereço ao vosso eterno Pai. Vós morrestes por meu amor e eu quero morrer por amor de vós. Pelos merecimentos de vossa santa morte, fazei-me morrer na vossa graça e abrasado no vosso santo amor. Maria, minha esperança, recordai-vos de mim.

('A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo', de Santo Afonso Maria de Ligório)

sexta-feira, 22 de março de 2013

DA VIDA ESPIRITUAL (46)

Diante do pecado, tua alma, em dor profunda, gritaria do fundo do teu coração: ‘Eis o que me fizeste agora, uma casa envolta em trevas, um caos de vertigens e medo! Aonde a luz do Santo Espírito que irrompia em cascatas sem fim através do teu corpo revestido da graça do Pai? Aonde o júbilo sem medidas do amor eucarístico? Aonde o perfume inebriante das coisas do céu? Nada mais, a não ser o vazio imenso de um coração que pulsa pelo fogo tíbio das paixões humanas, que bombeia o sangue que te torna cidadão do mundo e órfão da eternidade? 

Como dói esta brusca ruptura, esta implosão de ideais, este abismo de destroços e ruínas! Aspiravas ser espírito da vontade divina e agora és carne de um mendigo da loucura; de discípulo do Filho do Homem passaste a ser peregrino de atalhos sem fim; do calor abrasador do fogo de Cristo volveste a tua face à seiva pegajosa das tentações humanas; com o mesmo preço vil das moedas de Judas compraste com a tibieza todos os prazeres do mundo; do mistério da graça me levaste aos sumidouros infernais dos desesperados. 

Dentro do teu coração fechado, não mais repousa uma alma de esplêndida beleza; dentro do teu peito humano, esconde-se a miséria dos instintos e a falange dos teus desejos e ambições. São elas que destrancam as portas da tua mansidão, sulcam a superfície polida do teu caráter, violam os segredos de teus sentimentos, perturbam a calmaria de tuas convicções, achincalham as certezas de tua fidelidade, destroem as correntes de tua perseverança, descalçam os apoios de tua generosidade e corroem as fontes de tua fé; são elas que te banqueteiam com tantos amores divididos, crenças dispersas, meias verdades e os frutos da insensatez. Teu corpo exala odor de obra temporária, tua alma agoniza sem luz e sem ar...' 

E, então, meu filho, tu irias correndo buscar o tesouro da oração, da confissão, da santa eucaristia... E aprenderias a ouvir, com a nitidez de todos os trovões, o grito de tua alma...

quarta-feira, 20 de março de 2013

A PROFECIA DE PALAU

Profecia do bem-aventurado Francisco Palau (nascido em 20 de dezembro de 1811 em Aitona, na província espanhola de Lérida, e falecido em 20 de março de 1872, socorrendo as vítimas de uma epidemia em Tarragona). Fundou em Barcelona a 'Escola da Virtude', modelo de ensino catequético. Em 1860/61, fundou congregações de irmãos e irmãs carmelitanas terceiras, que deram origem posteriormente às congregações de Carmelitas Missionárias Teresianas e às Carmelitas Missionárias. Pregou missões populares, foi eremita (ou ermitão) e difundiu a devoção a Nossa Senhora. Foi beatificado em 24 de abril de 1988.


'Eu vi um cometa, o mesmo cometa*, aquele sinal misterioso, sobre o qual fiz tantas reflexões. Sua cauda tinha forma de espada, de uma espada de fogo que lançava bolas de fogo em direção à terra. Eu fiquei atento olhando para a espada. Horrivelmente fiquei tomado de espanto, porque apareceu uma mão misteriosa que empunhou a espada, e na hora pelo orbe inteiro se ouviram hinos de guerra: guerra no mundo oficial político, guerra entre os reis, guerra por razões de interesse puramente material.

* o mesmo cometa: que vai e retorna à terra seguindo a sua órbita cíclica: o cometa mais famoso é o Halley, que tem um ciclo de 75/76 anos  e passou pela terra, na última vez, em 1986.


