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sábado, 3 de agosto de 2013

SOB O DOMÍNIO DO MAL

Nos dias atuais, a civilização cristã é impiedosamente atingida pelo domínio do mal. É um redemoinho espantoso e generalizado de ações diabólicas, convergindo para a supressão dos valores e da moral cristã. Não há uma única fronteira em que as forças malignas não se irrompem avassaladoras, atingindo brutalmente os fundamentos da religião católica, da igreja, da família, do casamento, da castidade. Não são poupados os velhos, os jovens e nem mesmo as crianças: o vórtice medonho ameaça engolir na sua voragem alucinante os pilares da civilização cristã.

A ação diabólica é claramente definida em três grandes frentes: na promiscuidade moral e na pornografia, na banalização de toda e qualquer violência, no espírito satânico da divisão. Estas três vias de iniquidade espumam o mesmo vômito do demônio, são elas as rédeas que submetem grande parte da atual humanidade sob o domínio do mal. O diabo é intrinsecamente maquiavélico e nunca mostra a sua cara medonha, mas o rastro da sua baba asquerosa é mais previsível que a loucura dos homens servis a ele.   

A nudez é a roupa do diabo. Onde a nudez está exposta, a máscara diabólica se escancara. No corpo seminu que vende joias, carros, perfumes e cerveja ou na prostituição disfarçada de capas de revistas, existe algo além do corpo exposto de uma mulher. A exposição do corpo e cenas de nudez explícita inundam os filmes, as novelas, as revistas, as propagandas, as manifestações artísticas de maneira geral. A nudez é exaltada como norma de marketing, a nudez é endossada como coisa natural e corrente, a nudez é vendida a preço de banana. Mas a nudez é intrinsecamente diabólica.

Mas a nudez é apenas a porta de entrada para todo um cenário de perversões diversas que tem como destino a pornografia explícita. Os relacionamentos sexuais passam a exigir, então, poções virulentas de criatividade e dimensões de contorcionismos animalescos, que degradam a natureza humana a limites insondáveis. A escravidão ao prazer não distingue limites ou freios; o hedonismo impera como conduta geral; o vício que corrói a carne insatisfeita extravasa pelos poros da insaciedade, do adultério, da promiscuidade, da pedofilia e se alimenta cotidianamente, em qualquer esquina ou na internet à mão, de uma indústria pornográfica gigantesca e universal. E os valores do casamento, da família, da castidade, da inocência das crianças,  são tragados neste redemoinho de perversões expostas. Não há dúvida de que esta é, sim, uma forma de amor, a do amor satânico que se locupleta pela nudez, pelo prazer a qualquer preço, pela idolatria da perversidade da pornografia.

A violência é o sopro do diabo. Em nossos dias, a violência campeia de tal sorte que não nos sensibilizam mais as tragédias diárias. Viraram 'notícias do cotidiano'. De vez em quando, quando a violência irrompe a um novo patamar, dá-se uma repercussão mais incisiva para, pouco a pouco, declinar subserviente ao rol de tantas outras tragédias anunciadas. A violência das ruas e das praças começam no ventre materno, no aborto monstruoso de gerações inteiras. Continua no seio das famílias, na violência doméstica, espraia-se pelas ruas, dispersa-se pelas mazelas de uma sociedade anestesiada de Deus, até se entorpecer como moeda corrente nas redes de tráfico, nas gangues e no submundo do crime. O sopro diabólico vende a eutanásia como prática conciliadora e a cultura da morte como 'princípio de escolha'; semeia o ódio e estimula as rivalidades étnicas; fomenta as guerras e induz os genocídios.  

A divisão é a marca do diabo. É na divisão, no espírito da quebra da ordem, no solapamento dos valores, na desarticulação dos princípios morais, que a ação diabólica mais se nutre e mais se locupleta. Famílias divididas, casamentos destruídos, ambientes corrompidos, Igreja cismática, civilização cristã em frangalhos, tudo isso é a obra de satanás levada ao cume de sua possessão doentia. Divisões raciais, religiosas, étnicas, políticas, econômicas... divisões de países, blocos, regiões, estados... fomento de guetos, grupos, cismas, facções... eis o modelo primário de toda e qualquer ação do demônio. Nada se partilha, tudo se desmorona; nada se compraz na conjunção dos esforços, tudo se dilui na revolta das partes; nada se robustece pela união de todos, tudo se resume no naufrágio da vontade. Pois o mal necessariamente se alimenta da maldade.  

Eis aí a síntese da ação diabólica que permeia a humanidade atual, no estertor de condenar ao desaparecimento a Igreja Católica e a civilização cristã. A roupa, o sopro e a marca do diabo: a nudez, a violência e a divisão. O primeiro passo para vencer o inimigo é conhecer as armas que ele possui. E, então, combatê-las tenazmente e superá-las por completo, amparados na fé cristã e nas verdades insuperáveis dos Evangelhos, em nome de Jesus Cristo, Nosso Senhor e Salvador, e para honra e glória de Deus.

(texto livre, de autoria do autor do blog, baseado em sermão do Arcebispo Fulton Sheen)

sábado, 27 de julho de 2019

QUANDO É PRECISO SER HOMEM... DE FÉ!

Vivemos a era do triunfo aparente do mal, sobejamente despejado em todos os momentos contra os princípios universais da moral católica. A meta é uma só, exclusiva: a destruição completa da Igreja Católica e de tudo o que ela representa. Tal propósito não é passível de sequer ser tentado pela mente humana, pois é fruto de um ato absurdo de degenerescência diabólica. A origem do mal, catalisado ao extremo da desordem e da liquefação moral, é absolutamente satânica. 

Não se trata apenas de um mero aumento, ainda que fosse exponencial, das atividades satânicas em todo o mundo. Isso é óbvio e, mais que óbvio, totalmente previsível. Em Fátima, Nossa Senhora alertou, de forma cristalina, sobre a necessidade de entendimento universal da hora tremenda que estava por vir, na história da humanidade, do embate final e decisivo a ser travado entre a Virgem e o demônio e suas legiões. Poucos, muito poucos inclusive na própria Igreja, tomaram tais palavras como farol de suas vidas: os bons se fragilizaram sob a tutela da tibieza e do indiferentismo e os maus culminaram a síntese de todos os seus males na busca e na entrega total ao domínio do maligno, arregimentando para si e para todos uma multidão de todo tipo de pecados, blasfêmias e sacrilégios.

Esse tsunami de iniquidades varre e arrasta sem dó toda a pobre humanidade, alimentada, catalisada e impulsionada pela mídia, pela internet e pelas redes sociais, despejando, a preço vil, o vômito do maligno sobre todos os valores cristãos bimilenarmente incorporados à vida, à família, ao casamento, aos sacramentos, a tudo que é sagrado e a tudo que procede de Deus. O mal se alastra ao passo que a reação ao mal cambaleia e se acovarda. A ideologia do gênero, o aborto e a pornografia não são exemplos da mera variedade das desmedidas propensões humanas, mas a brutal compunção satânica concreta e deliberada pelo aniquilamento da obra divina da salvação.

Sufocados diariamente por essa temática avassaladora, corremos o sério risco de nos deixarmos levar pelos redemoinhos da rebentação e quantos cristãos já não não estão entregues a um crescente indiferentismo, a uma tácita rendição, ao conformismo diante dos fatos e notícias deprimentes do dia-a-dia, à tibieza dos vencidos? Vencidos não estão apenas os que estão mortos, mas também os que não mais lutam. E estes não são poucos, nem alguns de muitos, são quase todos. E há muitos de muitos que não apenas pararam de lutar, mas se venderam ao inimigo e lutam agora contra nós, muitos abertamente e, muitos de muitos, como lobos vorazes travestidos em ovelhas. 

A Igreja, toda a Igreja, vacila e cambaleia. A Verdade é distorcida e manipulada, a palavra de Deus não é una e inquebrantável; não, agora pairam sobre os telhados arrufos da Verdade, o joio diabólico mistura-se ao trigo da doutrina católica, as trombetas das graças desperdiçadas aos ventos mais alardeiam e distorcem do que semeiam vinhas. As feridas da Igreja sangram abertas, autoridades eclesiásticas promovem ambiguidades e incertezas que estercam a glutoneria das agendas de esquerda; sacerdotes, religiosos e leigos sucumbem ao desvario das tarefas mundanas; o avassalador poder do mal e da ação demoníaca parece não ter fim.

Não lutamos contra homens. Lutamos contra homens enlameados até a alma pelo maligno. Não existe acordo possível ou convivência pacífica entre Deus e o demônio no meio de uma humanidade corrompida e dividida, não existe meio termo entre o bem e o mal em termos da salvação das almas, não existe um patamar ecumênico entre o Céu e o Inferno. Não interessa o que somos ou quantas vezes caímos ou levantamos; nós seremos apenas os salvos ou os não salvos na eternidade com Deus. E, para alento ou profundo desgosto de tantos, a misericórdia de Deus é o triunfo portentoso dos fortes e nunca, nunca mesmo, o sufrágio dos fracos.

Também em Fátima, Nossa Senhora nos legou a mensagem definitiva do triunfo final da Igreja: 'Por fim o meu Imaculado Coração triunfará!' A mesma promessa foi feita pelo próprio Cristo ao primeiro papa: 'E eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela' (Mt 16,18). Levantai-vos, portanto, que almas tíbias, acovardadas e titubeantes apenas induzem a repulsa de Deus; levantai-vos e ponde mãos às armas: oração, oração e oração, penitência, conversão. Com o terço na mão, com o Santo Rosário, com o amor incondicional às coisas de Deus e sem concessão alguma à perda da Fé, seremos, com efeito, cristãos num mundo não cristão, mas com certeza outros Cristos num outro mundo onde o mal não grassa e nem existe desde a eternidade. 

terça-feira, 3 de agosto de 2021

A SIMBOLOGIA DOS NÚMEROS NAS APARIÇÕES DE FÁTIMA

 

As aparições de Nossa Senhora em Fátima/Portugal em 1917 a três humildes crianças, Jacinta e Francisco Marto (ambos falecidos ainda na infância, logo após as aparições, em 20/02/1920 e 04/04/1919, respectivamente) e Lúcia dos Santos (mais tarde a Irmã Lúcia do Imaculado Coração), à época com 7, 9 e 10 anos, respectivamente, constituem uma referência notável dentre as revelações marianas, estabelecidas de modo admirável numa mensagem de cunho universal, mundialmente conhecida como Segredo de Fátima. Estas aparições são descritas e analisadas detalhadamente na página Fátima em 100 Fatos e Fotos publicada neste blog.

Nesta postagem particular, são realçados os aspectos muito especiais relativos ao simbolismo das datas e números associados às aparições de Fátima. Por que Nossa Senhora fez as suas aparições no dia 13? Por que em 1917? Por que foram seis aparições, entre os meses de maio e outubro de 1917? Nada do Céu vem por acaso, nada é mera coincidência. Nossa Senhora explicitou muitas coisas - avisos e advertências de extrema gravidade - aos homens dos tempos atuais, mas também reteve outras revelações menos claras e menos explícitas, que requerem ser desveladas além dos tempos específicos e do cenário das aparições.

