terça-feira, 25 de junho de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (V)

 

40. Pode-se dizer que a humildade é o remédio mais eficaz para todos os males e o antídoto mais potente para preservar a alma da morte e da culpa que conduzem à perdição eterna. E, no entanto, é esta a virtude que mais negligenciamos. Ó minha alma, Deus, que deseja a tua salvação eterna, deseja também que a adquiras pela humildade: 'E a humildade precede a glória' [Pv 15,33], inclina-te, pois, e adora a sua soberana vontade. Quando rezamos o 'Pai Nosso', meditemos nessa petição, na qual pedimos que a Vontade de Deus seja feita, e apliquemos essa oração às nossas próprias necessidades: 'Ó meu Deus, já que desejas que eu seja humilde, seja feita a Tua Vontade'. A Tua vontade é feita no Céu por todos os espíritos bem-aventurados que te adoram com profunda humildade; que a tua vontade seja feita também por mim! 'Seja feita a vossa Vontade, assim na Terra como no Céu'. 

E, da mesma forma, apliquemos a última petição a nós mesmos, dizendo: 'E livrai-nos do mal', pedindo a Deus que nos livre e nos preserve do orgulho, que é o pior de todos os males, se é que não pode ser chamado o maior de todos os pecados; pois Santo Agostinho, perguntando de qual pecado o rei Davi mais desejava ser libertado quando disse: 'Serei purificado do maior pecado' [Sl 18,14] respondeu que esse pecado era a soberba, pois a soberba é o maior de todos os pecados, porque é a fonte de todos os pecados e a causa e a origem de todos eles: 'Isto eu tomo por soberba, que é o principal e a causa de todos os pecados' [Enarr. in Sl. 18].

41. Podemos dizer que uma das principais causas da nossa falta de humildade é o fato de nos esquecermos demasiado depressa dos pecados que cometemos. Só pensamos nos nossos pecados quando nos preparamos para a Confissão, e mesmo assim só pensamos nos nossos pecados para resumir o seu gênero e número, para fazer uma Confissão válida, mas quase nunca nos detemos a considerar a sua gravidade, enormidade e malícia. E mesmo que pensemos neles um pouco, é só para nos lisonjearmos de que a nossa dor é suficiente para a validade da nossa Confissão, e o que é ainda mais espantoso é que mal saímos do confessionário, a lembrança de todos os nossos pecados desaparece, e mesmo o maior pecador vive num estado de paz absoluta, como se tivesse sempre levado a mais inocente das vidas. Que estado miserável! Conservamos sempre viva a lembrança dos insultos que recebemos dos nossos semelhantes, alimentando assim o nosso ressentimento; mas não conservamos na memória os insultos que ofendemos a Deus, tornando-nos assim humildes e exortando-nos ao arrependimento. Não é de admirar que não nos tornemos humildes, se nos mantivermos alheios a estes estados urgentes de humildade!

Lembremo-nos dos nossos pecados, não para que eles nos tornem demasiado escrupulosos, mas para vivermos na devida humildade. É por essa mesma razão que o profeta Jeremias disse que aquele que não faz penitência não pratica a humildade, porque 'não há ninguém que diga: o que é que eu fiz?' [Jr 8,6]. Se pensássemos bem nisto: 'o que eu fiz': o que eu fiz ao pecar?; o que eu fiz ao ofender a Deus?; o nosso coração seria certamente muito mais contrito e humilde. Mas poucos pensam assim. Pedimos aos céus que se espantem conosco: 'Espantem-se, ó céus, com isto' [Jr 2,12]. Se um nobre é insultado em algum lugar público por um servo de baixa estirpe, a ofensa é considerada grande, e exige-se uma punição adequada para tal ultraje; e, no entanto, é apenas um homem que foi insultado por outro homem, um verme que foi ofendido por outro verme, o nada ofendido pelo nada. Mas o fato de este verme, este nada, insultar a majestade divina de Deus não causa, aparentemente, qualquer espanto. 'Admirai-vos, ó céus', mas que, pelo menos, possamos nos prostrar envergonhados e humilhados pela nossa insensata dureza de coração.

42. Há duas virtudes especiais que o Filho de Deus quis ensinar-nos e recomendou-nos com toda a veemência que praticássemos: a humildade e o amor fraterno; e é precisamente contra essas duas virtudes que o demônio mais peleja. Mas basta que ele consiga vencer a humildade para que o amor seja vencido ao mesmo tempo, porque, como diz Santo Agostinho: 'Não se pode chegar à caridade senão pela humildade' [Enarr. in Sl 130, et serm. 10 de Verb. Dom.]. O orgulho está sempre pronto a ofender-se; e com esta disposição para se ressentir das injúrias e das ofensas, como é possível viver na caridade? Quando encontramos duas pessoas que são propensas a discordar, e para as quais a reconciliação é difícil, não estamos muito equivocados em concluir que ambas estão cheias de orgulho. Por conseguinte, é evidente que a caridade não pode existir sem a humildade. 

É por isso que São Paulo, depois de ter exortado os cristãos ao amor fraterno, aconselha-os ao mesmo tempo a serem humildes: 'Mas, na humildade, cada um considere os outros superiores a si mesmo' [Fp 2, 3], pois bem sabia ele que o amor fraterno não pode subsistir sem a humildade; porque, onde existe a soberba, surgem também as contendas, as disputas e as rixas: 'Entre os soberbos há sempre contendas' [Pv 13,10]. Aceitemos a admoestação apostólica e não culpemos os outros pelo seu orgulho quando nos causam desgosto, mas culpemo-nos a nós próprios por não sabermos suportar esse desgosto com humildade. Comecemos por adquirir nós mesmos essa humildade paciente que tanto desejamos ver nos outros, lembrando-nos de que não é pela paciência e humildade dos outros que seremos salvos, mas pela nossa própria paciência e humildade.

43. É difícil para os que possuem riquezas ou conhecimentos serem humildes, porque esses dois dons são capazes de causar vaidade naqueles que os possuem. Portanto, é muito melhor ser menos rico e menos instruído e ser humilde, do que possuir grandes riquezas ou grande instrução e ser orgulhoso. No entanto, muitos dos que agora são santos no Céu eram ricos e instruídos quando estavam na Terra; mas são santos porque eram humildes; e tanto as riquezas como a instrução devem ser consideradas vaidades que não devem ser estimadas, exceto na medida em que nos possam ajudar a obter a felicidade eterna. Este é o caminho do verdadeiro humilde; ele não se estima por suas posses ou por seu conhecimento, mas considera tudo isso como nada, porque ele se considera também como nada.

'Não ponhas [nas riquezas] o teu coração' [Sl 61,11]. Isso não é um conselho, mas um preceito; e Deus, por meio do seu profeta, deseja nos instruir. Se fordes ricos em bens ou em conhecimentos, sede, contudo, pobres de coração, isto é, sede humildes. Isso é difícil, é verdade; mas vencer a dificuldade aumenta o mérito da virtude. Não há grande mérito em ser humilde quando a nossa condição é humilde, mas há grande mérito em ser humilde quando estamos rodeados de incentivos à soberba, que são a riqueza e o saber. São Bernardo diz: 'Não é grande coisa para um homem ser humilde no opróbrio mas, para aquele que é honrado, a humildade é uma virtude grande e rara' [Hom. iv super 'Missus est']. É uma bela visão para os homens e para os anjos ver um homem rico que é modesto e aparentemente esquecido de sua riqueza, e um homem sábio que parece não estar ciente ou condescendente com o seu grande conhecimento.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)