Enquanto eu olhava a mão que empunhava a espada de aço voltada contra a cabeça dos reis, saiu do cometa outra cauda*, e apareceu na hora uma outra mão que pegou a cauda do cometa que era toda de fogo e em forma de espada, e entre trovões e relâmpagos a espada jogava raios e faíscas contra o globo terrestre, e as duas espadas, batendo entre elas, acendiam sobre a terra a mais encarniçada guerra que os séculos já viram: na política e na religião: uma guerra universal. (...)

* um cometa apresenta caudas distintas de poeira e gás (ionizada).


O cometa era um sinal colocado no firmamento do mundo espiritual. Ele joga uma luz que ilumina a história presente e vindoura deste mundo material visível onde acontece a atividade humana. (...)

A luz desse cometa ilustra o cumprimento desta profecia: ‘Satanás será solto da prisão. Sairá dela para seduzir as nações dos quatro cantos da terra’ (Apoc. cap. XX, 7-8).

À luz deste cometa se vê a obra de Satanás, aquele mistério de iniquidade que começou a se tramar contra a Igreja, quando Ela estava ainda em seus primórdios. Satanás desencadeado seduziu todos os reis e todos os príncipes da terra; ele voltou suas espadas e cetros contra a Igreja: esta é a sua obra.

O cometa mostra duas mãos e as duas empunham uma espada, e as duas vão contra Cristo e sua Igreja, e anunciam uma guerra igual à dos primeiros séculos, porém mais horrorosa, sem comparação. (...)

Satanás desencadeado consumou sua maldade, porque obteve nesta ordem material política a apostasia de todos os reis e governos.

Eu, o Ermitão, percebendo este fato, peguei dois pedaços de madeira, fiz uma Cruz e escrevi nela Quis ut Deus? [Quem será como Deus?] (...)

O cometa significa e desvenda o desencadeamento e a libertação do diabo e, em consequência, a apostasia predita pelo apóstolo: um reino de trevas e de maldade, uma época de incredulidade e de erros.

O cometa descobre anátema, maldição, morte, guerra, anarquia social, dias de luto e pranto; e quando o Ermitão vir este sinal, quer dizer, o diabo desencadeado, vos dirá, e vos repetirá sempre a mesma coisa, certo de que o tempo confirmará a verdade destes fatos.'

terça-feira, 19 de março de 2013

19 DE MARÇO - SÃO JOSÉ


São José, esposo puríssimo de Maria Santíssima e pai adotivo de Jesus Cristo, era de origem nobre e sua genealogia remonta a David e de David aos Patriarcas do Antigo Testa­mento. Pouquíssimo sabemos da vida de José, além de suas atividades de carpinteiro em Nazaré. Mesmo o seu local de nascimento é ignorado: poderia ser Nazaré ou mesmo Belém, por ter sido a cidade de Davi. Ignora-se igualmente a data e as condições da morte de São José, mas existem fortes razões para afirmar que isso deve ter ocorrido an­tes da vida pública de Jesus. Com certeza, José já teria falecido quando da morte de Jesus, uma vez que não se explicaria, então, a recomendação feita aos cuidados mútuos à mãe e ao filho, dados, da cruz,  por Jesus a Maria e a São João Evangelista.

Não existem quaisquer relíquias de São José e se desconhece o local do seu sepultamento. Muitos pais da Igreja defendiam que, devido à sua missão e santidade, São José, a exemplo de São João Batista, teria sido consagrado antes do nasci­mento e já gozava de corpo e alma da glória de Deus no céu, em com­panhia de Jesus e sua santíssima Esposa. As virtudes e as graças concedidas a São José foram extraordinárias, pela enorme missão a ele confiada pelo Altíssimo. A dig­nidade, humildade, modéstia e pobreza, a amizade íntima com Je­sus e Maria e o papel proeminente no plano da Redenção, são atributos e méritos extraordinários que lhe garantem a influência e o poder junto ao tro­no de Deus. Pedir, portanto, a intercessão de São José, é garantia de ser ouvido no mais alto dos céus. Santa Tereza, ardorosa devota de São José, dizia: 'Não me lembro de ter-me dirigido a São José sem que tivesse obtido tudo que pedira'.