Nossa Senhora apareceu às crianças sempre no dia 13 de cada mês (a quarta aparição ocorreu em 19 de agosto, em função da prisão e transferência das crianças até a localidade de Ourém, que foram impedidas, assim, de estarem presentes na Cova da Iria, na data de 13 de agosto, previamente recomendada por Nossa Senhora). Por que no dia 13, e não no dia 12 ou 15? A natureza específica desta data é claramente entendida à luz do Livro do Apocalipse, o livro das revelações por excelência:

'Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas' (Ap 12,1)

As revelações de Fátima traduzem uma dualidade extraordinária do plano divino da salvação: a ligação unívoca da Mãe de Deus e da Santa Igreja de Deus, entre Nossa Senhora e a Igreja de Cristo, fundada em Pedro e nos Doze Apóstolos - as doze estrelas que encimam a cabeça da Virgem de Fátima. Nossa Senhora (revestida de sol, como na sexta aparição) reunida com os Doze Apóstolos (1 + 12 = 13) é a ratificação nos tempos de todos os homens da civilização cristã nascida sob as graças do Espírito de Deus manifesto sobre a Igreja Reunida no Cenáculo de Jerusalém. Nossa Senhora é a rainha dos Apóstolos, rainha da Igreja de Cristo. A mensagem é clara: a Rússia e o mundo só serão convertidos pela devoção à Virgem e à Igreja, ao papado, ao sucessor de Pedro: este é o primado do plano divino da salvação. As heresias e o mal se alastram quando se viola e se deturpa essa união da dualidade da graça: e é por isso que o ecumenismo e o protestantismo têm a mesma raiz diabólica, que consiste como premissa a mesma rejeição ao papado e a mesma rejeição a Maria.

Vejamos agora a questão do ano: 1917, no cenário agreste das montanhas e vales da Serra do Aire e da aldeia de Aljustrel, nas proximidades de Fátima. Poder-se-ia, preliminarmente, analisar o contexto desta data no viés mais específico da política e da situação da Igreja em Portugal à época. Mas a chave é buscar essa abordagem no contexto muito mais geral da história humana da própria civilização cristã. E, mais uma vez, recorrer ao Livro do Apocalipse:

'Depois apareceu outro sinal no céu: um grande Dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres, e nas cabeças sete coroas' (Ap 12,3)

O Dragão vermelho, com sete cabeças (sete vertentes do mal) e dez chifres (o mal criado, proclamado, difundido e amplificado à décima potência), tem símbolo 17 = 7 + 10 e será dominado pelo triunfo do Imaculado Coração de Maria. O Dragão vermelho representa o comunismo e o ateísmo marxista que, utilizando os valores do mundo, obstruem e se revoltam contra Deus e a civilização cristã. O simbolismo do mal no número 17 prospera e se regurgita na Reforma Protestante (1517), no nascimento da maçonaria moderna (1717) e na revolução russa de 1917.

Nas aparições de 1917, Nossa Senhora revelou-se a Senhora do Rosário (sexta aparição) e mostrou ser a oração do Rosário (terceira aparição) o instrumento dado aos homens para vencer o dragão vermelho e o pecado. O Rosário ensinado pela Virgem Maria a São Domingos de Gusmão e rezado pelas tropas cristãs que venceram os turcos otomanos na Batalha de Lepanto (7 de outubro de 1571). No dia 07/10 (7 + 10 = 17), dia que a Igreja comemora as glórias de Maria como Nossa Senhora do Rosário, devoção proclamada pela Igreja a partir de 1717. 

Eis aí as revelações de Fátima expressas segundo uma segunda dualidade: de um lado, o dragão vermelho com suas sete cabeças e dez chifres, ou seja, Satanás e as falanges do inferno; de outro lado, Maria, a Rainha do Santo Rosário, que esmaga o dragão infernal e que triunfa sobre toda a iniquidade.

As aparições se desenvolveram entre 13 de maio e 13 de outubro de 1917: um período singular de tempo constituído por 153 dias. Este número é referido explicitamente no evangelho de São João: 153 peixes grandes foram coletados na rede puxada por Pedro do lago de Tiberíades e 'a rede não se rompeu' (Jo 21,12). Sim, 153 peixes grandes (ou seja, iguais) conformando a plenitude da graça da salvação concedida a todos os homens, sem exclusão de raça, nação ou língua. Essa pesca milagrosa seria (ou será) o resultado extraordinário da conversão da humanidade (e da Rússia em particular) a partir da dualidade de Nossa Senhora e do papado, que a Igreja ousou duvidar. Pesca milagrosa (conversão do mundo) ainda possível, se tangida pela oração frequente das 153 ave-marias do Rosário, como exaustivamente pedida por Nossa Senhora de Fátima. E, 'por fim, o meu Imaculado Coração triunfará', quando o homem novo redivivo tornar-se, enfim, a perfeição da criatura inserida no domínio pleno da Trindade Santa de Deus.



153 é número triangular perfeito, soma de todos os primeiros 17 algarismos (a pesca milagrosa que salva a todos, desde os que sempre estiveram em Deus - os grandes profetas e santos do número 1 até os que estavam sobre o pleno domínio do dragão vermelho do número 17). É o somatório da unidade de Deus três vezes santo: (1 x 1 x 1), da plenitude da graça concedida, assimilada e alcançada (3 x 3 x 3) e da solicitude perfeita da humanidade ao plano divino da salvação, compartilhada na plenitude da graça tal como os 5 peixes distribuídos pelo Senhor à multidão faminta: (5 x 5 x 5). Em Fátima, encontra-se em tudo o selo firmado de Deus!

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

O CULTO DEVIDO AO ESPÍRITO SANTO (I)

Corações ao alto: sursum corda. Os sofrimentos do tempo presente nada são se comparados à glória futura que se nos há de revelar. À consideração do fruto da vida eterna, caso ainda nos reste algum claro da luz verdadeira, algum sentimento de nobre ambição, diremos com o Apóstolo: Para ganhar o céu, de tudo fiz palha; candidatos à eternidade, imitemos o mercador de pérolas sobre que conta o Evangelho. Encontrara uma pérola que, por si só, era todo um tesouro. Em vez de gastar o tempo em perseguir e o dinheiro em consumir outras pérolas, comprara aquela outra, vindo a ser o mais rico e feliz dos mercadores.

Mas como há de ser tão grande recompensa para tão pouca labuta! O infinito pelo finito, qual o mistério? O Espírito Santo é amor infinito e o céu, o reino deste amor. Esconde-se-nos a razão de tal proporção, mas o fato é inconteste. Afiança-nos a palavra divina, tornam-no sensível aos olhos as imagens presentes. Quem não presenciou a bondade, a grandeza, a prodigalidade de algumas árvores? Num instante meditado, fala-nos este espetáculo: para abrigar-se dos ardores soalheiros, aquecer o lar, cobrir a mesa de frutos suculentos, por anos a fio, ao homem basta-lhe o sacrifício de um só fruto, capaz quando muito da satisfação de um tênue apetite.

Aquele que multiplica, de tão espantoso modo, os frutos das árvores, prometeu-nos multiplicar, conforme a mesma lei, o fruto das obras: centumplum accipiet. A quem cabe o direito de lhe duvidar da palavra, limitar-lhe o poder? Os milagres resplendentes da ordem material são pálida imagem dos milagres que se consumam na ordem moral. Quanto vai da diferença entre a humílima semente, plantada em terra, e a árvore magnífica, repleta de flores e frutos, segundo a estação, vai com usura da diferença que há entre o prazer fugaz, que sacrificamos ou cuja privação voluntária aceitamos e as torrentes de deleites eternos com que seremos inundados.

Ora, nasce o fruto do fruto. Nasce o fruto da vida eterna dos frutos temporais, nossos conhecidos. Resta dizer o como cultivá-los. Há de se cultivá-los no cultivo da árvore que os carrega: esta árvore nada mais é que o próprio Espírito Santo (Santo Agostinho). Como cultivá-lo? Rendendo-lhe o merecido culto. Daí, duas perguntas: deve o mundo culto ao Espírito Santo e qual deve ser este culto?

Deve o mundo um culto ao Espírito Santo? Quando desejo obter a resposta a uma pergunta de história ou astronomia, interrogo os historiadores ou os astrônomos. Para saber se o mundo deve um culto ao Espírito Santo, dirijo-me aos mestres em ciência divina. São eles: o próprio Deus, Nosso Senhor, os Apóstolos, os Padres e a Igreja. 

Por Deus: A fim de tornar presença constante no homem a necessidade do culto ao Espírito Santo, escreveu Deus dois grandes livros: o mundo e a Bíblia. Com igual eloquência, ambos os livros contam as glórias do Espírito Santo. O amor imperecível à humanidade e a sua indispensável assistência. O céu e seus sóis, a terra e as suas riquezas, o mar e as suas leis, até o caos que ele ordena e fecunda, falam dele, assim como do Filho e do Pai. Mais de cinquenta vezes nomeia o Antigo Testamento, bendizendo a terceira pessoa da Adorabilíssima Santíssima Trindade. Duzentas vezes presta-lhe homenagem no Novo Testamento.

O que revela a repetição tão frequente, senão o papel soberano e eterno do Espírito Santo na obra da criação, do governo e da redenção do mundo? Que apregoa, senão o dever imposto aos homens e aos anjos de sempre tê-lo consigo, junto com o Pai e com o Filho, como objeto de seus pensamentos, orações e adorações? Adicionemos que se há de existir alguma preferência no culto incessante, esta recairá sobre o Espírito Santo, amor substancial do Pai e do Filho. Ele só se revela nas mercês. Os dons da natureza e da graça vêm diretamente dele.

Por Nosso Senhor: Juntam-se à voz da Bíblia e das criaturas àquela da Verdade em pessoa, o Verbo encarnado. Nem exemplos nem palavras, nada omitiu o Salvador do gênero humano para nos instar ao amor do Espírito Santo e puséssemos nele toda a confiança. O que era João Batista em relação ao Cristo, parecia Ele em relação ao Espírito Santo. O filho de Zacarias, o maior dentre os filhos de homens, foi escolhido precursor do Messias. O filho de Deus como que toma para si o papel de precursor do Espírito Santo, e parece não ter outro fim, senão o de preparar o mundo para recebê-lo.

Decidiu se fazer homem, mas quisera sua mãe esposa do Espírito Santo. Quisera seu corpo formado numa operação do Espírito Santo; que no dia do batismo o mesmo Espírito descesse sobre si visivelmente, e o conduzisse ao deserto, a fim de prepará-lo para sua missão. Durante o inteiro curso da vida mortal, mostra-se amiúde sob a dependência do Espírito Santo, que o conduz ao Calvário. Morto, é o Espírito Santo que o retira do sepulcro.

