quarta-feira, 14 de setembro de 2016

14 DE SETEMBRO - EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ


'Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim' (Jo 12, 32)

A festa da Exaltação da Santa Cruz, tem origem na descoberta do Sagrado Lenho por Santa Helena, mãe do imperador Constantino, e na dedicação de duas basílicas construídas por ele, uma no Calvário e outra no Santo Sepulcro, dedicação esta realizada no dia 14 de setembro de 335. No ano de 629, a celebração tomou grande vulto com a restituição da Santa Cruz pelo imperador Heráclio, retomada dos persas que a haviam furtado. Levada às costas pelo próprio imperador, de Tiberíades até Jerusalém, a Santa Cruz foi entregue, então, ao Patriarca Zacarias de Jerusalém.


O imperador Constantino e sua mãe, Santa Helena, veneram a Santa Cruz 

Conta-se, então, que o imperador Heráclio, coberto de ornamentos de ouro e pedrarias, não conseguia passar com a cruz pela porta que conduzia até o Calvário; quanto mais se esforçava nesse sentido, mais parecia ficar retido no mesmo lugar. Zacarias, diante desse fato, ponderou ao imperador que a sua ornamentação luxuosa não refletia a humildade de Cristo. Despojado, então, da vestimenta, e com pés descalços, o imperador completou sem dificuldades o trajeto final, encimando no lugar próprio a Cruz no Calvário, de onde tinha sido retirada pelos persas.

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo converteu a Cruz de um objeto de infâmia e repulsa na glória maior da fé cristã. A Festa da Exaltação da Cruz celebra, portanto, o triunfo de Jesus Cristo sobre o mundo e a imprimação do Evangelho no coração de toda a humanidade.

SALVE CRUX SANCTA

Salve, crux sancta, salve mundi gloria,
vera spes nostra, vera ferens gaudia,
signum salutis, salus in periculis,
vitale lignum vitam portans omnium.

Te adorandam, te crucem vivificam,
in te redempti, dulce decus sæculi,
semper laudamus, semper tibi canimus,
per lignum servi, per te, lignum, liberi.

Originale crimen necans in cruce
nos a privatis Christe, munda maculis, 
humanitatem miseratus fragilem 
per crucem sanctam lapsis dona veniam.

Protege salva benedic sanctifica 
populum cunctum crucis per signaculum, 
morbos averte corporis et animae 
hoc contra signum nullum stet periculum.

Sit Deo Patri laus in cruce filii 
sit coequalis laus sancto spiritui, 
civibus summis gaudium et angelis 
honor sit mundo crucis exaltatio. Amen.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

REFUTAÇÃO A TRÊS HERESIAS CONTRA A SANTÍSSIMA TRINDADE


Não é somente necessário crer que existe um só Deus, e que Ele é criador do céu, da terra e de todas as coisas, mas também que Deus é Pai e Jesus Cristo é seu verdadeiro Filho. O próprio Jesus Cristo muitas vezes chama a Deus como seu Pai e, também, denomina-se Filho de Deus. Os Apóstolos e os Santos Padres colocaram entre os artigos de fé que Jesus Cristo é Filho de Deus quando definiram o segundo artigo do Creio: 'E em Jesus Cristo seu Filho', isto é, Filho de Deus. Mas existiram alguns heréticos que acreditaram de um modo perverso nessa verdade de fé. Três deles são:

1. Fotino declarou que Cristo não é filho de Deus senão como os outros homens o são, os quais, por viverem bem, merecem ser chamados filhos de Deus por adoção, enquanto fazem a vontade de Deus. Do mesmo modo, segundo ele, Cristo, que viveu bem fazendo a vontade de Deus, mereceu ser chamado filho de Deus. Daí que Cristo não existiria antes da Virgem Maria, mas que só começou a existir quando foi concebido, como sucede com todos outros homens.