A devoção a São José na Igreja Ca­tólica é antiquíssima. A Igreja do Oriente celebra-lhe a festa, desde o século nono, no domingo depois do Natal. Foram os carmelitas que in­troduziram esta solenidade na Igreja Ocidental; os franciscanos, já em 1399, festejavam a comemoração do Santo Pa­triarca. Xisto IV inseriu-a no bre­viário e no missal; Gregório XV ge­neralizou-a em toda a Igreja. Cle­mente XI compôs o ofício, com os hinos, para a celebração da Festa de São José em 19 de março e colocou as missões na China sob a proteção do Santo. Pio IX introdu­ziu, em 1847, a festa do Patrocínio de São José e, em 1871, declarou-o Pa­droeiro da Igreja; muitos pontífices promoveram solenemente a devoção a São José, por meio de orações, homilias, encíclicas e devoções diversas.


São José, rogai por nós!

HOMILIA A SÃO JOSÉ ADORMECIDO

Queridos irmãs e irmãos:

Há pouco tempo vi em casa de uns amigos uma representação de São José que me fez pensar muito. É um alto-relevo proveniente de um retábulo português da época barroca, em que se mostra a noite da fuga para o Egito. Vê-se uma tenda aberta, e, perto dela, um anjo de pé. Dentro da tenda, José está a dormir, mas vestido com a indumentária própria de um peregrino, calçado com botas altas, necessárias para uma caminhada difícil. Se na primeira impressão parece um pouco ingênuo que o viajante apareça também como adormecido, pensando melhor começamos a perceber o que a imagem nos quer sugerir.


alto-relevo do barroco português: 'São José de Botas'

José dorme, é verdade, mas está simultaneamente disposto a ouvir a voz do anjo (Mt 2,13ss). Parece depreender-se da cena o que o Cântico dos Cânticos tinha proclamado: eu dormia, mas o meu coração estava vigilante (Cânt 5,2). Os sentidos exteriores repousam, mas o fundo da alma pode ser tocado. Nessa tenda aberta temos a representação do homem que, desde o mais profundo do seu ser, pode ouvir o que vibra no seu interior ou lhe é dito desde as alturas, do homem cujo coração está suficientemente aberto para receber aquilo que o Deus vivo e o seu anjo lhe querem comunicar. Nessa profundidade, a alma de qualquer homem pode encontrar-se com Deus. Nessa profundidade, Deus fala a cada um de nós e mostra-nos como está próximo.

Contudo, na maior parte das vezes encontramo-nos invadidos por cuidados, inquietações, expectativas e desejos de toda a espécie, tão repletos de imagens e carências produzidas pela vida de cada dia, que, por muito que vigiemos exteriormente, é-nos pedida a vigilância interior e, com ela, o som das vozes que nos falam desde o mais íntimo da alma. Esta está tão sobrecarregada e são tantas as muralhas erguidas no seu interior, que a voz suave do Deus próximo não consegue fazer-se ouvir. Com a chegada da Idade Moderna, os homens têm vindo a dominar cada vez mais o mundo e a dispor das coisas à medida dos seus desejos; mas estes avanços no nosso domínio sobre as coisas, e no conhecimento do que com elas podemos fazer, limitaram, por outro lado, a nossa sensibilidade, de tal maneira que o nosso universo se tornou unidimensional. Estamos dominados pelas nossas coisas, por todos os objetos que as nossas mãos alcançam, e que servem de instrumentos para produzir outros objetos. No fundo, não vemos outra coisa senão a nossa própria imagem, e estamos incapacitados para ouvir a voz profunda que, desde a Criação, nos fala também hoje da bondade e da beleza de Deus.

Esse José que dorme, mas que ao mesmo tempo está preparado para ouvir o que ecoe no seu íntimo e desde o alto – porque não é outra coisa o que o Evangelho deste dia acaba de nos dizer -, é o homem em que se unem o recolhimento íntimo e a prontidão. A partir da tenda aberta da sua vida, convida a retirarmo-nos um pouco do bulício dos sentidos; para que recuperemos também nós o recolhimento; para que saibamos dirigir o olhar para o interior e para o alto, para que Deus possa tocar a nossa alma e comunicar-lhe a sua palavra. A Quaresma é um tempo especialmente adequado para nos afastarmos das vicissitudes quotidianas, e dirigirmos novamente os nossos passos pelos caminhos do interior.