Há mister de defender os direitos do Espírito Santo? Parece que se esquecem deles. Pronunciara o mesmo Cristo esta sentença: 'quem pecar contra o Filho do Homem, será perdoado; mas quem pecar contra o Espírito Santo, não será perdoado nem neste século, nem no vindouro' (Mt 12, 32). Deve-se reservar um lugar para ele dentro das almas? Jesus não hesita em separar-se de tudo quanto lhe era mais caro no mundo, de temor que tal presença constitua-se em obstáculo ao reinado absoluto do Espírito Santo (Jo 16, 7). Tais foram as palavras e condutas da segunda pessoa da Santíssima Trindade em face da terceira pessoa. Jamais céu e terra ouviram nem ouvirão nada tão eloquente acerca da excelência do Espírito Santo e do culto que lhe é devido e da necessidade de seu reinado.

Pelos Apóstolos: Instruídos na escola do Verbo e formados pelo Espírito Santo, contam os apóstolos a sua plenitude. Diante dos novos fiéis e dos perseguidores, em seus escritos e discursos, sempre trazem o Espírito Santo sobre os lábios. Aos diáconos, o cuidado de alimentar os pobres; a eles, a missão de anunciar o Espírito Santo, de dá-lo a saber ao mundo e proclamar por toda parte a necessidade premente de submeter-se ao seu império. Nada mais lógico. Qual sua vocação e por que são eles apóstolos? A vocação é uma rija luta contra o espírito do mal, satã, deus e rei do mundo. Como apóstolos, sua razão de ser está na caça ao usurpador, fazendo reinar o Espírito do bem.

Qual nuvens salutares, soprados pelo Vento do Cenáculo, espalham-se para os quatro cantos do céu e fazem chover sobre todas as partes da terra – é neles em que o Espírito tem morada. Gigante desta imensa batalha, São Paulo o leva por durante trinta anos, do Oriente ao Ocidente e do Ocidente ao Oriente. Em todo lugar, exalta as glórias do Espírito Santo, revela sua presença por meio de esclarecidos milagres, não cessa de rogar aos judeus e aos pagãos, aos gregos e aos bárbaros: 'recebei o Espírito Santo; guardai-vos de entristecer o Espírito Santo; sobretudo, guardai-vos de expulsá-lo. Senão, permanecereis ou caireis no império do espírito infernal. Quem nega o espírito de Jesus Cristo, não tem parte com ele. Sem o Espírito Santo, nada podeis obrar para vossa salvação, sequer pronunciar o nome do autor da salvação e das graças' (Ef 1,17 ; 4,30;  I Ts 5,19; Gl 5,16 -17; Rm 8,9; I Cor 12,3).

O que Paulo ensina em Tessalônica, Efésio, Atenas e Corinto, ensina Pedro em Jerusalém, Antioquia e Roma; Bartolomeu na Armênia; Tomé nas Índias; André na Cítia; Tiago na Espanha. Mateus na Etiópia. Assim os apóstolos se nos deparam como homens do Espírito Santo. Pode-se definir o que eram suas pregações, viagens, milagres, sua vida sublime e sua morte não menos sublime: era o Espírito Santo anunciado, comunicado e apresentado para amor e obediência do mundo inteiro. Ora, a conservação dos seres nada mais é que continuação de sua criação. Caso o mundo cristão, formado pelo Espírito Santo, queira continuar a sê-lo, é imprescindível que permaneça fiel ao princípio de sua origem. Ótimo tema para reflexões em nossa época!

Pelos Padres da Igreja: Aos apóstolos sucederam os padres da Igreja e os doutores. Eles viram com os olhos a mais espantosa das revoluções: satã expulso de seu império e a humanidade, livre da escravidão, converter-se à liberdade, à luz e às virtudes do Evangelho. Nenhum deles ignora que o milagre da regeneração do mundo, maior que o da criação, não começou em Belém, mas no Cenáculo, por obra do Espírito Santo. Consumiam suas vidas na perpetuação e divulgação desta obra maravilhosa, como consumiram os apóstolos para estabelecê-la. Desde os primeiros séculos, a história mostra-nos os mais excelsos gênios do Oriente e do Ocidente consagrando o saber e a eloquência na explicação das prerrogativas do Espírito Santo, na justificação da divindade, na explicação das operações miraculosas, na demonstração da necessidade de seu reinado, na solicitação das adorações que lhe devem o gênero humano.

A exemplo do Apóstolo, São Crisóstomo, Santo Agostinho e São Jerônimo não se cansam de falar do Divino Paráclito. Dídimo, São Basílio e Santo Ambrósio consagram-lhe cada qual um tratado particular. As obras imortais de São Cipriano, Santo Atanásio, São Cirilo, São Gregório Nazianzeno, Santo Hilário, São Leão, São Gregório - o Grande, Beda - o Venerável, Ruperto, Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, São Bernardo, Santo Antônio e uma multidão de outros são outros tantos canais por onde corre abundante o ensinamento apostólico do Espírito Santo. A todos estes grandes homens, fundadores da sociedade cristã, nada lhes era tão caro como o inculcar no mundo o estado de permanente necessidade que se há de viver ou sob o império do Espírito Santo ou sob o de satã.

Em nome de todos, ouçamos São Bernardo e São Crisóstomo: 'Temos', diz o primeiro, 'duas prendas do amor de Deus por nós: a efusão do sangue de Jesus Cristo e a efusão do Espírito Santo. Um de nada serve sem o outro. O Espírito Santo só se dá a quem acredite em Jesus crucificado. Mas a fé de nada serve, se não opera na caridade. Ora, a caridade é dom do Espírito Santo' e o segundo: 'Sem o Espírito Santo, nem os fiéis poderiam orar a Deus, nem chamá-lo de Pai. Sem ele, não haveria ciência, nem sabedoria na Igreja, nem pastores, nem doutores, nem santificadores. Em suma, sem ele não haveria Igreja'.

Caso não existissem Igreja, padres, doutores, nem possibilidade de orar, nem meio de lucrar do sangue do Calvário, como subtrair-se ao domínio do demônio? Ora, sem o Espírito Santo, nada disso existiria. As partes do mundo civilizadas pelo cristianismo seriam ainda como a China, as Índias, a África, o Japão, o Tibete, regiões sob o domínio do príncipe das trevas. Este é o ensinamento tradicional dos padres da Igreja. Existe razão mais poderosa acerca da necessidade de conhecer o Espírito Santo, de amá-lo, de adorá-lo e de submeter-se a seu império?

Pela Igreja: Para torná-lo indelével, tornando-o popular, a Igreja cuida de traduzir em atos esse ensinamento fundamental. Além do sinal da cruz, cujo uso frequente é muito recomendado, repisa diversas vezes ao dia às crianças o nome e a influência necessária do celeste Consolador, emprega ela mil outros meios de mantê-lo sempre em face de seu pensamento. Qual seja, junto com o Pai e o Filho, o objeto invariável da liturgia, deseja a Igreja que uma festa, soleníssima a cada ano, de geração em geração, recorde o reconhecimento das nações batizadas, recorde aquele a quem o mundo tudo deve: luz, caridade, liberdade, civilização no tempo, glorificação na eternidade.

... Na incompreensível ternura para com os filhos dos homens, Deus em pessoa digna-se habitar sobre a terra: permite que lhe erijam templos. Quem os tornará dignos, estes templos materiais? Quem fará novos céus? É o mesmo Espírito que das castas entranhas de Maria erigiu o santuário do Verbo eterno. Ao chamado da Igreja, descerá até às moradas terrestres, as purificará, as ungirá com sua sagrada presença, e para sempre as fará agradáveis a Deus e respeitáveis aos homens. A invocação solene é o começo da imponente dedicação, que vai pedir com instância por sobre o trono o Espírito santificante: Veni, creator Spiritus.

Consagrar-lhe-ão augustíssimos templos. Aos pobres, aos órfãos, aos doentes, dar-se-ão padres e madres, irmãos e irmãs que lhes esposam os sofrimentos, aliviam as necessidades, desde o berço até à tumba e mais além. Quem operara tal milagre, desconhecido do mundo até antes do Pentecostes cristão? A partir de então, invocar-se-á o Espírito de devoção. Como no dia do Cenáculo, ele descerá; novos corações surgirão da ação de seu poder, e o mundo terá, nos religiosos e religiosas, contínuas gerações redivivas de mártires e apóstolos da caridade: Veni, creator Spiritus.

... Quer dizer isso, para as jovens gerações que entram no embate da vida, receber a terceira pessoa da Santíssima Trindade? é por isso que a Igreja multiplica os esforços de solicitude materna. Instruções prolongadas, orações públicas e particulares, purificação da alma pelos sacramentos, anúncio solene do pontífice: tudo é posto em ação para de cada paróquia fazer um novo cenáculo. Junto com muitos outros, estes são os meios que sem cessar emprega a Igreja, para tornar o Espírito Santo sempre presente à memória e ao coração de seus filhos. Há como repetir com maior força a contínua necessidade que temos dele, enquanto homens e cristãos? É permitido afastar as recomendações tão instantes da mais sábia das mães? Não haveria ingratidão em esquecê-la? Qual dentre as criaturas possui todos seus dons? Não haveria perigo na pretensão de seguirmos sem ele, rodeados de inimigos que somos?

... Esta época, tão confiada em ser mestra de si mesma, como se encontra? Interroguemos seus atos e tendências. O desarvorado luxo que a devora e convida a grandes brados a formidável reação do pobre contra o rico, o socialismo; o sacrifício perpétuo, e a cada dia mais comum, da consciência, da honra, da inteligência, da vida pública e privada ao culto da carne; a insurreição generalizada, inaudita, obstinada das nações contra Deus e contra seu Cristo; as torrentes de doutrinas envenenadas, noite e dia espalhadas pelo mundo, terríveis semeaduras, seguidas inevitavelmente por colheitas piores ainda: é o Espírito Santo que inspira e faz todas essas coisas? Se não é o Espírito de vida, é o espírito da morte. A qual dos dois pertencerá o amanhã?

(Excertos da obra 'O Tratado do Espírito Santo', do Pe. Jean-Joseph Gaume; trad. Permanência)

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

... E A QUEDA

Os homens poderiam continuar para sempre na bem aventurada e única verdadeira vida dos santos no paraíso. Como a vontade do homem poderia, porém, voltar-se para vários caminhos, Deus assegurou-lhes esta graça que lhes havia concedido condicionando-a desde o início a duas coisas. Se eles guardassem a graça e retivessem o amor de sua inocência original, então a vida do paraíso seria sua, sem tristeza, dor ou cuidados, e após ela haveria a certeza da imortalidade no céu. Mas se eles se desviassem do caminho e se tornassem vis, desprezando seu direito natal à beleza, então viriam a cair sob a lei natural da morte e viveriam não mais no paraíso, mas, morrendo fora dele, continuariam na morte e na corrupção. 

Isto é o que a Sagrada Escritura nos ensina, ao proclamar a ordem de Deus: 'podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente' (Gn 2, 16-17). Certamente havereis de morrer, isto é, não apenas morrereis, mas permanecereis no estado de morte e corrupção.

Estarás talvez a divagar por que motivo estamos discutindo a origem do homem se nos propusemos a falar sobre o Verbo que se fez homem. O primeiro assunto é de importância para o último por este motivo: foi justamente o nosso lamentável estado que fez com que o Verbo se rebaixasse, foi nossa transgressão que tocou o seu amor por nós. Pois Deus havia feito o homem daquela maneira e havia querido que ele permanecesse na incorrupção.

