quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

CARTAS A MEU PAI (IV)

Pai:

Há muitos de nós que perderam o caminho; seguem suas vidas moldadas pelas dimensões do tempo e do mundo dos homens, sem estranhamento algum em relação às questões que realmente importam, da salvação e da eternidade. Numa discussão hoje cedo na universidade, um sustentou acaloradamente que Vós sois uma miragem e um espectro intangível da capacidade humana de encontrar culpados para todas as suas faltas e ações. Outro julgou 'pertinente' que o senhor possa existir, conquanto não tenha nenhuma influência sobre a vida de ninguém. Um terceiro admitiu que deus possa ser algo menos que uma obra de imaginação, mas que os 'deuses' de tantos podem passar perfeitamente bem alheios aos que não os evocam. No meio daquela gente, alguém ousou lembrar dos passos do Vosso Filho, da obra de redenção nascida do Calvário. Em vão. O argumento preferido nestas plagas é que todas as religiões são intrinsecamente ruins, e que Deus não passa de uma grande quimera.

Foi o momento em que vi, pela primeira vez na vida e de forma tão contundente, os chamados anjos recolhidos. Sim, os anjos da guarda deles estavam recolhidos, mantidos a uma relativa distância dos homens de ciência e de tão pouca fé, e não se moviam nem exalavam brilho especial, juntados em um pequeno círculo circunspecto, pesarosos do encontro, como que vergastados pelas palavras profanas, pela insensatez dos que diluem no próprio pecado os pecados de todos, sempre uma vez mais. Eu já havia visto muitos anjos da guarda de muitas pessoas, alguns mesmo prostrados pelo pecado de algum. Mas a imagem dos anjos recolhidos chocou-me, Pai, pois, ainda que eles não abandonem nunca aqueles que nasceram para o seu zelo e proteção, eles também, de alguma forma, padecem a dor da criação inteira por um só pecado e, muito mais profundamente, daqueles que negam o próprio Criador.

Ah quanta coisa não se saberá no outro mundo...quando, enfim, os olhos se abrirão para as verdades definitivas e incomensuráveis de Deus, de uma forma infinitamente mais clara e brilhante que a minha visão de agora, por especial privilégio de Vossa graça. Como ansiei me intrometer naquela conversa e abrir-lhes o coração diante de tanta rudeza e perda de fé. Mas o livre arbítrio é fruto da Vossa Santa Vontade e não da minha inquietude humana. E o grupo se dispersou em seguida para as suas tarefas diárias; se ao menos soubessem que as suas palavras foram escritas a fogo no livro dos mortos e ai deles se tiverem que prestar conta delas por toda a eternidade. A imagem dos anjos recolhidos se diluiu e cada qual tomou o rumo dos passos de cada um.

A imagem ficou e ainda continua comigo até o final desse dia, Pai, como que marcando e assinalando todos os meus passos. Que a Vossa infinita misericórdia possa tornar um dia estes homens dignos de Vossa Presença, sob a tutela de anjos zelosos e sempre de pé. E eu, Senhor, Vos prometo que, esteja em quaisquer grupos de pessoas, mais ou menos numerosos, minhas palavras estarão sempre atentas sob o jugo suave de Vossa Santa Lei e, nunca, nunca mesmo, permitirei que anjos recolhidos tenham que ficar debruçados diante de nós, vergados pelo lastro doloso de nossas palavras. Que Nossa Senhora da Imaculada Conceição me sustente e referende por toda a minha vida esse santo propósito de vida interior. Amém. 

E isso é tudo por hoje, na vida de um filho vosso no meio do mundo. Boa noite, Pai. Com a vossa bênção, R.

('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).