Passamos ao segundo ponto. Esse José que vemos pronto para se levantar e, como diz o Evangelho, cumprir a vontade de Deus (Mt 1,24; 2,14). Assim toma contato com o núcleo da vida de Maria, a resposta que ela ia dar no momento decisivo da sua existência: Eis aqui a serva do Senhor (Lc 1,38). São José reage assim: Aqui tens o teu servo! Dispõe de mim! A sua resposta coincide com a de Isaías no momento de receber o chamamento: Eis-me aqui, Senhor. Envia-me (Is 6,8, juntamente com 1 Sam 3,8ss). Esse chamamento preencherá toda a sua vida daqui em diante. Mas também há outro texto da Escritura que vem a propósito: o anúncio que Jesus faz a Pedro quando lhe diz: Levar-te-ão onde tu não queiras ir (Jo 21,10). José, com a sua celeridade, tomou-o como regra da sua vida: porque está preparado para se deixar conduzir, embora a direção não seja a que ele quer. Toda a sua vida é uma história desta correspondência.

Começou com a mensagem do anjo sobre o segredo da maternidade divina de Maria, o mistério da vinda do Messias. De repente, a ideia que tinha feito de uma vida discreta, simples e agradável, fica transtornada quando se sente associado à aventura de Deus entre os homens. Tal como sucedera no caso de Moisés perante a sarça-ardente, encontrou-se face a face com um mistério em que lhe cabe ser testemunha e co-participante. Muito brevemente saberá o que isso implica: que o nascimento do Messias não pode acontecer em Nazaré. Tem de partir para Belém, que é a cidade de David; porém, também não acontecerá aí: porque os seus não o receberam (Jo 1,11). Já aponta para a hora da Cruz: porque o Senhor terá de nascer fora de portas, num estábulo. Logo depois, chega a nova mensagem do anjo, a saída do Egito, onde irá sofrer a sorte dos que não têm casa nem pátria: refugiados, estrangeiros, desenraizados que procuram um lugar para se instalar com os seus.

Irá regressar, mas sem terem terminado os perigos. Mais tarde vai sofrer a dolorosa experiência dos três dias durante os quais Jesus está perdido (Lc 2,46), esses três dias que são como um presságio dos que mediarão entre a Cruz e a Ressurreição: dias em que o Senhor desapareceu e se sente o seu vazio. E, do mesmo modo que o Ressuscitado, não irá regressar para viver entre os seus com a familiaridade daqueles dias que terminaram. Pelo contrário, diz: Não me detenhas, pois ainda não subi para o Pai, e poderás estar comigo quando subires também (cf. Jo 20,17). Assim, agora, quando Jesus é encontrado no Templo, reaparece em primeiro plano o mistério de Jesus naquilo que ele tem de distanciamento, de ponderação e de grandeza. José sente-se, de certo modo, posto no seu lugar por Jesus, mas ao mesmo tempo encaminhado para o alto. Eu devia ocupar-me das coisas de meu Pai (Lc 2,19). É como se lhe dissesse: Tu não és meu pai, mas guardião que, ao ser-te confiada esta missão, recebeste o encargo de proteger o mistério da Encarnação.

E, finalmente, José morrerá sem ter visto manifestar-se a missão de Jesus. No seu silêncio ficarão sepultados todos os seus padecimentos e esperanças. A vida deste homem não foi como a daquele que, pretendendo a realização de si próprio, procura somente em si os recursos de que necessita para fazer da sua vida o que quer. Foi o homem que se nega a si mesmo, que se deixa levar para onde não queria ir. Não fez da sua vida coisa própria, mas algo para entregar. Não se deixou guiar por um plano que o seu intelecto tivesse concebido, e a sua vontade decidido, mas, respondendo aos desejos de Deus, renunciou à sua vontade para se entregar à de Outro, à vontade grandiosa do Altíssimo. E é exatamente nesta renúncia total a si próprio que o homem se descobre.