Os homens, porém, tendo voltado da contemplação de Deus para o mal que eles próprios inventaram, caíram inevitavelmente sob a lei da morte. Em vez de permanecerem no estado em que Deus os havia criado, entraram em um processo de uma completa degeneração e a morte os tomou inteiramente sob o seu domínio. Pois a transgressão do mandamento os estava fazendo retornarem ao que eles eram segundo a sua natureza e, assim como no início eles haviam sido trazidos ao ser a partir da não existência, passaram a trilhar, pela degeneração, o caminho de volta para a não existência. 

A presença e o amor do Verbo os havia chamado ao ser; inevitavelmente, então, quando eles perderam o conhecimento de Deus, juntamente com este eles perderam também a sua existência. Pois é somente Deus que existe, o mal é o não-ser, a negação e a antítese do bem. Pela natureza, de fato, o homem é mortal, já que ele foi feito do nada; mas ele traz também consigo a semelhança dAquele Que É, e se ele preservar esta semelhança através da contemplação constante, então sua natureza seria despojada de seu poder e ele permaneceria indegenerescente. De fato, é isto o que vemos escrito no Livro da Sabedoria: 'A observância de suas leis é a garantia da imortalidade' (Sb 6, 18). E, incorrompido, o homem seria como Deus, conforme o diz a própria Escritura, onde afirma: Eu disse: 'Sois deuses, e todos filhos do Altíssimo. Mas vós como homens morrereis, caireis como um príncipe qualquer' (Sl 81, 6).

Esta, portanto, era a condição do homem. Deus não apenas o havia feito do nada, mas também lhe tinha graciosamente concedido a sua própria vida pela graça do Verbo. Os homens, porém, voltando-se das coisas eternas para as coisas corruptíveis, pelo conselho do demônio, tornaram-se a causa de sua própria degeneração para a morte, porque, conforme dissemos antes, embora eles fossem por natureza sujeitos à corrupção, a graça de sua união com o Verbo os tornava capazes de escapar na lei natural, desde que eles retivessem a beleza da inocência com a qual haviam sido criados. Isto é o mesmo que dizer que a presença do Verbo junto a eles lhes fazia de escudo, protegendo-os até mesmo da degeneração natural, conforme também o diz o Livro da Sabedoria: 'Deus criou o homem para a imortalidade e como uma imagem de sua própria eternidade mas, pela inveja do demônio, entrou no mundo a morte' (Sb 2, 23).

Quando isto aconteceu, os homens começaram a morrer e a corrupção correu solta entre eles, tomou poder sobre os mesmos até mais do que seria de se esperar pela natureza, sendo esta a penalidade sobre a qual Deus os havia avisado prevenindo-os acerca da transgressão do mandamento. Na verdade, em seus pecados os homens superaram todos os limites. No início inventaram a maldade; envolvendo-se desta maneira na morte e na corrupção, passaram a caminhar gradualmente de mal a pior, não se detendo em nenhum grau de malícia, mas, como se estivessem dominados por uma insaciável apetite, continuamente inventando novos tipos de pecados. 

Os adultérios e os roubos se espalharam por todos os lugares os assassinatos e as rapinas encheram a terra, a lei foi desrespeitada para dar lugar à corrupção e à injustiça, todos os tipos de iniquidades foram praticados por todos, tanto individualmente como em comum. Cidades fizeram guerra contra cidades, nações se levantaram contra nações, e toda a terra se viu repleta de divisões e lutas, enquanto cada um porfiava em superar o outro em malícia. Até os crimes contrários à natureza não foram desconhecidos, conforme no-lo diz o apóstolo mártir de Cristo: 'suas próprias mulheres mudaram o uso natural em outro uso, que é contra a natureza; e os homens também, deixando o uso natural da mulher, arderam nos seus desejos um para com o outro, cometendo atos vergonhosos com o seu próprio sexo, e recebendo em suas próprias pessoas a recompensa devida pela sua perversidade' (Rm 1, 26-27).

(Excertos da obra 'A criação e a Queda' de Santo Atanásio)

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (XXII)

 Carta Encíclica LIBERTAS PRAESTANTISSIMUM 

 [20 de junho de 1888]

Papa Leão XIII (1878 - 1903)

sobre a liberdade humana


Exórdio: Excelência e conceito da liberdade

1. A liberdade, excelente bem da natureza e exclusivo apanágio dos seres dotados de inteligência ou de razão, confere ao homem uma dignidade em virtude da qual ele é colocado entre as mãos do seu conselho e se torna senhor de seus atos. E o que, todavia, é principalmente importante nesta prerrogativa é a maneira como ela se exerce, porque do uso da liberdade nascem os maiores males, assim como os maiores bens. Sem dúvida, está no poder do homem obedecer à razão, praticar o bem, caminhar direito ao seu fim supremo. Mas pode também seguir outra direção diferente e, seguindo espectros de bens falazes, destruir a ordem legítima e correr para uma perdição voluntária.

O libertador do gênero humano, Jesus Cristo, tendo restaurado e aumentado a antiga dignidade da nossa natureza, fez sentir sua influência principalmente sobre a vontade mesma do homem; e, pela sua graça, que lhe prodigalizou os socorros, pela felicidade eterna, de que lhe abriu a perspectiva no Céu, elevou-o a um estado melhor. E, por um motivo semelhante a Igreja bem mereceu sempre deste dom excelente da nossa natureza e não cessará de bem merecer dele, pois que é a ela que pertence assegurar aos benefícios, que nós devemos a Jesus Cristo, a sua propagação em toda a consecução dos séculos. E, contudo, há um grande número de homens que creem que a Igreja é adversária da liberdade humana. A causa disto está na ideia defeituosa, e como ao avesso, que se faz da liberdade; porque, com esta mesma alteração da sua noção, ou com a exagerada extensão que se lhe dá, chega-se a aplicá-la a muitas coisas, nas quais o homem, a julgar segundo a reta razão, não pode ser livre.

Erros sobre a liberdade

2. Já falamos algures, e principalmente na Encíclica Immortale Dei (sobre a Constituição Cristã dos Estados), daquilo a que chamam as liberdades modernas; e, distinguindo nelas o bem daquilo que lhe é oposto, nós estabelecemos ao mesmo tempo que tudo o que essas liberdades contêm de bom é tão antigo como a verdade, como um elemento corrompido, produzido pela perturbação dos tempos e pelo desordenado amor à inovação. Mas, visto que muitos se obstinam em ver nestas liberdades, mesmo no que elas contêm de vicioso, a mais bela glória da nossa época e o necessário fundamento das constituições políticas, como se sem elas se não pusesse imaginar o governo perfeito, pareceu-nos necessário para o interesse público, em face do qual nós nos colocamos, tratar expressamente desta questão.

A - A LIBERDADE MORAL NO INDIVÍDUO

3. O que diretamente nós temos em vista é a liberdade moral, considerada quer nos indivíduos, quer na sociedade. É bom, entretanto, dizer em primeiro lugar algumas palavras sobre a liberdade natural, a qual, apesar de ser completamente distinta da liberdade moral, é contudo a fonte e o princípio de onde toda a espécie de liberdade dimana por si mesma e como espontaneamente.

A liberdade natural é própria dos seres racionais

4. Esta liberdade, que certamente é para nós a voz da natureza, o juízo e senso comum de todos os homens não a reconhecem senão aos seres que têm o uso da inteligência ou da razão, e é nela que consiste manifestamente a causa que nos faz considerar o homem responsável pelos seus atos. E não podia ser de outra maneira; porque, ao passo que os animais não obedecem senão aos sentidos e não são impelidos senão pelo instinto natural a procurar o que lhes é útil ou a evitar o que lhes seria prejudicial, o homem tem, em cada uma das ações de sua vida, a razão para o guiar. Ora, a razão, relativamente aos bens deste mundo, diz-nos de todos e de cada um que eles podem indiferentemente ser ou não ser; donde se conclui que, não lhes parecendo nenhum deles absolutamente necessário, ele dá à vontade o poder de opção para escolher o que lhe apraz. Mas se o homem pode julgar da contingência, como se diz, dos bens de que nós falamos, é porque ele tem uma alma simples de sua natureza, espiritual e capaz de pensar; uma alma que, sendo tal, não tira a sua origem das coisas corpóreas, visto que delas não depende na sua conservação; mas que, criada imediatamente por Deus e ultrapassando com uma imensa distância a condição comum dos corpos, tem o seu modo próprio e particular de vida e de ação: donde resulta que, compreendendo pelo seu pensamento as razões imutáveis e necessárias da verdade e do bem, vê que estes bens particulares não são de modo algum bens necessários. Assim provar que a alma humana está desligada de todo o elemento mortal e é dotada da faculdade de pensar, é estabelecer ao mesmo tempo a liberdade natural sobre o seu mais sólido fundamento.

A Igreja Defensora da Liberdade

5. Ora, esta doutrina da liberdade como a da simplicidade, espiritualidade e imortalidade da alma humana, ninguém a prega mais alto e a afirma com mais constância do que a Igreja Católica; ela a tem ensinado em todos os tempos e a defende como um dogma. Mais ainda: perante os ataques dos heréticos e dos fautores de novas opiniões, a Igreja tem tomado a liberdade sob a sua proteção e tem salvado da ruína este grande bem do homem. A este respeito, os monumentos da história testemunham a energia com repeliu os esforços insanos dos maniqueus e outros; e, em tempos mais recentes, ninguém ignora com que zelo e força, quer no Concílio de Trento, quer mais tarde contra os sectários de Jansênio, ela combateu pela liberdade do homem, não deixando, em nenhum tempo e lugar, tomar incremento ao fatalismo.

Noção de liberdade

6. A liberdade, portanto, é, como temos dito, herança daqueles que receberam a razão ou a inteligência em partilha; e esta liberdade, examinando-se a sua natureza, outra coisa não é senão a faculdade de escolher entre os meios que conduzem a um fim determinado. É neste sentido que aquele que tem a faculdade de escolher uma coisa entre alguma outra, é senhor dos seus atos. Ora, toda a coisa aceita com o fim de obter por ela uma outra, pertence ao gênero do bem que se chama útil; e tendo o bem como característica operar propriamente sobre o apetite, é mister concluir daí que o livre arbítrio é a característica da vontade, ou antes é vontade mesma, enquanto nos seus atos ela tem a faculdade de escolher. Mas é impossível à vontade mover-se, se o conhecimento da inteligência, como uma luz, não a esclarece primeiramente: isto é, que o bem desejado pela vontade é necessariamente o bem quanto conhecido pela razão. E isto tanto mais que, em toda a volição, a escolha é sempre precedida de um juízo sobre a verdade dos bens e sobre a preferência que devemos conceder a um deles sobre os outros. Ora, julgar é da razão, não da vontade; não se pode razoavelmente duvidar disto. Admitido, pois, que a liberdade reside na vontade, que por sua natureza é um apetite obediente à razão, segue-se que ela, como a vontade, tem por um bem conforme à razão.