Cometeu Fotino dois erros: um, porque não disse que Ele era Filho de Deus segundo a natureza; outro porque disse que Ele começou a existir no certo momento, enquanto nossa fé afirma que Ele é por natureza Filho de Deus e eterno. Contra o primeiro erro, declara a Escritura que Jesus Cristo não só é Filho de Deus, mas também Filho Unigênito: 'O Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o revelou' (Jo 1,18). Contra o segundo, lê-se: 'Antes de Abraão existir, eu já existia' (Jo 8, 58). Ora, é certo que Abraão existiu antes de Maria. Por este motivo, os Santos Padres acrescentaram no Credo Niceno-Constantinopolitano contra o primeiro erro 'Filho de Deus Unigênito' e, contra o segundo, 'gerado do Pai antes de todos os séculos'.

2. Sabélio, embora tivesse dito que Cristo existiu antes da Virgem Maria, afirmou que a pessoa do Filho era também a figura do Pai e que o próprio Pai se encarnou. Isso é um erro porque destrói a ideia da Santíssima Trindade. Contra este erro, temos as palavras do próprio Cristo: 'Eu não sou Eu só, sou Eu e o Pai que me enviou' (Jo 8, 16). É evidente que ninguém pode ser enviado por si mesmo. Eis porque Sabélio errou. Acrescentou-se por isso, no Credo: 'Deus de Deus, luz de luz', isto é Deus Filho de Deus Pai; Filho que é luz, luz que procede do Pai, que também é luz. 

3. Ário, embora tivesse afirmado que Cristo existira antes da Virgem Maria e que era uma a Pessoa do Pai, outra a do Filho, cometeu três erros ao falar de Cristo: primeiro, que Cristo foi criatura; segundo, que Ele foi feito por Deus como a mais nobre das criaturas quando concebido, não existindo desde a eternidade; terceiro, que não havia uma só natureza de Deus Filho com Deus Pai e, por esse motivo, Cristo não era verdadeiro Deus. 

Lê-se no Evangelho de São João: 'Eu e o Pai somos um' (Jo 10, 30), isto é, pela natureza. Ora, como o Pai sempre existiu, do mesmo modo Cristo sempre existiu; como o Pai é verdadeiro Deus, o Filho também é verdadeiro Deus. Em oposição às afirmações de Ário, está acrescentado no Credo 'gerado, não feito' e 'consubstancial com o Pai'.

('Sermão sobre o Credo', de São Tomás de Aquino)

O CÉU É AQUI...

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

GLÓRIAS DE MARIA: O SANTÍSSIMO NOME DE MARIA


A Festa do Santíssimo Nome de Maria é celebrada pela Igreja Católica no dia 12 de setembro. Inicialmente a festa do Santíssimo Nome de Maria era apenas realizada em Cuenca, na Espanha, comemorada no dia 15 de setembro, quando foi instituída em 1513. Posteriormente, em 1671, a festa foi estendida para toda a Espanha. Após a vitória dos cristãos sobre os turcos na Batalha de Viena em 1683, a festa foi estendida a toda a cristandade pelo Papa Inocêncio XI. 

A origem etimológica do nome Maria é incerta, podendo ter raiz no vocábulo egípcio mry que significa 'amada', na palavra siríaca que designa 'senhora' ou, mais provavelmente, da raiz hebraica מִרְיָם (Miryam), que se traduz como 'excelsa', entre vários outros significados, e que deu origem aos nomes gregos Μαριαμ (Mariam) e Μαρια (Maria) - ambas as grafias são equivalentes - transcritas no Novo Testamento. Ao ser incorporado à Mãe de Deus, porém, deixou de ser apenas um nome, e passou a ser o mais bendito dos nomes e o nome de todas as virtudes. Quando tudo o mais parecer perdido, invoque, proclame, suplique o santo nome de Maria.

Na dor,
na adversidade,
nos perigos,
nos contratempos,
na angústia,
na doença,
nas aflições,
no sofrimento,
no medo,
nas dúvidas,
nas tribulações,
na amargura,
na ansiedade,
no abandono,
no desespero,

chame, invoque, proclame o BENDITO NOME DE MARIA.


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O NOME DA VIRGEM ERA MARIA

Maria. O anjo Gabriel, ao saudar Nossa Senhora, não a chama imediatamente pelo nome, evidentemente temendo surpreender por tamanha familiaridade vinda de um visitante desconhecido. Contudo em seguida diz: 'Não temas, Maria' (Lc 1, 30). São Lucas não espera o fim do diálogo para informar, o evangelista parece impaciente em fornecer seu nome, logo no início diz: 'o nome da virgem era Maria' (Lc 1, 27).

