
sábado, 22 de junho de 2019
DA VIDA ESPIRITUAL (99)

sexta-feira, 21 de junho de 2019
SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (VII)
Nesta sétima parte do sermão, o Pe. Antônio Vieira considera se a falta de ciência pelo pregador (ou a mera repetição de conhecimento alheio em sua pregação) constitui a causa principal da perda dos frutos valiosíssimos da Santa Palavra de Deus.
VII
Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O pregador há de pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: semen suum [semente sua]. Semeou o seu e não o alheio porque o alheio e o furtado não são bons para semear, ainda que o furto seja de ciência.
Comeu Eva o pomo da ciência e queixava-me eu antigamente desta nossa mãe; já que comeu o pomo, por que lhe não guardou as pevides? Não seria bem que chegasse a nós a árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois por que não o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado e o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear: é bom para comer, porque dizem que é saboroso; não é bom para semear, porque não nasce. Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasça em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há de deitar raízes e o que não tem raízes não pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto: porque pregam o alheio e não o seu: semen suum [semente sua]. O pregar é entrar em batalha com os vícios e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória. Quando Davi saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode vencer ainda que seja Davi. As armas de Saul só servem a Saul e as de Davi a Davi; e mais aproveita um cajado e uma funda própria que a espada e a lança alheias. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que derrube gigante.
Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, o que foi ordená-los pregadores; e que faziam os Apóstolos? Diz o texto que estavam: reficientes retia sua - refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos e não eram alheias. Notai: retia sua [redes suas]. Não diz que eram suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam; não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes alheias ou feitas por mão alheia, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é porque nesta pesca de entendimentos só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma rede? Do fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há de fazer rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo e tem outras mais superficiais e mais leves; e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça.
As razões não hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento. Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de por na boca; mas elas foram-se por na cabeça. Pois por que na cabeça e não na boca, que é o lugar da língua? Porque o que há de dizer o pregador, não lhe há de sair só da boca; há de lhe sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca pára nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento.
Ainda tem mais mistério estas línguas do Espírito Santo. Diz o texto que não se puseram todas as línguas sobre todos os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum [apareceram repartidas umas como línguas de fogo, que repousaram sobre cada um deles (At 2,3)]. E por que cada uma sobre cada um e não todas sobre todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E senão vede-o no estilo de cada um dos Apóstolos, sobre que desceu o Espírito Santo.
Só de cinco temos escrituras; mas a diferença com que escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas todas eram tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave, Jacó forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco São Lucas e São Marcos, que também ali estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu São João no Apocalipse. Loquuti sunt septem tonitrua voces suas [os sete trovões ressoaram com as suas vozes (Ap 10,3)]. Eram trovões que falavam e desarticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: voces suas [vozes suas]: 'suas e não alheias' como notou Ansberto: non alienas, sed suas. Enfim, pregar o alheio é pregar o alheio e com o alheio nunca se fez coisa boa.
Contudo, eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Batista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou São Lucas, e não com outro nome, senão de sermões: praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun Isaiae prophetae [pregando o batismo de arrependimento para remissão dos pecados, conforme está escrito no livro das palavras do profeta Isaías (Lc 3,3)]. Deixo (também como referência) o que tomou Santo Ambrósio de São Basílio, São Próspero e Beda de Santo Agostinho, Teofilato e Eutímio de São João Crisóstomo.
(Sermão da Sexagésima- Parte VII, Pe. Antônio Vieira)
quinta-feira, 20 de junho de 2019
CORPUS CHRISTI 2019
Anima Christi
Anima Christi, sanctifica me.
Corpus Christi, salva me.
Sanguis Christi, inebria me.
Aqua lateris Christi, lava me.
Passio Christi, conforta me.
O bone Iesu, exaudi me.
Intra tua vulnera absconde me.
Ne permittas me separari a te.
Ab hoste maligno defende me.
In hora mortis meæ voca me.
Et iube me venire ad te,
ut cum Sanctis tuis laudem te
in sæcula sæculorum.
Amen.
Tantum Ergo
Tantum ergo Sacramentum
Veneremur cernui:
Et antiquum documentum
Novo cedat ritui:
Praestet fides supplementum
Sensuum defectui.
Genitori, Genitoque
Laus et iubilatio,
Salus, honor, virtus quoque
Sit et benedictio:
Procedenti ab utroque
Compar sit laudatio.
