sexta-feira, 10 de abril de 2015

ROSÁRIO DA ALMA SACERDOTAL (II)


TERCEIRO MISTÉRIO: FELIZ NOITE ... FELIZ MANHÃ

A santidade da noite de Belém rodeia os nossos altares, pois que o augusto sacrifício da Missa é o Natal perene do sacerdote. Ele enriquece o mundo, como Maria Santís­sima fez, com o Redentor; envolve-o nas faixas das espécies do pão e deposita este grande Deus sobre o pequenino corporal. A imaculada e sempre Virgem-Mãe no presépio, e o puro e piedoso ministro do Senhor no altar, têm diante de si a mais graciosa criança. Por isso abrem-se, depois da sagração, os horizontes e as pro­fundezas da bem aventurada noite de Natal. Ma­ria Santíssima deu à luz: milagrosamente, com fé viva, de noite — em alegria santa.

Milagrosamente: Fiat mihi secundum verbum tuum (Lc 1, 38). Assim Maria Santíssima falou; concebeu e deu à luz o Verbo. Fato idêntico jamais a história universal registrou, este foi um ver­dadeiro milagre. Um broto saiu da raiz, mas tão sobre­modo puro, tão pouco terreno, que a mãe permaneceu Virgem. O profundo mistério da consagração não é inferior em seu milagre, não é menos admirável. O que há de mais simples e de mais grandioso? Poucas palavras pronuncia o sacerdote, só um diminuto sussurro percebe o povo que está mais perto do altar, e — o Verbo se faz carne!

Quem poderia, com palavras humanas, descre­ver o que encerra em si de milagroso este úni­co momento da consagração?! Estupefata está a igreja diante do Santo altar, descansa seus olhos na pequenina hóstia e ora e reza e diz: Deus, qui... sub sacramen­to mirabili! De tempos em tempos medito porventura eu so­bre a consagração; aprofundo eu neste mistério divino; leio eu alguma coisa sobre estas matérias?

Com fé viva

A noite de Natal via um clarão esplendo­roso. Baixou do alto e espalhou-se no presépio e refletiu na lã nitente das ovelhinhas do campo. Mais clara e nitidamente cintilou a luz da fé na alma de Maria Santíssima. Silenciosa, ab­sorta na contemplação da criança, a Mãe de Deus está de joelhos ao pé do presépio. Os olhos de sua alma vêem a luz do mundo, Lux mundi. Nada a poderá desviar desta certeza: nem as pobres mantilhas, nem a pobreza do presépio, nem a hospitaleira gruta. Humildemente, em adoração, prostrada em terra permanece a mãe junto da criança, e sua alma engolfa-se na Divindade escondida debaixo da Humanidade.

Ó noite celestial, diga-me como devo eu celebrar a Santa Missa! Não com os olhos deste mundo, responde ela, estes se devem fechar, ou­tros se devem abrir, os olhos da fé!

Visus, tactus, gustus ni te fallitur
Sed auditu solo tuto creditur,
Credo quidguid dixit Dei Filius
Nil hoc verbo veritatis verius.

 
(do hino de São Tomás de Aquino)


Devo transformar-me num Credo, mas num Credo vivo. Ainda que pobre a igreja, rústico seu altar, simples seus ornatos: eu creio, creio profundamente!

De noite

Ao redor do presépio estendia-se a noite es­cura. Os homens dormiam, a escuridão espalhou suas espessas sombras por montes e vales; toda a natureza jazia envolta em trevas. Toda a redondeza, toda a Palestina parecia sub­mergida, desaparecida, varrida do orbe. Tudo isto, nem o mundo inteiro, tinha atrativo algum para Maria pois, mais que o mundo e todo o universo, jazia, diante dela, Aquele que tem em suas mãos tudo, todo o universo, ab­solutamente tudo. E a criancinha retinha presos todos os sentidos de Maria.

Se o mundo interior, o espírito de Deus, deve reinar; o exterior, o mundano, tem forçosamente que desaparecer. Isso sobretudo no altar. Em seu redor é noite; só ele é dia, que então vive nos belos pensamentos místicos, que estão escondi­dos nas cerimônias, que brotam das palavras da Sagrada Escritura, que circunvoluem misteriosamente o cálice e a hóstia.

Em alegria santa

Tocando as cordas de uma harpa, ela co­meça a cantar. A alma de Maria Santíssima era uma bem afinada e harmoniosa harpa. Santa Isabel conheceu as suas mais pro­fundas e mais recônditas cordas quando disse: Et unde hoc mihi ut veniat mater Domini mei ad me? — E donde a mim esta dita, que venha visitar-me a Mãe do meu Senhor? (Lc 1, 43).