Quem não fica feliz em repetir com frequência o nome de um ente querido? Recordar o nome provoca um sentimento de presença da pessoa ausente. É muita estu­pidez criticar os católicos por venerar o nome de Maria. A Igreja aprovou tal prática; no século XVI instituiu uma festa em honra deste nome bendito. O costume é muito antigo, anterior ao Cristianismo. No Antigo Testamento, era habi­tual usar nome para se referir à própria pessoa e nos salmos encontramos muitos exemplos. Nosso Senhor ensinou a rezar: 'Santificado seja o teu nome'. O apóstolo São Pedro proclama que o nome de Jesus é o único que pode salvar: 'Em nenhum outro há salvação, porque debaixo do céu ­nhum outro nome foi dado aos homens' (At 4,12). Eviden­temente que se refere à pessoa do Salvador.

A leitura da Bíblia leva a uma outra consideração. Observa­mos que os nomes também indicam características das pes­soas. Eva significa mãe dos viventes; Deus muda o nome de Jacó para Israel, que significa mais forte que Deus. Por ordem divina, o precursor do Senhor deverá receber o nome de João, que significa Deus foi favorável. José recebe a ordem de colocar no menino o nome de Jesus, que significa Deus salva.

Joaquim e Ana escolheram chamar a filha de Mariam, nome muito comum naquele tempo. Pela providência podemos acreditar que o nome escolhido foi de inspiração divina. Um excelente autor espiritual escreveu: 'Somente Deus podia escolher um nome para sua mãe. Como no batismo, quando a criança é nomeada em voz alta é gerada para a vida da graça, assim também aconte­ceu no instante em que Deus criou a alma da Virgem San­tíssima, a augusta Trindade nomeou Maria em voz alta diante do coro dos anjos. Deus já havia nomeado-a desde a eternidade. Para Deus, conceber ou nomear é a mesma coisa'. O padre Broise concorda com a ideia: 'Vemos muitos exemplos na Escritura em que Deus nomeia seus servidores, então podemos piamente acreditar que o nome de sua mãe não foi escolhido aleatoriamente ou por vontade humana'

O nome é pouco utilizado na história antiga de Israel. Na forma mais primitiva o nome Myriam é encontrado ape­nas na irmã de Moisés. Seria de origem egípcia, e significaria Amada de Deus. Na pronúncia Mariam, tanto no aramaico como no sírio tem vários significados. Um sábio jesuíta ale­mão recorreu pacientemente a todas as etimologias que se derivaram da palavra e encontrou 67 variações. As inter­pretações comumente aceitas harmonizam-se com a mis­são da Santíssima Virgem. 

No aramaico primitivo Mariam significa a iluminadora, que procede do invisível. Mariam evoca também a ideia de amargura. O sentido seria: amar­go, mirra. A tradução proposta por São Jerônimo teve muita receptividade: gota do mar. Depois Stilla marís (gota do mar) se transformou em Stella maris (estrela do mar) por um erro de copista ou porque os camponeses romanos pronunciavam as vezes desta forma. A ligeira confusão valeu um dos títulos mais clássicos da piedade mariana e um dos hinos mais belos Ave maris stella, composto por São Bernardo.

Outra tradução seria soberana, princesa, senhora. Este último é o mais utilizado pela tradição cristã. Jesus é Nosso Senhor, Maria é Nossa Senhora. As explicações do nome de Mariam correspondem aos mistérios do Rosário, colocando em destaque as três principais funções que Deus confiou a Maria. Nos cinco mistérios gozosos, Maria aparece como a iluminadora de uma terra pecadora. Nela, o Verbo, luz dos homens, se encarnou; através dela santifica João Batista; então, no meio da noite, a luz se levanta sobre o mundo; depois, Maria apresenta no Templo aquele que deve ilu­minar todos os povos. A primeira parte da missão esta concluída: Jesus agora deve dedicar-se aos assuntos do Pai. Passam-se os anos. Voltamos a encontrar Maria traspassada pela espada da dor, associando-se ao sacrifício de Nosso Redentor. A dor é a gota mais amarga do cálice que Jesus recebe no Getsêmani e que oferece na cruz pela redenção da humanidade.