Amen.
quarta-feira, 19 de junho de 2019
INDULGÊNCIAS DO DIA DA SOLENIDADE DE CORPUS CHRISTI
Amanhã, dia da solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, o católico pode ser contemplado com as seguintes indulgências:
(i) Indulgência parcial: rezar, com piedosa devoção, a oração 'Alma de Cristo':
Alma de Cristo, santificai-me.
Corpo de Cristo, salvai-me.
Sangue de Cristo, inebriai-me.
Água do lado de Cristo, lavai-me.
Paixão de Cristo, confortai-me.
Ó bom Jesus, ouvi-me.
Dentro de vossa chagas, escondei-me.
Não permitais que eu me separe de vós.
Do espírito maligno, defendei-me.
Na hora da morte chamai-me e
mandai-me ir para vós,
para que com vossos Santos vos louve
por todos os séculos dos séculos.
Amém.
(ii) Indulgência plenária: rezar, com piedosa devoção, a oração 'Tantum Ergo' ou 'Tão sublime Sacramento':
Tão sublime sacramento
vamos todos adorar,
pois um Novo testamento
vem o antigo suplantar!
Seja a fé nosso argumento
se o sentido nos faltar.
Ao eterno Pai cantemos
e a Jesus, o Salvador,
igual honra tributemos,
ao Espírito de amor.
Nossos hinos cantaremos,
chegue aos céus nosso louvor.
Amém.
Do céu lhes deste o pão,
Que contém todo o sabor.
Oremos: Senhor Jesus Cristo, neste admirável Sacramento, nos deixastes o memorial da vossa Paixão. Dai-nos venerar com tão grande amor o mistério do vosso corpo e do vosso sangue, que possamos colher continuamente os frutos da vossa redenção. Vós que viveis e reinais para sempre. Amém.
COMPÊNDIO DE SÃO JOSÉ (XIV)
66. Como os fiéis viram o seu poder de intercessão?
Numerosos escritores josefinos e santos defenderam o grande poder de intercessão de São José, justamente por reunir em si um tesouro de riquezas, concentrando os esplendores de todos os santos. O grande teólogo São Tomás de Aquino ensina que 'alguns santos receberam o privilégio de nos proteger em casos especiais; a São José, porém, foi conferido o encargo de nos socorrer em todas as necessidades'. Santa Tereza de Ávila diz que: 'no céu é feito tudo o que São José pede'. De fato, depois de Maria, São José ocupa o primeiro lugar no coração de Deus; assim, ninguém depois de Maria e do Salvador pode nos conceder mais graças que São José. Gerson diz que: 'No céu São José não pede, mas manda; não impetra, mas impera'. Afirmou Santa Tereza ser uma grande devota de São José: 'que nunca me lembro de haver pedido uma graça a São José sem que a tenha recebido imediatamente'. O fundador da Congregação dos Oblatos de São José, o Bem-Aventurado José Marello, confiava tanto no poder de intercessão de São José que afirmava: 'Se São José não concedesse graças, não seria mais São José'. Para Santa Tereza, as graças que São José concede são: a busca do perdão dos pecados, o amor a Jesus e Maria, uma vida interior e uma boa morte. É diante de tamanho poder de intercessão que o Papa Bento XV considerou que os devotos de São José têm o caminho mais breve para a santidade e Pio XI, grande devoto do pai de Jesus, afirmou que ele tem diante de Deus uma intercessão 'onipotente'.