Perfeição e imperfeição da liberdade

7. Todavia, não possuindo cada uma destas faculdades a perfeição absoluta, pode suceder, e sucede frequentemente, que a inteligência proponha à vontade um objeto que, em lugar de uma bondade real, não tem senão a aparência, uma sombra de bem, e que a vontade contudo se aplique. Mas assim como o poder enganar-se, e enganar-se realmente, é uma falta que acusa a ausência da perfeição integral na inteligência, assim também aderir a um bem falso e enganador, ainda que seja um indício de livre arbítrio, constitui contudo um defeito da liberdade, como a doença o é da vida. Igualmente a vontade, só pelo fato de que depende da razão, cai num vício radical que não é senão a corrupção e o abuso da liberdade. Eis por que Deus, a perfeição infinita que, sendo soberanamente inteligente e a bondade por essência, é também soberanamente livre, não pode de nenhuma forma querer o mal moral. E o mesmo sucede com os bem aventurados do céu, graças à intuição que têm do soberano bem. É esta a justíssima observação que Santo Agostinho e outros faziam contra os pelagianos: 'Se a possibilidade de enganar-se no bem fosse da essência e da perfeição da liberdade, então Deus, Jesus Cristo, os anjos, os bem aventurados, entre os quais este poder não existe, ou não seriam livres, ou, pelo menos, o não seriam tão perfeitamente como o homem em seu estado de prova e imperfeição'.

O Doutor Angélico ocupou-se frequente e longamente desta questão; e da sua doutrina resulta que a faculdade de pecar não é uma liberdade, mas uma escravidão. Muito sutil é a sua argumentação sobre as palavras do Senhor Jesus: 'Aquele que comete o pecado é escravo do pecado' (Jo 8, 34). Todo ser é o que lhe convém segundo a natureza. Logo, quando se move por um agente exterior, não age por si mesmo, mas pelo impulso de outrem, o que é próprio de escravo. Ora, segundo a natureza, o homem é racional. Por isso quando se move segundo a razão, é por um movimento próprio que ele se move, e opera por si mesmo, o que é essência da liberdade; mas, quando peca, procede contra a razão, e então é como se fosse posto em movimento por um outro e sujeito a uma dominação estranha. É por isto que 'aquele que comete o pecado é escravo do pecado'. Era isto o que havia visto claramente a filosofia antiga, aquela principalmente cuja doutrina era que ninguém é livre como o sábio, e que reservava, como é sabido, o nome de sábio àquele que se tivesse acostumado a viver constantemente segundo a natureza, isto é, na honestidade e na virtude.

Proteção e auxílios da liberdade ; a lei

8. Sendo tal a condição da liberdade humana, era necessário ministrar-lhe auxílios e socorros capazes de dirigir todos os seus movimentos para o bem e de desviá-los do mal. Sem isto, a liberdade teria sido para o homem uma coisa muito prejudicial. E primeiramente era-lhe necessária uma lei, isto é, uma norma do que era preciso fazer e omitir. Falando com propriedade, não pode dar-se isto entre os animais que operam por necessidade, porque todos os seus atos os realizam sob o impulso da natureza, sendo-lhes impossível adotar por si mesmos outro modo de ação. Mas os seres que gozam de liberdade têm por si mesmos o poder de operar ou não, proceder de tal ou qual forma, visto que o objeto da sua vontade não o escolhem senão quando intervenha o juízo da razão, de que nós falamos. Este juízo diz-nos não somente o que é bem em si ou o que é o mal, mas também o que é bom e por conseguinte se deve realizar, ou o que é mau e por conseguinte se deve evitar. É, com efeito, a razão que prescreve à vontade o que ela deve procurar ou de que deve fugir para que o homem possa um dia atingir esse fim supremo, para o qual deve dirigir todos os seus atos. Ora, esta ordenação da razão é o que se chama lei. Se, pois, a lei é necessária ao homem, é no seu mesmo livre arbítrio, isto é, na necessidade que tem de não se por em desacordo com a reta razão, que é preciso procurar, como na sua raiz, a causa primeira. E nada se pode dizer ou imaginar de mais absurdo e mais contrário ao bom senso do que esta asserção: o homem sendo livre por natureza, deve estar isento de toda lei. Se assim fosse, resultaria que é necessário, para a liberdade, não estar de acordo com a razão, quando a verdade é inteiramente o contrário, isto é, o homem deve estar sujeito à lei precisamente por que é livre por natureza. Assim, pois, é a lei que guia o homem nas suas ações e é ela também que, pela sanção das recompensas e das penas, o leva a praticar o bem e o afasta do pecado.

Tal é, acima de todas, a lei natural que está escrito e gravada no coração de cada homem, porque é a razão mesma do homem que lhe ordena a prática do bem e lhe interdiz o pecado. Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei, se ela não fosse órgão e intérprete de uma razão mais alta à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem obediência. Sendo, na verdade, a missão da lei impor deveres e atribuir direitos, a lei assenta completamente sobre a autoridade, isto é, sobre um poder verdadeiramente capaz de estabelecer esses deveres e definir esses direitos, capaz também de sancionar as suas ordens por castigos e recompensas; coisas todas que não poderiam evidentemente existir no homem, se ele desse a si próprio, como legislador supremo, a regra dos seus próprios atos. Disto se conclui, pois, que a lei natural outra coisa não é senão a lei eterna gravada nos seres dotados de razão, inclinando-os para o ato e o fim que lhes convenha; e este não é senão a razão eterna de Deus, Criador e Governador do mundo.

A graça de Deus

9. A esta regra de nossos atos, a estes freios ao pecado, a bondade de Deus quis ajuntar certos auxílios, singularmente próprios para defender e guiar a vontade do homem. Sobressai, no primeiro lugar destes auxílios, o poder da graça divina, a qual esclarecendo a inteligência e inclinando incessantemente para o bem moral a vontade salutarmente reforçada e fortificada, torna ao mesmo tempo mais fácil e mais seguro o exercício da nossa liberdade natural. E seria afastar-se completamente da verdade imaginar que, por meio desta intervenção de Deus, os movimentos da vontade perdem a sua liberdade; porque a influência da graça divina alcança o íntimo do homem e se harmoniza com a sua propensão natural, pois que tem sua fonte nAquele que é o autor da nossa alma e da nossa vontade e move todos os seres de uma maneira conforme à natureza deles. Pode mesmo dizer-se que a graça divina, como observa o Doutor Angélico, por isso mesmo que dimana do autor da natureza é maravilhosa e naturalmente apta para proteger todas as naturezas individuais e para conservar a cada uma o seu caráter, a sua ação, a sua energia.

B - A LIBERDADE MORAL NA SOCIEDADE

A lei humana

10. O que acaba de ser dito da liberdade dos indivíduos, é fácil aplicá-los aos homens que a sociedade civil une entre si; porque o que a razão e a lei natural fazem para os indivíduos, a lei humana, promulgada para o bem comum dos cidadãos, o realiza para os homens que vivem em sociedade. Mas, entre as leis humanas, há as que têm por objeto o que é bem ou mal naturalmente, acrescentando à prescrição de praticar um e evitar o outro uma sanção conveniente. Tais leis não têm de modo algum sua origem na sociedade dos homens; porque, assim como não foi a sociedade que criou a natureza humana, também não foi ela que fez com que o bem esteja em harmonia e o mal em desacordo com essa natureza; mas tudo isto é anterior à própria sociedade humana, e deve absolutamente estar ligado à lei natural e portanto à lei eterna. Como se vê, os preceitos de direito natural compreendidos nas leis dos homens não têm somente o valor da lei humana, mas supõem primeiro que tudo essa autoridade muito mais elevada e muito mais augusta que brota da lei natural e da lei eterna. Neste gênero de leis, a missão de legislador civil reduz-se a obter, por meio de uma disciplina comum, a obediência dos cidadãos, punindo os maus e os viciosos, com o fim de os afastar do mal e de os chamar ao bem, ou ao menos de os impedir de ferir a sociedade e de lhe ser prejudicial.

11. Quanto às outras prescrições do poder civil, não procedem imediata ou diretamente do direito natural; são dele consequências mais afastadas e indiretas, e têm por fim precisar os pontos diversos sobre os quais a natureza não se tinha pronunciado senão de uma maneira vaga e geral. Assim, a natureza ordena aos cidadãos que contribuam com o seu trabalho para a tranquilidade e prosperidade pública: em que medida, em que condições, sobre que objetos, estabelece-o a sabedoria dos homens e não a natureza. Ora estas regras particulares de proceder, criadas por uma razão prudente e intimadas por um poder legítimo, constituem o que propriamente se chama lei humana. Visando o fim próprio da comunidade, esta lei ordena a todos os cidadãos que concorram para ele, e proíbe-lhes que dele se afastem; e enquanto segue a natureza e se harmoniza com as suas prescrições, ela conduz-nos ao que é bem e afasta-nos do oposto. Por onde se vê que é absolutamente na lei eterna de Deus que é mister buscar a regra e a lei da liberdade, não somente para os indivíduos, mas também para as sociedades humanas.

A lei eterna, norma e regra da liberdade

12. Numa sociedade de homens, portanto, a liberdade digna deste nome não consiste em fazer tudo o que nos apraz: isso seria uma confusão extrema no Estado, uma perturbação que conduziria à opressão. A liberdade consiste em que, com o auxílio das leis civis, possamos mais facilmente viver segundo as prescrições da lei eterna. E para aqueles que governam, a liberdade não é o poder de mandarem ao acaso e segundo seu bel-prazer: isso seria uma desordem não menos grave e extremamente perigosa para o Estado; mas a força das leis humanas consiste em que elas sejam olhadas como uma derivação da lei eterna e que não há nenhuma das suas prescrições que não seja contida nela como no princípio de todo direito. Santo Agostinho disse com muita sabedoria (De lib. Arb., lib. I, c. 4, n. 15): 'Eu penso, e vós bem vedes também, que, nesta lei temporal, nada há de justo e de legítimo que os homens não tenham ido haurir na lei eterna'. Suponhamos, pois, uma prescrição de um poder qualquer que esteja em desacordo com os princípios da reta razão e com os interesses do bem público: não teria força alguma de lei, porque não seria uma regra de justiça e afastaria os homens do bem, para o qual a sociedade foi formada.

13. Por sua natureza, pois, e sob qualquer aspecto que seja considerada, quer nos indivíduos, quer nas sociedades, e entre os superiores não menos que entre os subordinados, a liberdade humana supõe a necessidade de obedecer a uma regra suprema e eterna; e esta regra não é outra senão a autoridade de Deus impondo-nos as suas ordenações ou as suas proibições, autoridade soberanamente justa que, longe de destruir ou de diminuir, de qualquer modo, a liberdade dos homens, a protege e a leva à sua perfeição; porque a verdadeira perfeição de todo o ser é tender e atingir o seu fim: ora, o fim supremo, para o qual deve tender a liberdade humana, é Deus.

A ação da Igreja

14. São estas máximas de doutrina, muito verdadeira e muito elevada, conhecidas mesmo pela luz da razão, que a Igreja, instruída pelos exemplos e pela doutrina do seu Divino Autor, tem propagado e afirmado por toda a parte, e segundo os quais ela jamais tem cessado de regrar a sua missão e de informar as nações cristãs. Pelo que toca aos costumes, as leis evangélicas não somente se avantajam muito a toda a sabedoria pagã, mas elas chamam o homem e o formam verdadeiramente numa santidade desconhecida dos antigos; e, aproximando-o de Deus, levam-no à posse duma liberdade mais perfeita.