Porém seu Filho não podia permanecer cativo da morte. Na Igreja nascente, que canta a glória do ressus­citado, Nossa Senhora reza com os discípulos, que aguar­dam a descida do Espírito Santo. Então, devolve a Deus o Filho que havia lhe sido confiado; em breve, como Rainha do Céu, compartilhará ao seu lado o triunfo, intercedendo por cada um de nós. Ave Maria. Que seu nome seja nossa luz quando a dúvida envolve e a tentação ataca! Que a recordação da paixão do calvário alivie as dores, quando estamos deses­perados! Devemos invocar o nome de Maria em nossas an­gústias, porque ela é nossa soberana protetora. No caminhar de cada dia, elevemos o olhar para a Estrela do Mar.

'Quando se levantam os ventos das tentações, quando se tropeça nas pedras da tribulação, olhe para a estrela e chame por Maria. Quando se agitam as ondas da soberba, da ambição e da inveja, olhe para a estrela e chame por Maria. Quando a ira, a avareza e a impureza assaltam violentamente a alma, olhe para Maria. Quando perturbado pela memória dos pecados, confuso pela fealdade da consciência, temeroso pela ideia do Juízo, mergulhado no abismo do desespero, pense em Maria, invoque Maria. Nunca afaste Maria dos lábios e do coração; nunca se afaste dos exemplos e das virtudes de Nossa Senhora. Não se extravia quem a segue, não se desespera quem pede sua ajuda, não se perde quem pensa nela. Ninguém cai quando está segurando a mão de Maria. Quando se está sob a proteção da Virgem Santíssima, nada se pode temer. Não se cansa quem a tem por guia; quem é amparado por ela chega felizmente ao porto seguro. Assim se compreende pela própria experiência o que foi escrito: o nome da virgem era Maria' (São Bernardo de Claraval)

(Excertos da obra ' Ave Maria: história e meditação', de Georges Chevrot)

domingo, 11 de setembro de 2016

PAI DE MISERICÓRDIA

Páginas do Evangelho - Vigésimo Quarto Domingo do Tempo Comum 


Neste Domingo, três parábolas de Jesus nos falam do perdão e da misericórdia, numa das páginas mais belas dos Evangelhos, que inclui a parábola do filho pródigo. Que poderia muito bem ser a parábola da verdadeira conversão. Ou, com muito mais correção e sentido espiritual, a parábola do pai de misericórdia. Três personagens: o filho mais velho e o filho mais novo que, em meio às dolorosas experiências da vida humana, se reencontram no grande abraço da misericórdia do pai.

Com a parte da herança que lhe cabe, o 'filho mais novo' opta pelo caminho fácil e tortuoso dos prazeres e vícios humanos, dos instintos insaciados, do vazio do mal. E esbanja, na via dolorosa do pecado, os bens que possuía: a alma pura, o coração sincero, os nobres sentimentos, a fortuna da graça. E, a cada passo, se afunda mais e mais no lodo das paixões humanas desregradas, da vida consumida no nada. Mas, eis que chega o tempo da reflexão madura, da conversão sincera, do caminho de volta ao Pai: 'Pequei contra ti; já não mereço ser chamado teu filho' (Lc 15, 18-19). 

O pai nem ouve as palavras do filho pródigo; no abraço da volta, somente ecoa pelos tempos a misericórdia de Deus: 'Haverá maior alegria no Céu por um pecador que fizer penitência que por noventa e nove justos que não necessitem de arrependimento' (Lc 15, 7). Diante do filho que volta, um coração de misericórdia aniquila a justiça da razão: 'Trazei depressa a melhor túnica para vestir o meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés.' (Lc, 15, 22). Como as talhas de água que se tornam vinho, a conversão verdadeira apaga e aniquila o mal desejado e consumido outrora: na reconciliação de agora desfaz-se em pó as misérias passadas de uma vida de pecado.

