II
Os cristãos primitivos da Igreja faziam o Sinal da Cruz, faziam-no bem e o faziam muitas vezes. No Oriente como no Ocidente, em Jerusalém, em Atenas, em Roma, os homens e as mulheres, os mancebos e os velhos, os ricos e os pobres, os padres e os simples fieis, todas as classes da sociedade, observavam religiosamente este uso tradicional.
A história não oferece fato que seja mais certo. Todos os Padres da. Igreja, como testemunhas ocuIares, o dizem e todos os historiadores o certificam. Em nome de todos, escuta agora só um — Tertuliano: ' A cada movimento e a cada passo, ao vestir e ao calçar, ao entrar e ao sair de casa, ao lavar, ao assentar-se à mesa, ao acender as luzes, ao deitar e ao levantar, qualquer que seja o ato que pratiquemos ou o lugar onde vamos, sempre marcamos nossa fronte com o Sinal da Cruz'. Eis o que está bem claro e é muito certo: nossos avós, de um lado ou de outro, a cada instante faziam o Sinal da Cruz.
Sim. Não só eles o faziam sobre a fronte, mas, a cada passo, também na boca, sobra os olhos e no peito [Santo Efrém, Sermão sobre a Cruz]. Daqui resulta que, se os primeiros cristãos reaparecendo hoje nos lugares públicos ou em nossas casas, fizessem o que faziam há dezoito séculos, seriam tomados por loucos. E', pois, muito verdade que, a respeito do Sinal da Cruz, os cristãos modernos estão sendo uns antípodas dos primeiros cristãos.
A Verdade é uma só; e a razão só pode estar de um lado: ou a razão está com os cristãos de agora ou há de estar com os primitivos cristãos. Se a razão estiver com os de agora, então os antigos não se justificam e por isso não passaram de uns néscios. Se os primeiros cristãos tinham razão e motivos bastantes para se justificar, os cristãos modernos é que estão errados. Não há meio termo. A razão estará com quem? Questão grave; muito grave.
Os primeiros cristãos viram os Apóstolos e os Homens Apostólicos; trataram e ouviram com eles.
Deles receberam a Fé e por eles foram batizados.
Foi, portanto, nas fontes da Verdade que eles beberam.
Da Doutrina Apostólica, a quem tudo deviam, é que
nutriam o Espírito; dela faziam a regra das próprias
ações e com inviolável fidelidade a observavam: perseverantes in doctrina apostolorum. Nunca ninguém esteve em melhores condições do que
eles para conhecer o pensamento dos Apóstolos sobre a
Doutrina de Nosso Senhor.
Se, pois, os primeiros cristãos faziam o Sinal da
Cruz a cada instante, é forçoso concluir que eles obedeciam a uma recomendação apostólica.
Não só os primeiros cristãos eram muito instruídos
na Doutrina dos Apóstolos; mas, também muito fieis em
praticá-la.
Disto é prova serem muitos os santos daquele tempo.
Não há verdade melhor estabelecida do que a
seguinte: a santidade era o caráter comum dos primeiros cristãos. Eles preferiam perder tudo — a liberdade, os
bens, o bom nome e a própria vida, em meio dos piores suplícios, antes de que ofender a Deus.
Foi um heroísmo que durou tento como as perseguições: três séculos. Eram muito caridosos. O Céu e a terra se uniram para elogiar-lhes o mútuo
amor verdadeiro que os unia, único nos anais do mundo.
Constituíam um só coração e uma só alma: Cor unum et anima una — diz deles o próprio Deus nas Escrituras.
Eram ternos e respeitosos para com os Apóstolos, aos quais obedeciam com submissão filial.
São Paulo, que não era adulador, escreve aos cristãos de Roma: 'É célebre no mundo inteiro a vossa Fé'. A meu ver, essa santidade constitui a mais poderosa circunstância a favor do Sinal da Cruz.
Quando homens daquele caráter, diante da morte, mostram-se invariavelmente fieis a um dado uso, é necessário crer que tal uso é um pouco mais importante do
que julgam os cristãos de agora.
Muito cedo, tanto no Oriente como no Ocidente, se
formaram comunidades religiosas de homens e de mulheres, que perpetuaram, com a
maior fidelidade, o verdadeiro espírito do Evangelho e a
pura tradição do ensino apostólico.
Entre os antigos usos, conservados com zelo e cuidado, figura o Sinal da Cruz. Todos os grandes homens que, durante mais de quinhentos anos, se sucederam no Oriente e no Ocidente, aqueles gênios incomparáveis que se chamam os Pais da
Igreja — Tertuliano, Cipriano, Atanásio, Gregório, Basílio, Agostinho, Crisóstomo, Jerônimo, Ambrósio e tantos outros, cuja lista espantosa com o seu peso esmaga o
orgulho dos séculos —
todas estas elevadas inteligências faziam muito assiduamente o Sinal da Cruz e o recomendavam com insistência a todos os cristãos que o fizessem em qualquer
ocasião.
(Excertos adaptados da obra 'O Sinal da Cruz', do Monsenhor Gaume, 1862)