É assim que sempre se tem evidenciado o maravilhoso poder da Igreja para a proteção da liberdade civil e política dos povos. Não há necessidade de enumerar os seus benefícios deste gênero. Basta lembrar a escravidão, essa velha vergonha das nações pagãs, que os seus esforços e principalmente a sua feliz intervenção fizeram desaparecer. O equilíbrio dos direitos, como a verdadeira fraternidade entre os homens, foi Jesus Cristo quem primeiro a proclamou; e à sua voz respondeu a dos seus Apóstolos, declarando que não há nem judeu, nem grego, nem bárbaro, nem escravo, mas que todos são irmãos em Cristo. Sobre este ponto o ascendente da Igreja é tão grande e tão reconhecido que, aonde quer que chega a sua influência — tem-se a experiência disso — a grosseria dos costumes não pode subsistir por muito tempo. À brutalidade sucede em breve a doçura, às trevas da barbárie a luz da verdade. E a Igreja não tem cessado jamais de fazer sentir mesmo aos povos, educados pela civilização, seus benefícios, resistindo aos caprichos da iniquidade, afastando a injustiça da cabeça dos inocentes ou dos fracos, e empregando-se, enfim, em estabelecer as coisas públicas uma organização que possa, pela sua equidade, tornar-se amada dos cidadãos ou fazer-se temer dos estrangeiros pelo seu poder.

A Igreja, defensora da autoridade

15. É, além disso, um dever real respeitar o poder e submeter-se a leis justas; donde deriva que a autoridade vigilante das leis preserva os cidadãos das empresas criminosas dos maus. O poder legítimo vem de Deus e aquele que resiste ao poder, resiste à ordem estabelecida por Deus; assim é que a obediência adquire uma nobreza maravilhosa, pois que se não inclina senão da mais justa e mais alta das autoridades. Mas, desde que falta o direito de mandar, ou o mandato é contrário à razão, à autoridade de Deus, então é legítimo desobedecer aos homens a fim de obedecer a Deus. Deste modo, achando-se as vias da tirania fechadas, o poder não chamará tudo a si; estão salvaguardados os direitos de cada cidadão, os da sociedade doméstica, os de todos os membros da nação; e todos enfim participam da verdadeira liberdade, aquela que consiste, como demonstramos, em que cada um possa viver segundo as leis e segundo a reta razão.

A falsa liberdade

16. Se, nas discussões que travam sobre a liberdade, se entendesse esta liberdade legítima e honesta, tal como a razão e a nossa palavra a acabam de descrever, ninguém ousaria lançar à Igreja a censura que se lhe lança com uma soberana injustiça, a saber: que ela é inimiga da liberdade dos indivíduos ou da liberdade dos Estados. Mas há um grande número de homens que, a exemplo de Lúcifer, de quem são estas palavras criminosas: 'Não obedecerei' — entendem pelo nome de liberdade o que não é senão pura e absurda licença. Tais são aqueles que pertencem à escola tão espalhada e tão poderosa desses homens que foram tirar o seu nome à palavra liberdade, querendo ser chamados liberais.

O Liberalismo radical

17. E, com efeito, o que são os partidários do Naturalismo e do Racionalismo em filosofia, os fautores do Liberalismo o são na ordem moral e civil, pois que introduzem nos costumes e na prática da vida os princípios postos pelos partidários do Naturalismo. Ora, o princípio de todo o racionalismo é a supremacia da razão humana, que, recusando a obediência devida à razão divina e eterna e pretendendo não depender senão de si mesma, se arvora em princípio supremo, fonte e juiz da verdade. Tal é a pretensão dos sectários do Liberalismo, de que nós falamos: não há, na vida prática, nenhum poder divino ao qual se tenha de obedecer, mas cada um é para si sua própria lei. Daí procede essa moral que se chama independente, e que, sob a aparência da liberdade, afastando a vontade da observância dos preceitos divinos, conduz o homem a uma licença ilimitada.

É o que, finalmente, resulta disto, principalmente nas sociedades humanas, é fácil de ver; porque uma vez fixada essa convicção no espírito de que ninguém tem autoridade sobre o homem, a consequência é que a causa eficiente da comunidade civil e da sociedade deve ser procurada, não num princípio exterior ou superior ao homem, mas na livre vontade de cada um, e que o poder público dimana da multidão como sendo a sua primeira fonte; além disso, tal como a razão individual é para o indivíduo a única lei que regula a vida particular, a razão coletiva deve sê-lo para a coletividade na ordem dos negócios públicos; daí o poder pertence ao número, e as maiorias criam o direito e o dever.

18. Mas a oposição de tudo isto com a razão resulta suficientemente do que dissemos. Efetivamente, pretender que não há nenhum laço entre o homem ou a sociedade civil e Deus criador e, por conseguinte, supremo legislador de todas as coisas, repugna absolutamente à natureza, e não somente à natureza do homem, mas a de todo o ser criado; pois todo o efeito está necessariamente unido por algum laço à causa de que procede; e convém a toda a natureza e pertence à perfeição de cada uma que permaneça no lugar e no plano que lhe é marcado pela ordem natural, isto é, que o ser inferior se submeta e obedeça àquele que lhe é superior.

19. Mas, ainda, tal doutrina traz o maior dano, tanto ao indivíduo como à sociedade. Realmente, se o homem faz depender só e unicamente do juízo da razão humana o bem e o mal, suprime a diferença essencial entre o bem e o mal; o honesto e o desonesto já não diferem na realidade, mas somente na opinião e no juízo de cada um: o que agrada será permitido. Desde que se admita semelhante doutrina moral, que não basta para reprimir ou pacificar os movimentos desordenados da alma, dá-se acesso a todas as corrupções da vida. Nos negócios públicos, o poder de governar separa-se do princípio verdadeiro e natural que lhe dá toda a sua força para procurar o bem comum; a lei que determina o que se deve fazer e o que é necessário evitar é abandonada aos caprichos da maioria, que é o mesmo que preparar o caminho à dominação tirânica. Quando se repudia o poder de Deus sobre o homem e sobre a sociedade humana, é natural que a sociedade deixe de ter religião, e tudo o que toca à religião torna-se desde então objeto da mais completa indiferença. Armada, pois, da ideia da soberania, a multidão facilmente entrará no caminho da sedição e das desordens, e, não existindo já o freio do dever e da consciência, nada mais resta do que a força, que é bem fraca, por si só, para conter as paixões populares. Temos a prova disto nessas lutas quase diárias empenhadas contra os socialistas e outras seitas sediciosas que trabalham há tanto tempo para arrasar o Estado até aos seus alicerces. Julguem, pois, e digam os que possuem a justa inteligência das coisas, se tais indivíduos servem à liberdade e à dignidade do homem, ou se não fazem dela a destruição completa.

O Liberalismo mitigado

20. Sem dúvida, tais opiniões, espantosas pela sua mesma enormidade e sua oposição manifesta com a verdade, bem como a imensidade dos males, de que vimos elas serem causa, impedem os partidários do Liberalismo de aderirem todos a elas. Constrangidos mesmo pela força da verdade, muitos deles não hesitam em reconhecer, confessam-no até espontaneamente, que, entregando-se a tais excessos, com desprezo da verdade e da justiça, a liberdade se vicia e degenera abertamente em licença, sendo necessário, portanto, que ela seja dirigida e governada pela reta razão, e, por consequência, que se submeta ao direito natural e à lei divina e eterna. Mas julgam dever parar aqui e não admitem que o homem livre deva submeter-se às leis que a Deus apraz impor-nos por uma outra via que não a razão natural.

21. Mas nisto estão absolutamente em desacordo consigo mesmos. Pois se é necessário, como eles próprios convêm (e quem poderá razoavelmente deixar de convir nisto?), se é necessário obedecer à vontade de Deus legislador, pois o homem todo inteiro depende de Deus e deve tender para Deus, daqui se segue que ninguém pode por limites ou condições à sua autoridade legislativa sem, com isso mesmo, se colocar em oposição com a obediência devida a Deus. Ainda mais: se a razão humana se arroga a pretensão de querer determinar quais os direitos de Deus e os seus deveres para com Ele, o respeito pelas leis divinas terá nela mais aparência que realidade; e o seu juízo valerá mais que a autoridade e a providência divinas.

É, pois, necessário que a regra da nossa vida seja por nós constante e religiosamente pedida não somente à lei eterna, mas também a todas e a cada uma das leis que Deus, na sua infinita sabedoria, no seu infinito poder e pelos meios que lhe aprouveram, quis transmitir-nos e que nós podemos conhecer com segurança por sinais evidentes e não deixam nenhum lugar à dúvida. E isto tanto melhor que essas espécies de leis, tendo o mesmo princípio, o mesmo autor que a lei eterna, harmonizam-se perfeitamente com a razão e aperfeiçoam o direito natural: além de que, aí encontramos incluído o magistério do próprio Deus que, para impedir que a nossa inteligência e a nossa vontade caiam no erro, as conduz e guia a ambas com a mais benévola direção. Deixemos, pois, santa e inviolavelmente reunido aquilo que não pode nem deve ser separado, e que Deus nos encontre, em todas as coisas, segundo o ordena a própria razão natural, submissos e obedientes às suas leis.

Liberalismo do Estado

22. Outros são um pouco mais moderados, mas sem serem mais consequentes consigo mesmos. Segundo estes, as leis divinas devem regular a vida e o modo de proceder dos particulares, mas não o dos Estados; é permitido, nas coisas públicas, desviar-se das ordens de Deus e legislador sem as ter em conta alguma. Donde nasce esta perniciosa consequência da separação da Igreja e do Estado. Mas o absurdo destas opiniões facilmente se compreende. É necessário - a própria natureza o proclama - é necessário que a sociedade dê aos cidadãos os meios e as facilidades de passarem a sua vida segundo a honestidade, isto é, segundo as leis de Deus, pois que Deus é o princípio de toda a honestidade e de toda a justiça. Repugnaria, pois, absolutamente que o Estado pudesse desinteressar-se destas mesmas leis ou ir mesmo contra elas, fosse no que fosse.

23. Além disso, aqueles que governam os povos devem certamente agregar à causa pública, pela sabedoria das suas leis, não somente as vantagens e os bens exteriores, mas também e principalmente os bens da alma. Ora, para conseguir estes bens, nada mais eficaz pode imaginar-se do que essas leis de que Deus é o autor; e, por isso, aqueles que não querem, no governo dos Estados, ter em conta alguma as leis divinas, desviam realmente o poder político da sua instituição, e da ordem prescrita pela natureza.