Porque a verdade é assim: somente se soubermos perder-nos, se nos dermos, podemos encontrar-nos. Quando isto sucede, não é a nossa vontade que prevalece, mas a do Pai à qual Jesus se submeteu: não se faça a minha vontade, mas a tua (Lc 22,42). E, tal como então, cumpre-se o que dizemos no Pai-Nosso: Seja feita a tua Vontade assim na terra como no Céu. Por isso S. José, com a sua renúncia, com o seu abandono, que de certo modo adiantava a imitação de Jesus crucificado, nos ensina os caminhos da fidelidade, da ressurreição e da vida.

Falta-nos um terceiro aspeto: olhando para este José, que está vestido como peregrino, compreendemos que, a partir do momento do Mistério, a sua existência seria a de quem está sempre a caminho, num constante peregrinar. A sua vida foi assim uma vida marcada pelo sinal de Abraão: porque a História de Deus entre os homens, que é a história dos seus eleitos, começa com a ordem que o pai desta estirpe recebeu: Sai da tua terra para seres um estrangeiro (Gen 12,1; Heb 9,8ss). E por ter sido uma réplica da vida de Abraão, José aparece-nos como uma antevisão da existência do cristão. Podemos comprová-lo com particular vivacidade na primeira Carta de S. Pedro e na de Paulo aos Hebreus. Como cristãos que somos – dizem-nos os Apóstolos – devemos considerar-nos estrangeiros, peregrinos e hóspedes (1 Ped 1,17; 2,11; Heb 13,14): porque a nossa morada, ou como diz S. Paulo na sua Carta aos Filipenses, a nossa cidadania está nos Céus (Fil 3,20).

Outras pinturas sobre o mesmo tema: 'o sonho de José'

Hoje em dia, estas palavras sobre o Céu soam mal: porque tendemos a acreditar que afastar-nos de cumprir as nossas obrigações na terra nos aliena do nosso mundo. Tendemos a acreditar que a nossa vocação é somente fazer da Terra um Paraíso. Porém, acontece que na realidade, ao comportar-nos desse modo, o que estamos a fazer é precisamente destruir a Criação. Porque, no fundo, os anseios do homem apontam na direção do infinito. Daí que, hoje mais do que nunca, nos demos conta que unicamente Deus consegue saciar o homem por completo. Estamos feitos de tal forma, que as coisas finitas nos deixam sempre insatisfeitos, porque precisamos de muito mais: necessitamos do Amor inesgotável, da Verdade e da Beleza ilimitadas.

Embora esse anseio seja irreprimível, podemos retirá-lo dos nossos horizontes e procurarmos o infinito naquilo que não no-lo pode dar. Querendo ter o Céu já na terra, esperamos e exigimos tudo dela e da atual sociedade. Porém, na sua intenção de extrair do finito o infinito, o homem espezinha a terra e impossibilita uma ordenada convivência social com os outros, porque os vê como ameaça ou obstáculo. Somente quando aprendermos novamente a dirigir o nosso olhar para o Céu, brilhará também a terra em todo o seu esplendor. Só quando dermos vida às grandes esperanças dos nossos ânimos com a ideia de um eterno estar com Deus, e nos sentirmos novamente peregrinos a caminho da Eternidade, em vez de nos apegarmos a esta terra, só então os nossos anseios irradiarão para este mundo para que tenha também ele esperança e paz.

Por tudo isto, demos graças a Deus neste dia porque nos deu esse Santo, que nos fala de recolhimento com Ele; que nos ensina a prontidão e a obediência e a atitude dos caminhantes que se deixam dirigir por Deus; e que, por isso mesmo, nos diz a maneira de servir igualmente a nossa terra. Imploremos a graça para que, mostrando também nós vigilância e prontidão, sejamos um dia recebidos por Deus, que é o nosso autêntico destino de caminhantes.

(Homilia do então Cardeal Joseph Ratzinger, Roma, 19/03/1992)