E então a alma de Maria cantou aquele belo Magnificat, o cântico dos cânticos, o hino por excelência, o hino da santa alegria! Uma se­gunda vez, mão misteriosa moveu as cordas da harpa, esta vez foi na noite de Natal. Foram os anjos que tocaram a harpa. Gloria in excelsis Deo, cantaram eles e novamente comoveu-se o interior da Mãe de Jesus e soou um som di­vinal. Os pastores estavam ajoelhados ao lado de Maria, tomando carinhosamente parte; e a atitude filial, simples e piedosa desses homens a alegrou. Quem poderá agora descrever a sua alegria e o seu contentamento vendo e olhando o seu querido filho?

Deus, os anjos e os homens tornam-se objeto dum profundo, verdadeiro e santo júbilo para Maria. Também tons maravilhosos perpassam pela alma do sacerdote na digna celebração dos santos mistérios. Jesus no corporal, os anjos em profunda adoração em redor, o povo rezando aos pés dos altares, tudo isto inspira ao sa­cerdote sentimentos de piedade, fervor e devoção. Momentos deliciosos goza ele junto do altar, quando se preparou condignamente, Ele sente, caso viva do espírito da Igreja, um hálito do paraíso celeste, um ar do céu. São alegrias ín­timas, que mais se sentem, mas não se deixam descrever. Ó augusto sacrifício da missa, és tu que levantas a cortina que separa o céu da terra! Os poucos momentos da tua duração são um pedacinho da grande eternidade feliz!


QUARTO MISTÉRIO: RAIOS LUMINOSOS


Em cada celebração de missa acendem-se velas. Sempre parte do altar um raio de luz, visível aos olhos, quando é sacrificada a invisí­vel luz do mundo, escondida debaixo das espécies do pão. Igualmente brilha uma luz do sacrifício de Maria no templo. A fé a vê, e esta luz ilumina todo sacerdote de boa von­tade. 

Esta luz reflete o pomposo e augusto cerimonial do culto católico; esta luz abre o enigma da significação deste grandioso sacrifí­cio; esta luz revela o espírito de sacrifício que Deus requer do sacerdote na oblação incruenta do augusto mistério da cruz. Maria Santíssima ofertou: segundo as prescrições da lei — com perfeito conhecimento — no verdadeiro espírito de sacrifício.

Segundo as prescrições da lei

O israelita amava a sua lei, gostava de lê-la e meditá-la. Tinha ele até um cântico em seu louvor. Ora, Maria Santíssima era uma filha do povo, filha predileta dentre o povo e, por isso, tinha grande conceito da lei e a observava acima de tudo. As prescrições da visita ao templo, sobre as ofertas a fazer, so­bre os sacrifícios e imolações, tudo isso era sagrado para Ela. Do contrário, o que poderia movê-la a levar a criança, o recém-nascido Mes­sias ao templo? 

Ela não necessitava de purifi­cação e Jesus não precisava de ser remido; po­rém, Maria Santíssima, amava as prescrições do cerimonial e cumpria a Santa Lei. Por isso foi a Jerusalém e entregou a criança ao sacerdote, para que este a consagrasse ao Altíssimo. Não foi, porém, nem antes nem depois, senão no dia e na hora prescritos pela lei. Maria San­tíssima deixou vir o tempo da purificação; aí então entrou na casa de Deus, no templo, ofereceu a moeda estipulada e ofertou o seu primogênito ao céu.

O santo sacrifício da missa igualmente está regulado pela suave lei do cerimonial e ritual da Nova Aliança. O tempo do sacrifício é para o sacerdote tempo sagrado. Ele é pontual quan­to ao tempo; para o povo é indulgente; as cerimônias começam ao primeiro toque do sino ou do relógio. O seu porte e seus movimentos obedecem até no mínimo às prescrições eclesiásticas. O sacerdote celebra: rite, digne, attendo, devote [religiosamente, dignamente, presente, devotamente]. Cada inclinação é sagrada para ele; ele não conhece leviandade nas genuflexões, porte frívolo e apressado falar. O seu modo de di­zer é copiado dos modos de Maria Santíssima na oferta do templo; a missa do padre é como a oferta de Maria, nascida do amor pela lei.

Com perfeito conhecimento

Maria Santíssima sabia quem ela ofertava. Ainda lhe soava aos ouvidos a palavra do anjo: 'O santo que de ti há de nascer chamar-se-á filho do Altíssimo'; ela ainda contemplava o brilho e a luz ofuscante da noite de Belém, ain­da percebia as suaves melodias do Gloria in ex­celsis; agora porém adianta-se para ela um respeitável ancião, toma a criança em seus bra­ços e diz: 'Uma luz para iluminação dos gen­tios e uma glória para Israel, seu povo'. A mãe então mais profundamente contempla o gran­dioso plano da redenção. O Evangelho nos conta: 'Maria admirou-se'.