Mas há uma observação ainda mais importante e que nós mesmos temos recordado mais de uma vez em outras ocasiões: e é que o poder civil e o poder sagrado, conquanto não tenham o mesmo fim e não marchem pelos mesmos caminhos, devem contudo encontrar-se algumas vezes, no desempenho das suas funções. Ambos, com efeito, exercem a sua autoridade sobre os mesmos súditos e, mais de uma vez, sobre as mesmas matérias, embora sob pontos de vista diferentes. O conflito, nesta ocorrência, seria absurdo e repugnaria inteiramente à infinita sabedoria dos conselhos divinos. Deve, portanto, necessariamente haver um meio, um processo para fazer desaparecer as causas de conflitos e lutas e estabelecer o acordo na prática. E este acordo não é sem razão que foi comparado à união que existe entre a alma e o corpo, e isto para maior vantagem de ambos, pois a separação é particularmente funesta ao corpo, porque o priva da vida.

C - CONSEQUÊNCIAS DO LIBERALISMO

Liberdade de culto nos particulares

24. Mas, para evidenciar melhor estas verdades, é mister consideremos separadamente as diversas espécies de liberdades que se dão como conquistas da nossa época. E primeiramente, a propósito dos indivíduos, examinemos esta liberdade tão contrária à virtude da religião, a liberdade de culto, como lhe chamam, liberdade que se baseia no princípio de que é lícito a cada qual professar a religião que mais lhe agrade, ou mesmo não professar nenhuma. Mas, precisamente ao contrário, sem dúvida alguma, entre todos os deveres do homem, o maior e o mais santo é aquele que ordena ao homem que renda a Deus um culto de piedade e de religião. E este dever não é senão uma consequência do fato de nós termos sido criados pela vontade e providência de Deus, e de que, saídos dEle, devemos voltar a Ele.

25. Deve-se acrescentar que nenhuma virtude digna deste nome pode existir sem a religião, pois a virtude moral é aquela cujos atos têm por objeto tudo o que conduz a Deus considerado como supremo e soberano bem do homem; e por isso é que a religião, que 'pratica os atos tendo por fim direto e imediato a honra divina' (S. Th. 2-2, q. 81, a 6) é a rainha e, ao mesmo tempo, a regra de todas as virtudes. E se se pergunta qual, entre todas essas religiões opostas que têm curso, se deve seguir com exclusão das outras, a razão e a natureza unem-se para nos responder: a que Deus prescreveu e que é fácil de distinguir, graças a certos sinais exteriores pelos quais a divina Providência a quis tornar reconhecível, pois que em coisa de tanta importância o erro acarretaria consequências muito desastrosas. É por isso que oferecer ao homem a liberdade de que falamos, é dar-lhe o poder de desvirtuar ou abandonar impunemente o mais santo dos deveres, afastando-se do bem imutável, a fim de se voltar para o mal. Isto, já o dissemos, não é liberdade, mas uma depravação da liberdade, e uma escravidão da alma na abjeção do pecado.

Liberdade de culto no Estado

26. Encarada sob o ponto de vista social, esta mesma liberdade quer que o Estado não renda culto algum a Deus ou que não autorize nenhum culto público; que nenhuma religião seja preferida a outra, que todas sejam consideradas como tendo as mesmos direitos, sem mesmo ter atenção para com o povo, até quando esse mesmo povo faz profissão do catolicismo. Mas, para que assim fosse justo, seria necessário que realmente a comunidade civil não tivesse nenhum dever para com Deus ou que, tendo-o, pudesse impunemente afastar-se dele: duas coisas manifestamente falsas. Com efeito, não se pode por em dúvida que a reunião dos homens em sociedade seja obra da vontade de Deus; e isto quer se considere em seus membros, na sua forma que é autoridade, na sua causa, ou em número e importância das vantagens que ela procura ao homem. Foi Deus quem fez o homem para a sociedade e o uniu aos seus semelhantes, a fim de que as necessidades da sua natureza, às quais os seus esforços isolados não poderiam dar satisfação, a possam encontrar na comunidade. Eis aí por que a sociedade civil como sociedade deve necessariamente reconhecer Deus como seu princípio e seu autor, e, por conseguinte, render ao seu poder e à sua autoridade a homenagem do seu culto. Veda-o a justiça, e veda-o a razão que o Estado seja ateu ou, o que viria a dar no ateísmo, esteja animado a respeito de todas as religiões, como se diz, das mesmas disposições e conceder-lhes indistintamente os mesmos direitos.

27. Visto, pois, que é necessário professar uma religião na sociedade, deve-se professar a única que é verdadeira e que se reconhece, sem dificuldade, pelo menos nos países católicos, pelos sinais de verdade que com tão vivo fulgor ostenta em si mesma. Esta religião, os chefes de Estado a devem pois conservar e proteger, se querem, como é obrigação sua, prover prudente e utilmente aos interesses da comunidade. Pois o poder público foi estabelecido para utilidade daqueles que são governados, e conquanto ele não tenha por fim próximo senão conduzir os cidadãos à prosperidade desta vida terrestre é, contudo, para ele um dever não diminuir, mas pelo contrário aumentar, para o homem, a faculdade de atingir esse bem supremo e soberano, no qual consiste a eterna felicidade dos homens: o que se torna impossível sem a religião.

28. Mas tudo isso já o dissemos detalhadamente em outra parte. A única observação, que agora queremos fazer, é que uma liberdade deste gênero é muito prejudicial à liberdade verdadeira, quer dos governantes quer dos governados. A religião, pelo contrário, é-lhe maravilhosamente útil, porque faz remontar ao próprio Deus a origem primária do poder; porque impõe com gravíssima autoridade aos príncipes a obrigação de não esquecerem os seus deveres, e de conduzirem os povos com bondade e quase com um amor paternal.

Por outro lado, ela recomenda aos cidadãos a submissão do poder legítimo como aos representantes de Deus; une-os ao Chefe do Estado pelos laços, não somente de obediência, mas do respeito e do amor, proibindo-lhes a revolta e todas as empresas que possam perturbar a ordem e a tranquilidade do Estado, e que, em resumo, dão ocasião de reprimir com restrições mais fortes a liberdade dos cidadãos. Nada dizemos dos serviços prestados pela religião aos bons costumes, e pelos bons costumes à própria liberdade. Pois a razão o prova e a história o confirma: a liberdade, a prosperidade e o poder de uma nação aumentam em proporção à sua moralidade.

Liberdade da palavra e da imprensa

29. E agora continuemos estas considerações a respeito da liberdade de exprimir pela palavra ou pela imprensa tudo o que se quiser. Se esta liberdade não for justamente temperada, se ultrapassar os devidos limites e medidas, desnecessário é dizer que tal liberdade não é seguramente um direito. Pois o direito é uma faculdade moral, e, como dissemos e como se não pode deixar de repetir, seria absurdo crer que esta faculdade cabe naturalmente, e sem distinção nem discernimento à verdade e à mentira, ao bem e ao mal. A verdade e o bem há o direito de os propagar no Estado com liberdade prudente, a fim de que possam aproveitar o maior número; mas as doutrinas mentirosas, que são para o espírito a peste mais fatal, assim como os vícios que corrompem o coração e os costumes, é justo que a autoridade pública empregue toda a sua solicitude para os reprimir, a fim de impedir que o mal alastre para ruína da sociedade.

30. Os extravios de um espírito licencioso que, para a multidão ignorante, se convertem facilmente em verdadeira opressão, devem justamente ser punidos pela autoridade das leis, não menos que os atentados da violência cometidos contra os fracos. E esta repressão é tanto mais necessária, quanto é impossível ou dificílimo à parte, sem dúvida, mais numerosa da população precaver-se contra os artifícios de estilo e as sutilezas de dialética, principalmente quando tudo isso lisonjeia as paixões. Concedei a todos a liberdade de falar e escrever, e nada será poupado, nem mesmo as verdades primárias, esses grandes princípios naturais que se devem considerar como um nobre patrimônio comum a toda a humanidade. Assim, a verdade é, pouco e pouco, invadida pelas trevas e, o que muitas vezes sucede, estabelece-se com facilidade a dominação dos erros mais perniciosos e mais diversos. Tudo o que a licença então ganha perde a liberdade; pois ver-se-á sempre a liberdade crescer e consolidar-se à medida que a licença seja mais refreada.

31. Mas se se trata de matérias livres, que Deus deixou entregues às discussões dos homens, a todos é permitido emitir sobre elas a sua opinião e exprimi-la livremente. A natureza não se opõe a isto, porque com esta liberdade os homens não são levados a oprimir a verdade, antes é ela muitas vezes ocasião de a procurar e fazê-la conhecer.

Falsa liberdade de ensino

32. Quanto ao que chamam liberdade de ensino, também não é preciso julgá-la por modo diverso. Só a verdade deve penetrar nas almas, pois que é só nela que as naturezas inteligentes encontram o seu bem, o seu fim, a sua perfeição. Por isso, o ensino só deve ter por objeto coisas verdadeiras, e isto quer se dirija aos ignorantes quer aos sábios, a fim de que leve a uns o conhecimento da verdade, e aos outros a fortaleça. Por este motivo, o dever de todo aquele que se dedica ao ensino é, sem contradição, extirpar o erro dos espíritos e opor fortes barreiras à invasão das falsas opiniões. É, pois, evidente que a liberdade de que estamos tratando, arrogando-se o direito de tudo ensinar a seu modo, está em contradição flagrante com a razão e nasceu para produzir um transtorno completo nos espíritos. O poder público não pode consentir tal licença na sociedade senão com desprezo do seu dever. Tanto mais verdade é isto, que todos sabem de quanto peso é para os ouvintes a autoridade do professor e quão raro é que um discípulo possa julgar pó si mesmo da verdade do ensino do mestre.

Conceito da verdadeira liberdade de ensino

33. Eis aí, por que também esta liberdade, para que seja honesta, tem necessidade de ser restringida em determinados limites. É, pois, necessário que a arte do ensino não possa impunemente converter-se num instrumento de corrupção. Ora, a verdade, que deve ser o único objeto de ensino, é de duas espécies: a verdade natural e a sobrenatural. As verdades naturais, às quais pertencem os princípios da natureza e as conclusões próximas que deles deduz a razão, constituem como que o patrimônio comum do gênero humano; são como que o sólido fundamento sobre que assentam os costumes, a justiça, a religião e a própria existência da sociedade humana; e seria desde logo a maior das impiedades, a mais desumana das loucuras, deixá-las violar e destruir impunemente. Mas é necessário por não menos escrúpulo em conservar o magno e sagrado tesouro das verdades que o próprio Deus nos fez conhecer. Por um grande número de argumentos luminosos, muitas vezes repetidos pelos apologistas, foram estabelecidos certos pontos principais de doutrina, por exemplo: há uma revelação divina; o Filho único de Deus fez-se homem para dar testemunho da verdade; por Ele foi fundada uma sociedade perfeita, isto é, a Igreja, de que Ele mesmo é o Chefe e com a qual prometeu estar até a consumação dos séculos.