O 'filho mais velho' não se move por igual misericórdia e se atém aos limites difusos da justiça humana. Na impossibilidade absoluta de compreender o júbilo do pai com o filho que volta, faz-se vítima e refém da soberba e do orgulho humano: 'tu nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos' (Lc, 15,29). O filho mais novo, que estava tão longe, está lá dentro outra vez. E o filho mais velho, que sempre lá esteve, recusa-se agora a entrar na casa do pai. Tal como no caso do primeiro filho, o pai de misericórdia vem, mais uma vez, buscar a ovelha desgarrada no filho mais velho que está fora e não quer entrar. Porque Deus, pura misericórdia, quer salvar a todos os seus pobres filhos afastados de casa e espera, com paciência e amor infinitos, a volta dos filhos pródigos e a volta dos seus filhos que creem apenas na justiça dos homens.

sábado, 10 de setembro de 2016

QUESTÕES SOBRE A NATUREZA DO DEMÔNIO (II)


QUESTÃO 2: Por que Deus impôs uma prova aos espíritos angélicos? 

Por que [Deus] não concedeu a visão beatífica a todos [os espíritos angélicos] quando os criou? Por que se arriscou a que alguns se convertessem em demônios? Deus poderia ter criado espíritos angélicos e diretamente ter-lhes concedido a graça da visão beatífica. Isto era perfeitamente possível à Sua onipotência e não haveria nenhuma injustiça se o fizesse. 

Mas, havia três grandes razões para submetê-los a uma fase de provas antes de conceder-lhes a visão beatífica. A razão menos importante de todas era que Deus tinha de dar a cada ser racional um grau de felicidade. Todos no céu veem a Deus, mas ninguém pode regozijar [da Presença] d’Ele em grau infinito, pois isso é impossível. Somente Deus pode regozijar infinitamente [de Si mesmo]. Cada ser finito, porém, regozija ao máximo, sem desejar mais, num grau finito. Regozija finitamente de um bem infinito. A comparação que se pode usar para compreender este conceito metafísico é que cada ser racional constitui um vaso, que é preenchido por Deus até as bordas, plenamente. Porém, cada vaso possui uma medida específica. Deus, em sua sabedoria, determinou algo especialmente inteligente: cada um determinaria o grau de glória que regozijaria na eternidade. Uma vez que isso é para sempre, dado que isso é tão importante, Deus deixou tal decisão em nossas mãos. Se cada um de nós teria um grau, e isto é inevitável, então que cada um determinasse a medida desse grau. De que modo? [Mediante] uma prova. 

Segundo a generosidade, o amor, a perseverança e demais virtudes que venhamos a manifestar nessa prova, assim será a medida do nosso grau. Como se pode ver, é uma disposição magnífica das coisas, em que se manifesta a sabedoria infinita de Deus. Se tal razão exposta é importante, considero, entretanto, que é ainda mais [importante] considerar o fato de que o único momento em que um espírito pode desenvolver a sua fé e a sua generosidade para com Deus é justamente quando não O vê. Depois de vê-lO,  ficará pleno de gratidão ante o que contempla. Porém, este amor generoso na fé e na confiança em Deus, na obscuridade, somente é possível antes da visão beatífica. Depois, já não será mais possível. Tudo será possível, menos isso. Digamos que é um atributo do espírito que se desenvolve antes da visão direta da essência de Deus ou que depois se torna absolutamente impossível. 

Por isso, a prova é um dom de Deus. Um dom que permite ser germinada e desenvolvida em nós a flor da fé, com todos os seus frutos. Essa flor não poderá mais nascer durante a eternidade, pois já não poderá haver fé onde se tem a Plena Visão. E, através da fé, e em consequência dela, provêm as virtudes subsequentes. Cada anjo tenderia a desenvolver umas mais, outras menos. Antes de tudo, o tempo de provas dava a possibilidade de que nascessem e desenvolvessem as virtudes teologais. Depois, alguns anjos desenvolveriam mais a virtude da perseverança, outros a da humildade, outros ainda a súplica, etc. Obviamente, conceder a um ser a possibilidade de que nele nasça a fé significa arriscar que nele possa germinar não a fé, mas o mal. Deus sabia que, ao conceder tal liberdade, esta poderia ser direcionada para o bem como para o mal. 