Novos conhecimentos abriram-se para ela. Si­meão, o venerando ancião, novamente falou, di­zendo: 'Este é posto para ruína e para ressurreição de muitos em Israel; um sinal que será contradito' (Lc 2, 34). Repleta destes altíssimos e proféticos co­nhecimentos, enriquecida por variadíssimas luzes celestiais, que ela já antes tinha da bendita criança, a ofertou deste modo, no templo, ao Pai Eterno.

O que eu levanto ao alto no augusto mo­mento da consagração? Cristo, a resplandecente luz das nações; ofereço pois o sacrifício da luz. Que levo nas minhas mãos? A glória do nosso povo; ofereço portanto um sacrifício de gló­ria. Que jaz sobre o corporal? Jesus, a ressurreição de muitos; ofereço então um sacrifício que suscita a ressurreição dos corações do sepulcro das paixões. 

Que está diante de mim sobre a pedra da ara [altar]? O sinal da contradição. Ofereço, pois, o sacrifício da expiação. Como isso res­plandece e ofusca gloriosamente o templo do antigo testamento em comparação do templo da nova aliança! Humildemente me abalo e caio de joelhos; meu Deus, ó grande Deus de misericórdia, com quão pouca atenção celebro diariamente vos­sos santos mistérios!

No verdadeiro espírito de sacrifício

A jornada de Maria Santíssima para Be­lém foi para ela um caminho cheio de agruras e dores; o caminho para Jerusalém, a sua ida ao templo, não foi melhor. Apenas a Mãe de Deus penetrou no templo, ouviu estas palavras. 'E uma espada trespassará sua alma, para que sejam revelados os pensamentos de muitos cora­ções'. Tu, Mãe Imaculada, hás de ver e inti­mamente sentir as dores de teu filho. Ela, porém ficou firme e inabalável. Resolvida a com­partir da paixão do seu filho Jesus, adiantou-se Maria Santíssima para o sacerdote e ofereceu, juntamente com o seu filhinho, todo seu próprio ser para a salvação do universo.

Ó coração magnânimo, cheio de tribu­lações e angústias, pronto para o horrível martírio da dor. Estes são e devem ser os verdadei­ros sentimentos do sacerdote no altar. Desperte­mos em nós estes sentimentos, antes de subirmos ao altar; que eles nos animem quando a passio mystica se desenrolar diante de nossos olhos. Sem esta prontidão para a luta, sem este amor para os sofrimentos, sem esta fortaleza espiritual pa­ra as dores, não teremos compreendido com­pletamente até às suas raízes a vida sacerdotal, nem conhecemos o sacrifício da santa missa no seu íntimo sentido.


QUINTO MISTÉRIO: PROCURANDO O DIVINO INFANTE...


A mulher do Evangelho dizia: 'Alegrai-vos comigo, pois achei a moeda que estava perdida' (Lc 15, 9). Por acaso Jesus não é mais do que ouro e prata? E Maria Santíssima achou o menino; o seu coração rejubilava, sal­tava de alegria, é certo, isso compreende-se facilmente. E a alma imortal do homem não é por acaso mais preciosa do que todos os tesouros deste mundo? 

O sacerdote acha esta alma, por tanto tempo perdida, no templo, no confessionário, no leito da morte, em habitações miseráveis, casebres e choupanas; então o olhar do sacerdote brilha. Aqui novamente se encontram a Mãe de Deus e o Ministro de Deus; a vida de um resplandece na existência do outro. Maria Santíssima, porém, achou o menino Jesus após dolorosa procura, depois de três dias, com o auxílio de São José, no tem­plo — a casa do Pai.

Após dolorosa procura

Sempre houve quem procurasse Jesus. Até Herodes mandou indagar a respeito do recém- nascido Messias; não o impeliu uma dor solícita, mas a inveja, a vingança e a sede de sangue. Podia fazer abstração da criança; mas seu trono lhe era mais caro do que o próprio Deus; Maria Santíssima, porém, tinha saudades do seu filho e o procurava com o coração amar­gurado. 'Eis que teu pai e eu te procurávamos cheios de dor'. Intimamente sentimos e certo sabemos que nunca, que jamais houve mãe que possuísse filho mais santo; e que nunca houve filho que possuísse mãe mais carinhosa. Ambos se conheceram e se perscrutaram intimamente, ambos se perderam. Isso era para Maria mais do que a perda da vida.