67. Se São José é intercessor, é também protetor?
A devoção a São José teve um desenvolvimento surpreendente, culminando na sua proclamação como Patrono da Igreja Universal, com o decreto Quemadmodum Deus de Pio IX, em 08 de dezembro de 1870. Neste decreto, o papa afirma de José, como pai de Jesus, que Deus 'constituiu como senhor de sua casa e de suas propriedades, e como guarda de seus tesouros mais queridos. A Jesus ele abraçou-o com afeto paterno e nutriu-o com solicitude especialíssima'. O Papa Leão XIII em sua encíclica Quamquam Pluries, de 15 de agosto de 1889, explica o porquê do patrocínio de São José sobre toda a Igreja Católica com estas palavras: 'As causas e razões especiais pelas quais São José foi proclamado Patrono da Igreja e em virtude das quais ela se colocou repetidas vezes sob a sua proteção, são estas: porque ele foi o esposo de Maria e pai, como era reconhecido, de Jesus Cristo. Daí derivam sua dignidade e graça, santidade e glória'. Sendo ele protetor de toda Igreja, o é também de todos os fiéis, particularmente das famílias. Na verdade, a família de Nazaré, da qual ele é o chefe, torna-se o modelo mais sublime para todas as famílias. Por isso, todas as famílias devem tê-lo como seu protetor. São José é tido também como protetor dos sacerdotes, em virtude de sua específica missão de cuidar do tesouro divino do Pai aqui na terra, vivendo intimamente com Ele, tocando-o, sustentando-o, defendendo-o e educando-o. Na verdade, o mesmo corpo que nasceu de Maria e que José protegeu é aquele que o sacerdote segura no momento da consagração na missa. 'São José nutriu', como nos ensina Pio IX, 'aquele que os fiéis deviam comer como pão da vida eterna'. Portanto, existe uma relação profunda entre o ministério sacerdotal e a missão de São José. Ele é também o protetor da boa morte, justamente por ter morrido ao lado de Jesus e de Maria.
68. Ele é também o protetor das famílias religiosas?
As Congregações Religiosas, os Institutos de vida consagrada, as Sociedades de vida apostólica que têm São José como protetor e trazem o seu nome são inumeráveis e encontram-se espalhadas em todo mundo. Da mesma forma as Confrarias, as Associações e Instituições intituladas ao nosso santo são numerosíssimas e disseminadas em todos os lugares. Disto podemos deduzir a grande consideração que São José possui entre os cristãos.
69. Dentre as muitíssimas Congregações e Institutos religiosos que escolheram São José como Patrono, poderia ser citada uma e o porquê da escolha?
Assim como Pio IX diante das tribulações que angustiavam a Igreja do seu tempo buscou a proteção de São José, da mesma forma também o Fundador da Congregação dos Oblatos de São José, o Bem-Aventurado José Marello, atraído pelo exemplo de São José, do seu serviço por amor aos interesses de Jesus com a dedicação completa de sua vida, em 1872, aos 28 anos, idealizava uma 'Companhia de São José' que fosse a 'promotora dos interesses de Jesus', onde cada membro tivesse suas próprias inspirações de seu modelo São José, que foi na terra o primeiro a cuidar dos interesses de Jesus. Esta sua inspiração inicial ganhou corpo quando, em 1877, no esboço da regra para a Companhia, ele declara que esta estava aberta para quem desejasse 'seguir de perto o Divino Mestre com a observância dos Conselhos Evangélicos', retirando-se na casa de São José com 'o propósito de permanecer escondida e silenciosamente operoso na imitação daquele grande modelo de vida pobre e escondida'. De fato, em 1878 fundava a Congregação, tendo como patrono São José e os seus membros chamados 'Oblatos de São José', com a intenção especial de honrá-lo e amá-lo, imitando suas virtudes e propagando a sua devoção. Desta forma, esta Congregação, espalhada pelo mundo inteiro com os seus mais de quinhentos religiosos, empenha-se em 'reproduzir na própria vida as virtudes características de São José, na união com Deus, na humildade, no escondimento, na laboriosidade, na dedicação aos interesses de Jesus, consagrando-se ao serviço da Igreja nas formas de apostolado ministerial que dia-a-dia a Providência indica'. Assim, esta Congregação tem como empenho primordial aquele do serviço que foi próprio de São José, aquele do silêncio e do escondimento que, como consente a pérola de cristalizar-se, ao nascituro de formar-se e à semente de desenvolver-se, assim também consente ao Filho de Deus de inserir-se da maneira mais discreta na família humana.