Deus poderia ter criado o universo como quisesse, como fosse da Sua vontade, sem quaisquer limites ou contraposições. Entretanto, a santidade não se cria, mas esta se faz às custas da ação da graça. Conceder o dom da liberdade aos espíritos supõe que possa surgir neles uma Madre Teresa de Calcutá ou um Hitler. Uma vez que se concede a dádiva da liberdade, concede-se [também] todas as suas consequências. Querer que apareça o bem espiritual implica aceitar de antemão a possibilidade de surgir o mal espiritual. No universo material, não há bem espiritual, nem mesmo a mais ínfima quantidade de bem espiritual. O bem do mundo material é um bem material; a glorificação do universo físico ao Criador constitui uma glorificação material e inconsciente. O bem espiritual é qualitativamente superior, mas pressupõe necessariamente admitir este risco.

Por isso, o surgimento do mal não constituiu uma obliteração dos planos divinos. A possibilidade do aparecimento do mal já fazia parte dos planos divinos antes mesmo da criação de seres pensantes. De qualquer forma, mesmo tendo sido exposto previamente de que a prova era necessária para se determinar o grau de glória, a razão mais importante, a razão fundamental para Deus conceder o dom da liberdade, era o de obter o amor [das criaturas] de um modo livre. Sem essa prova, Deus poderia ter recebido a gratidão de todos os seres aos quais teria dado um grau de glória sem se submeterem aos riscos de uma prova. Porém, Deus é um ser que ama e que quer ser amado. O único jeito de obter esse amor na fé, esse amor de confiança, esse amor desinteressado e nascido na obscuridade do que não se pode ver, era por meio da proposição de uma prova. Volto a repetir que o mesmo Deus que pode criar milhares de universos com um único ato de Sua vontade, não pode criar esse amor que nasce daquele que é provado no sofrimento da fé. O amor a Deus não se cria, é uma doação que parte de cada criatura. 

QUESTÃO 3: Por que Deus não suspendeu a liberdade ao ver que começavam a pecar?

Por que Deus não retira a liberdade ao ver que alguém avança pelo caminho do mal? Não o faz porque fazer isso seria supor que o espírito já estaria fadado para sempre no mal. Permitir-lhe que siga cometendo o mal supõe oferecer-lhe a possibilidade de retomar o bem. Retirar-lhe da prova implicaria que se cometessem menos pecados, mas o espírito removido da mesma ficaria petrificado no mal para sempre. Permitir que o mal prossiga fazendo o mal lhe dá [a quem pratica o mal], então, a oportunidade de retroceder [à prática do bem].

QUESTÃO 4: Todos os demônios são iguais?

Já foi dito que cada demônio pecou com uma intensidade determinada. Além disso, cada demônio pecou em um ou em vários pecados específicos. A rebelião teve sua origem na soberba, pelo que dessa raiz nasceram outros pecados. Durante os exorcismos, isso fica muito claro: há demônios que pecam mais por ira, outros por egolatria, outros por desespero, etc. Cada demônio tem a sua psicologia própria, sua forma particular de ser. Há aqueles que são mais eloquentes, outros mais sarcásticos, em alguns brilha de forma especial a soberba, em outros, o ódio, etc.

Ainda que todos tenham se separado de Deus, uns são piores do que outros. É importante ressaltar que, como nos diz São Paulo, existem nove hierarquias angélicas. As hierarquias superiores são mais belas, inteligentes e poderosas  que as inferiores. Cada anjo é completamente distinto dos outros anjos. Não há raças de anjos, para usar um termo sociológico, mas cada um completa a sua espécie. Por outro lado, é possível agrupar os anjos em grandes grupos ou hierarquias, também chamadas coros, pois estes se formaram em [diferentes] coros que entoam louvores a Deus. Seu cântico não vem pela voz, mas trata-se de um louvor espiritual que expressa a vontade [dos anjos] de conhecer e amar a Trindade. 