Cuidar das almas é aconchegar a si as crian­ças, ir ao encalço de paroquianos que andam transviados, procurar homens que se envereda­ram em caminhos escabrosos e se perderam. A tristeza pelas almas perdidas impele o sacer­dote a procurá-las. Com lágrimas nos olhos, ele vê a miséria da inocência perdida, con­templa tristonho o formoso lírio murchado; aí então faz penitência, ora, geme, padece por estas almas. 

Caminhos repletos de espinhos e cansaços não o aterrorizam desde que consiga con­verter o pobre filho transviado. Tremores o as­saltam ao pensar que estas almas talvez se per­cam eternamente e que baldados são todos os seus esforços. Ó bem-aventurada angústia do coração sacerdotal, como és nobre! Ó feliz momento, em que pecadores endurecidos e ove­lhas desgarradas voltam contritos aos braços de seu pastor!

Depois de três dias

Na jornada após a partida, após a jornada de um dia, Maria Santíssima percebeu a perda de seu grande tesouro. Mudo pairava o céu sobre o descanso noturno da caravana. A mãe angustiada procura junto dos parentes, mas inu­tilmente; procura junto dos amigos e conhe­cidos, mas sem fruto; ninguém dá notícia de Jesus, ninguém o descobre aí. Surge a manhã. Maria volta a Jerusalém, os muros e os cami­nhos não falam, nada dizem, nada revelam; os judeus não conhecem o menino. Novamente chega a tarde e depois sucede nova manhã com sua aurora encantadora. Enfim, no ter­ceiro dia, mãe e filho se encontram, e ei-los frente a frente.

Passam dias inteiros até que o sacerdote encontre a ovelha desgarrada, a ovelha perdida. Os dias muitas vezes prolongam-se em semanas, meses, anos até... Quantas vezes nasce e entra o sol e nada da ovelha! Apesar desses infor­túnios, o sacerdote não desanima, sem descanso nem trégua, segue ele a ovelha errante. Descanso despreocupado não conhece o pastor de almas; as horas que ele gasta em reconduzir ao bom caminho filhos e filhas espirituais emaranhados no erro, são as horas mais santas e mais felizes de toda a sua vida.

Com o auxilio de São José

O pai putativo de Jesus compartiu as dores e os trabalhos de Maria, a mãe sempre virgem. A perda era também dele; por isso cogitava, se afligia, orava, procurava com Maria. Ambos prestam-se mutuamente auxílio e força; por isso seus trabalhos foram coroados com feliz êxito. Quando dois ou três sacerdotes de comum acordo trabalham para o mesmo fim, Deus en­tão habita no meio deles. Unidos a Deus con­seguem muito. Deus conhece o caminho que con­duz a um fim glorioso, pois de Deus se diz 'Ca­minho' — Ego sum via — eu sou o caminho.

O que dá a força ao trabalho de sacerdotes reunidos é o seu trabalho entremeado de orações e virtudes. E se sacerdotes e leigos traba­lham conjuntamente segundo o mesmo plano, então floresce um belo e magnífico apostolado duplo: o pastor d’alma coadjuvado pelo apos­tolado leigo. Não parece isso com a pesca milagrosa, quando os Apóstolos lançaram as redes ao mar, sob a ordem do Divino Nazareno?

No templo

O templo dos judeus em Jerusalém era a fonte da vida religiosa em Israel. Aí os aflitos pais, Maria e José, encontraram a 'Fonte da vida e da santidade'. A voz interior, a piedade e recolhimento, a santidade e a majestade que reinavam no templo e nos pórticos, retinham o meditativo e recolhido menino. Onde resoavam os cânticos e louvores de seu Eterno Pai 'Javé', aí estava também o filho — Nesciebatis quia in his, quæ Patris mei sunt, oportet me esse? (Lc 2, 49).

Dominus in templo sancto suo (Sl 10, 14). Estupefatos e admirados, porém cheios de íntima alegria e grande júbilo, os pais descansam a vista naquele que acharam. Por acaso não são também horas encantadoras aquelas em que o sacerdote acha e encontra subidamente almas transviadas e pecadores endurecidos no seu confessionário? Não goza ele então momentos deliciosos, quando vê estas almas, logo após o seu banho salutar na mesa eucarística, celebrarem as núpcias espirituais com o Divino Redentor? Estas são ale­grias que o sacerdote experimenta no seu minis­tério, alegrias idênticas às alegrias de Maria e José — '...quia inveni drachmam, quam perdideram...' (Lc 15, 9).

(Excertos da obra 'A Pérola Preciosa', do Pe. Wendelin Meyer, trad. de Alberto Kolb)