70. Sendo José intercessor e protetor, é também modelo?
Sem dúvida, pois todos os cristãos devem ter São José como o modelo perfeito que se colocou completamente à disposição da vontade de Deus e executou humilde e fielmente o plano divino da encarnação. Cada cristão deve, como disse João Paulo II em sua exortação apostólica Redemptoris Custos, 'procurar extrair desta insigne figura, coisas novas e coisas antigas' (Mt 13,52), pois sua participação na economia da salvação foi livremente desejada por Deus para servir juntamente com Maria ao 'mistério escondido nos séculos na mente de Deus' (Ef 3,9). Ele é o exemplo de obediência incondicional à vontade de Deus; o que ele fez é puríssima 'obediência da fé' (Rm 1,5; 16,26); tornando-se o primeiro depositário do mistério divino; ele é 'aquele que foi posto em primeiro lugar por Deus sobre o caminho da peregrinação da fé', sobre o qual Maria irá adiante de modo perfeito. José é modelo para os trabalhadores porque 'junto à humanidade do Filho de Deus, o trabalho foi acolhido no mistério da encarnação, como também foi de particular maneira redimido', e tudo isso graças ao banco da carpintaria, no qual ele trabalhava juntamente com Jesus; assim, José aproximou o trabalho ao mistério da redenção. Ele é o modelo para os que buscam a vida interior porque estava 'em contínuo contato com o mistério escondido nos séculos, que morou debaixo do teto de sua casa'. Assim, ele colocou, em suas ações envolvidas de silêncio, um clima de profunda contemplação. Em suma, José é o modelo para todos os cristãos, pois ele é o tipo ideal do evangelho, ao qual Jesus fará alusões em suas pregações. 'Ele oferece-nos um exemplo de atraente disponibilidade ao chamado divino, de calma em cada acontecimento, de plena confiança fundamentada numa vida de sobre-humana fé e caridade e do grande meio da oração'. Não sem razão, São José exerceu uma força irresistível na vida dos santos, constituindo-se para estes, modelo e uma verdadeira escola de santidade. Para muitos santos, São José foi o leit-motiv para o caminho da santidade. É impossível enumerar os santos que tiveram as inspirações em São José; basta-nos apenas lembrar alguns como São Luiz Gonzaga, São João Maria Vianney, São João Batista de la Salle, Santa Teresa, Santo Afonso Maria de Ligório, São Vicente de Paulo e o bem-aventurado José Marello, o qual aconselhava continuamente aos seus religiosos: 'Peçamos a São José que seja o nosso diretor espiritual'.
('100 Questões sobre a Teologia de São José', do Pe. José Antonio Bertolin, adaptado)
terça-feira, 18 de junho de 2019
SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (VI)
Na sexta parte do Sermão da Sexagésima, o Pe. Antônio Vieira avalia se é o conteúdo do discurso que constitui a causa primária que impacta tão gravemente os frutos não colhidos das pregações da Santa Palavra de Deus.
VI
Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que se tomam muitas matérias, levantam-se muitos assuntos e quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos gêneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen [saiu, o semeador, a semear uma semente]. Semeou uma semente só e não muitas, porque o sermão há de ter uma só matéria e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde.
Eis aqui o que acontece aos sermões deste gênero. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega-se tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há de colher senão vento? O Batista convertia muitos na Judeia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini [preparai o caminho do Senhor (Mt 3,3)]: a preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os ninivitas; mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur [daqui a quarenta dias, Nínive será destruída (Jn 3, 4)]: a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há de ser de uma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria.
Há de tomar o pregador uma só matéria; há de defini-la para que se conheça; há de dividi-la para que se distinga; há de prová-la com a Escritura; há de declará-la com a razão; há de confirmá-la com o exemplo; há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades; há de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários e, depois disso, há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar mais alto.
Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há de ser o sermão: há de ter raízes fortes e sólidas, porque há de ser fundado no Evangelho; há de ter um tronco, porque há de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos não hão de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão de ser vestidos e ornados de palavras. Há de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há de ordenar o sermão. De maneira que há de haver frutos, há de haver flores, há de haver varas, há de haver folhas, há de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria.
Se tudo é tronco, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas [gravetos, aparas]. Se tudo são folhas, não é sermão, são folhagens. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Ser tudo fruto não pode ser porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, a qual podemos chamar de 'árvore da vida', há de haver o proveito do fruto, a formosura das flores, a rigidez das varas, o enfeitado das folhas, o distendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: seminare semen [semente semeada]. Eis aqui como hão de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles.
Tudo o que tenho dito pudera-se demonstrar largamente, não só com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos oradores evangélicos, São João Crisóstomo, de São Basílio Magno, São Bernardo, São Cipriano, e com as famosíssimas orações de São Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, São Gregório e muitos outros, se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermões e homilias: uma coisa é expor e outra pregar; uma ensinar e outra persuadir; desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo Antônio de Pádua e São Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira causa que busco.
(Sermão da Sexagésima- Parte VI, Pe. Antônio Vieira)
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