De cada uma das nove hierarquias, caíram anjos que se transformaram em demônios, ou seja, há demônios que são virtudes, potestades, serafins, etc. Ainda que sejam demônios, conservam intactos seu poder e inteligência. Por tudo que foi dito, fica claro que existe também uma hierarquia demoníaca. Uma coisa comprovada nos exorcismos é que, entre eles, existe uma supremacia dos superiores sobre os inferiores. Em que consiste este poder? É algo impossível de saber, pois não se sabe como um demônio pode obrigar outro a fazer algo, pois não há um corpo para o forçar a isso. Entretanto, comprova-se que um demônio superior pode forçar outro inferior a não abandonar um corpo durante um [ritual de] exorcismo. Ainda que o demônio inferior esteja sofrendo e queira sair, o superior pode impedir-lhe. Como um demônio pode obrigar outro demônio [a fazer ou proibir alguma coisa], sendo este imaterial, é algo, repito, que escapa à nossa compreensão.

(Excertos da obra 'Summa Daemoniaca', do Pe. Jose Antonio Fortea, tradução do autor do blog)

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

DA EXPLICAÇÃO DO MAGNIFICAT (II)


Meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador

Essas divinas palavras, em latim Et exultavit spiritus meus in Deo salutari meo, pronunciadas pelos sagrados lábios da Mãe do Salvador, nos declaram a alegria inefável e incompreensível que lhe encheu e santamente lhe inebriou o coração, o espírito e a alma, no momento da Encarnação do Filho de Deus e enquanto O levou em suas benditas entranhas; e até por todo o resto de sua vida, segundo Santo Alberto Magno e alguns outros Doutores da Igreja. 

Alegria que foi tão excessiva, especialmente no momento da Encarnação que, assim como a sua santa alma separou-se do corpo no último instante de sua vida, pela força de seu amor a Deus e pela abundância de sua alegria ao ver-se prestes a ter com o seu Filho no Céu; ela teria também morrido de alegria em vista das indescritíveis bondades de Deus para com ela e para com todo o gênero humano, se a vida não lhe fosse conservada por milagre. Pois se a história nos afirma que a alegria causou a morte de muitas pessoas, em razão de algumas vantagens temporais que lhes haviam sucedido, é para crer-se que a divina Virgem teria morrido também se não fora sustentada pela virtude do divino Menino que trazia em seu seio, visto que ela possuía os maiores motivos de alegria que jamais existiram e existirão:

1. Ela se rejubilava em Deus porque Deus é infinitamente poderoso, sábio, bom, justo e misericordioso, e porque faz resplandecer, de maneira tão admirável, o seu poder, a sua bondade e todos os outros divinos atributos, no mistério da Encarnação e da Redenção do mundo.

2. Rejubilava-se em Deus seu Salvador, por ter vindo a este mundo, para salvá-lo e remi-lo, em primeiro lugar e principalmente, preservando-a do pecado original e cumulando-a de suas graças e favores, com tanta plenitude que a tornou, consigo, a medianeira e cooperadora na salvação de todos os homens.

3. Seu coração achava-se cumulado de alegria porque Deus a contemplara com os olhos de sua benignidade, isto é, amara e aprovara a humildade de sua serva, na qual achou singularíssima satisfação e complacência. É esta, diz Santo Agostinho, a causa da alegria de Maria, porque Ele olhou a humildade de sua serva; como se ela dissesse: 'Rejubi­lo-me com a graça que Deus me fez, porque dEle recebi o motivo desta alegria; e nEle me rejubilo, porque amo o seu amor'.

4. Rejubilava-se pelas grandes coisas que a sua onipotente bondade nela operara, que são as maiores maravilhas de quantas Ele jamais fez em todos os séculos passados e fará em todos os séculos vindouros.

5. Rejubilava-se, não só pelos favores que recebera de Deus, mas também pelas graças e misericórdias por Ele derramadas sobre todos os homens que se dispõem a recebê-las.

6. Rejubilava-se não só com a bondade de Deus em relação aos que não lhe opõem obstáculo, mas também com os efeitos de sua justiça sobre os soberbos, que lhe desprezam as liberalidades.

(Da Explicação do Magnificat, de São João Eudes)