quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

SERMÃO SOBRE A CEGUEIRA


Ó quem me dera ter agora neste auditório o mundo inteiro! Quem me dera que me ouvisse agora a Espanha, que me ouvisse a França, que me ouvisse a Alemanha, que me ouvisse a própria Roma! Príncipes, reis, imperadores e monarcas do mundo, vede a ruína dos vossos reinos, vede as aflições e misérias dos vossos vassalos, vede as violências, vede as opressões, vede os tributos, vede as pobrezas, vede as fomes, vede as guerras, vede as mortes, vede os cativeiros, vede a assolação de tudo? Ou vedes ou não vedes. Se o vedes, como não o remediais? E se não o remediais, como vedes? Estais cegos. 

Príncipes eclesiásticos, grandes, maiores, supremos e vós, ó prelados que estais em seu lugar, vede as calamidades universais e particulares da Igreja, vede os destroços da Fé, vede o decaimento da Religião, vede o desprezo das Leis Divinas, vede a irreverência dos lugares sagrados, vede o abuso dos costumes, vede os pecados públicos, vede os escândalos, vede as simonias, vede os sacrilégios, vede a falta de doutrina sã, vede a condenação e a perda de tantas almas dentro e fora da Cristandade? Ou vedes ou não vedes. Se o vedes, como não o remediais? E se não o remediais, como vedes? Estais cegos. 

Ministros da república, da justiça, da guerra, do estado, do mar e da terra, vede as obrigações que se descarregam sobre o vosso cuidado, vede o peso que carrega sobre vossas consciências, vede as desatenções do governo, vede as injustiças, vede os roubos, vede os descaminhos, vede as maquinações, vede as dilações, vede os subornos, vede os respeitos, vede as potências dos grandes e as vexações dos pequenos, vede as lágrimas dos pobres, vede os clamores e gemidos de todos. Ou vedes ou não vedes. Se o vedes, como não o remediais? E se não o remediais, como vedes? Estais cegos. 

Pais de família, que tendes casa, mulher, filhos e criados, vede o desconcerto e o descaminho das vossas famílias, vede a vaidade da mulher, vede o pouco recolhimento das filhas, vede a liberdade e más companhias dos filhos, vede a soltura e descomedimento dos criados, vede como vivem, vede o que fazem e o que se atrevem a fazer, fiados muitas vezes na vossa dissimulação, no vosso consentimento e na sombra do vosso poder? Ou vedes ou não vedes. Se o vedes, como não o remediais? E se não o remediais, como vedes? Estais cegos. 

Finalmente, homem cristão, de qualquer estado e de qualquer condição que seja, vede a Fé e o caráter que recebestes no Batismo, vede a obrigação da Lei que professais, vede o estado em que viveis há tantos anos, vede os encargos da vossa consciência, vede as restituições que deveis, vede a ocasião da qual não vos apartais, vede o perigo da vossa alma e de vossa salvação, vede que estais atualmente em pecado mortal, vede que se vos tomais a morte nesse estado, vos condenais sem remédio; vede que se vos condenais, haveis de arder no inferno enquanto Deus for Deus e que haveis de carecer do mesmo Deus por toda a eternidade. Ou vemos tudo isto, cristãos, ou não o vemos. Se não vemos, como somos tão cegos? E se o vemos, como não o remediamos? 

Fazemos conta de remediar tudo isso alguma hora, mas quando há de ser esta hora? Ninguém haverá tão ímpio, tão bárbaro, tão blasfemo, que diga que não. Pois se o havemos de remediar alguma hora, quando há de ser esta hora? Na hora da morte? Na última velhice? Essa é a conta que lhe fizeram todos os que estão no inferno, e lá estão, e lá estarão para sempre. E será bem que façamos nós também a mesma conta e que nos vamos após eles? Não, não, não queiramos tanto mal a nossa alma. Pois se algum dia há de ser, se algum dia havemos de abrir os olhos, se algum dia nos havemos de resolver, porque não será hoje este dia?

Ah Senhor, pois que não quero persuadir aos homens e nem a mim (pois somos tão cegos), a Vós me quero volver. Não olheis, Senhor, para as nossas cegueiras; lembrai-Vos dos Vossos olhos, lembrai-Vos do que eles fizeram hoje em Jerusalém. Ao menos um cego saia hoje daqui iluminado. Ponde em nós esses olhos piedosos; ponde em nós esses olhos misericordiosos; ponde em nós esses olhos onipotentes. Penetrai e abrandai com eles a dureza destes corações: rasgai e alumiai a cegueira destes olhos para que vejam o estado miserável de suas almas; para que vejam quanto lhes merece essa Cruz e essas Chagas e para que, lançando-nos todos aos Vossos pés, como hoje fez o cego, arrependidos e com uma firmíssima resolução de nos afastar de nossos pecados, nos façamos dignos de ser iluminados com a Vossa Graça e, assim, Vos ver eternamente na Glória.

Excertos do 'Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma', do Pe. Antônio Vieira, 1669)