34. A esta sociedade quis Ele confiar todas as verdades que ensinara, com a missão de as guardar, de as desenvolver com autoridade legítima; e, ao mesmo temo, ordenou a todas as nações que obedecessem aos ensinamentos da sua Igreja como a Ele mesmo, sob pena de perda eterna para aqueles que isto transgredissem. Daqui ressalta claramente que o melhor e mais seguro mestre, para o homem, é Deus, fonte e principio de toda a verdade; é o Filho único que vive no seio do Pai, caminho, verdade, vida e luz verdadeira que esclarece todos os homens; e cujos ensinamentos devem ter por discípulos todos os homens: 'e eles serão todos ensinados por Deus' (Jo 6, 45). Mas para a fé e regra dos costumes, Deus fez a Igreja partícipe do seu divino privilégio de infalibilidade. Eis aí por que ela é grande e segura mestra dos homens e tem em si um direito inviolável à liberdade de ensinar. E, de fato, a Igreja, que nos ensinamentos recebidos do Céu encontra o seu próprio sustentáculo, nada tem tido tanto a peito como desempenhar, religiosamente a missão que Deus lhe confiou, e, sem se deixar intimidar pelas dificuldades que, por toda parte, a cercam, não tem cessado em tempo algum de combater pela liberdade do seu magistério. Foi por este meio que todo o mundo, liberto da miséria das suas superstições, encontrou na sabedoria cristã a sua regeneração.

35. Mas como a própria razão o ensina claramente: entre as verdades divinamente reveladas e as verdades naturais não pode haver real oposição, de sorte que toda a doutrina que contradiga àquelas será necessariamente falsa, segue-se que o divino magistério da Igreja, longe de por obstáculos ao amor do saber e ao desenvolvimento das ciências ou de retardar por qualquer modo o progresso da civilização é, pelo contrário, para estas coisas, uma vivíssima luz e uma segura proteção. E, por esta mesma razão, o próprio aperfeiçoamento da liberdade humana aproveita não pouco com a sua influência, segundo a máxima de Jesus Cristo Salvador, que o homem se torna livre pela verdade: 'Conhecereis a verdade, e a verdade vos fará livres' (Jo 8, 32).

Não há, pois, motivo para que a genuína liberdade se indigne e a ciência verdadeira se irrite contra as leis justas e necessárias, que devem regular os ensinamentos humanos, como o reclamam acordes a Igreja e a razão. Há mais: e é, que a Igreja, dirigindo principal e especialmente a sua atividade para a defesa da fé cristã, aplica-se também em favorecer o gosto de bons estudos em si mesmos têm alguma coisa de bom, de louvável, de desejável; e, além disso, toda a ciência, que é fruto da reta razão e corresponde à realidade das coisas, é de uma utilidade não medíocre até para esclarecer as verdades reveladas por Deus. E de fato, que imensos serviços a Igreja não prestou com o admirável cuidado com que conservou os monumentos da ciência antiga, com os institutos que abriu, por toda parte, às ciências, com o estímulo que sempre deu a todos os progressos, favorecendo dum modo particular as próprias artes que são a glória da civilização da nossa época.

36. Enfim, é necessário não esquecer que ainda há imenso campo aberto em que a atividade humana pode dilatar-se e exercer-se livremente a razão: referimo-nos às matérias que não têm uma conexão necessária com a doutrina da fé e dos costumes cristãos, ou sobre as quais a Igreja, não usando da sua autoridade, deixa aos sábios toda a liberdade de suas opiniões. Por estas considerações se vê de que espécie e de que qualidade e, neste particular, a verdade que os partidários do liberalismo reclamam e proclamam com igual ardor. Por um lado, atribuem a si mesmos, assim como ao Estado, uma licença tal que não há opinião, por mais perversa que seja, à qual não abram a porta e não deem livre passagem; por outro, suscitam à Igreja obstáculos sobre obstáculos, encerrando a liberdade dela nos limites mais estreitos que podem, quando aliás nenhum inconveniente há a recear dos ensinamentos da Igreja e antes se devem esperar deles as maiores vantagens.

Liberdade de consciência

37. Uma outra liberdade que também muito alto se proclama, é aquela a que dão o nome de liberdade de consciência. Se por isso se entende que cada qual pode indiferentemente, a seu bel-prazer, prestar ou deixar de prestar culto a Deus, os argumentos acima apresentados bastam para a sua refutação. Mas pode-se tomar no sentido de que o homem, no Estado tem o direito de seguir, segundo a consciência do seu dever, a vontade de Deus, e de cumprir os seus preceitos, sem que ninguém possa impedi-lo. Esta liberdade verdadeira, esta liberdade digna dos filhos de Deus, que protege tão gloriosamente a dignidade da pessoa humana, está acima de toda a opressão e de toda a violência, e foi sempre o objeto dos votos da Igreja e do seu particular afeto. Foi esta liberdade que os apóstolos reivindicaram com tanta constância, que os apologistas têm defendido nos seus escritos, que uma multidão inumerável de mártires consagrou com o seu sangue. E eles tiveram razão: o grande e justíssimo poder de Deus sobre os homens e, por outro lado, o grande e supremo dever dos homens para com Deus encontram ambos nesta liberdade cristã um brilhante testemunho.

38. Ela nada tem de comum com disposições facciosas e rebeldes, e de nenhum modo se poderá apresentá-la como refratária à obediência devida ao poder público; pois ordenar e exigir obediência às leis é um direito do poder humano somente enquanto este não está em desacordo com o poder divino, e se contém dentro dos limites que Deus lhe demarcou. Ora, quando se dá uma ordem que está em aberta contradição com a vontade divina, então se afasta muito desses limites, e põe-se em conflito com a autoridade divina: portanto, é então justo não obedecer.

39. Mas os partidários do Liberalismo, que atribuem ao Estado um poder despótico e sem limites e proclamam que não é preciso ter Deus em conta alguma no modo de nos conduzirmos na vida, desconhecem absolutamente esta liberdade de que falamos tão intimamente unida à honestidade e à religião; e tudo quanto se faz para a conservar, eles o consideram como feito em detrimento e contra o Estado. Se o que dizem fosse verdade, não haveria dominação, por tirânica que fosse, que se não devesse aceitar e sofrer.

D -  A TOLERÂNCIA DA IGREJA

40. O mais vivo desejo da Igreja seria, sem dúvida, ver penetrarem, de fato e em prática, em todas as ordens do Estado estes princípios cristãos que acabamos de expor sumariamente. Pois eles possuem uma eficácia maravilhosa para curar os males do tempo presente, esses males cujo número e gravidade se não podem dissimular, nascidos em grande parte dessas liberdades tão decantadas, e nas quais se havia querido ver encerrar os germes da salvação e da glória. Esta esperança foi desmentida pelos fatos. Em lugar de frutos doces e salutares, vieram frutos amargos e envenenados. Se se procura o remédio, busque-se restabelecimento de sãs doutrinas, únicas de que se pode esperar confiadamente a conservação da ordem e, por isso mesmo, a garantia da verdadeira liberdade.

41. Todavia, em sua apreciação maternal, a Igreja tem em conta o peso acabrunhador da fraqueza humana e não ignora o movimento que, na nossa época, arrasta os espíritos e as coisas. Por estes motivos, não concedendo direitos senão àquilo que se é verdadeiro e honesto, a Igreja ainda assim não se opõe à tolerância do que os poderes públicos creem poder usar a respeito de certas coisas contrárias à verdade e à justiça, em face de um mal maior a evitar, ou de um maior bem a obter ou conservar. O próprio Deus em sua providência, conquanto infinitamente bom e onipotente, permite não obstante a existência de certos males no mundo, ou seja para não impedir bens maiores ou seja para evitar maiores males. Convém, quanto ao governo dos Estados, imitar Aquele que governa o mundo. Mais ainda: reconhecendo-se impotente para impedir todos os males particulares, a autoridade dos homens deve permitir e deixar impunes muitas coisas que, não obstante, atraem com justo motivo o julgamento da providência divina (S. Agost. De lib. arb., lib. I, c. 6, n. 14).

42. Todavia, se nestas conjunturas, com o foco no bem comum e só por este motivo, a lei dos homens pode e mesmo deve tolerar o mal; contudo nunca ela pode nem deve aprová-lo nem desejá-lo em si mesmo, pois que o mal, sendo de si mesmo a privação do bem, é oposto ao bem comum que o legislador deve querer e defender do melhor modo que possa. E, ainda nisto, a lei humana deve propor-se imitar a Deus que, deixando existir o mal no mundo, não quer nem que o mal suceda, nem que o mal não suceda, mas quer permitir que o mal suceda. E isto é bom (S. Th. p. I, q. 19, ª 9, ad 3). Esta sentença do Doutor Angélico contém, numa fórmula breve, toda a doutrina sobre a tolerância do mal. Mas é necessário reconhecer, para que o nosso juízo seja exato, que quanto mais preciso for tolerar o mal em um Estado, mais longe estão da perfeição as condições desse Estado; e, além disto, que a tolerância do mal, pertencendo aos princípios da prudência política, deve ser rigorosamente circunscrita aos limites exigidos pela sua razão de ser, isto é, pela salvação pública. 

E, por isso, se ela é nociva à salvação pública ou se é para o Estado causa de um mal maior, a consequência é que deixa de ser lícita, porque nestas condições falta a razão do bem. Mas se, em vista de uma condição particular do Estado, a Igreja condescende com certas liberdades modernas, não é porque as prefira em si mesmas, mas porque julga conveniente permiti-las; melhorada a situação, usará evidentemente da sua liberdade, empregando todos os meios, persuasões, exortações e rogos, para desempenhar, como é seu dever, a missão que recebeu de Deus: proporcionar aos homens a salvação eterna. Em todo o caso fica sempre de pé uma verdade: é que essa liberdade concedida indiferentemente a todos e para tudo, não é desejável por si mesma, como muitas vezes se tem repetido, pois repugna a razão que o falso e o verdadeiro tenham os mesmos direitos.

Intolerância do Liberalismo

43. E no que toca à tolerância, é estranho ver quanto se distanciam da equidade e da prudência da Igreja aqueles que professam o Liberalismo. Com efeito, concedendo aos cidadãos, em todos os pontos de que acabamos de falar, uma liberdade sem limites, ultrapassam de um salto a medida, e chegam ao ponto em que parece não haver mais atenções com a virtude e a verdade do que com o erro e o vício. E quando a Igreja, coluna e sustentáculo da verdade, mestra incorruptível dos costumes, que crê contra uma tolerância tão cheia de desordens e de excessos e busca impedir o criminoso uso dela, acusam-na de faltar à paciência e à delicadeza. Procedendo assim, nem sequer advertem que fazem um crime daquilo precisamente que é mérito. De resto muitas vezes sucede que estes grandes defensores da tolerância são duros e intransigentes na prática, quando se trata do Catolicismo: pródigos de liberdades para todos, recusam a cada passo deixar à Igreja a sua liberdade.

E - RECAPITULANDO

Origens do Liberalismo e suas formas

44. Mas para recapitular com brevidade, e para maior clareza, todo este discurso com suas consequências, nós dizemos, em resumo, que o homem deve necessariamente permanecer todo inteiro em uma dependência real e incessante a respeito de Deus, e que, por consequência, é absolutamente impossível compreender a liberdade do homem sem a submissão a Deus e a sujeição à sua vontade. Negar esta soberania de Deus ou recusar a submissão a ela, não é modo de agir de homem livre, mas de quem abusa da liberdade com a revolta; e é precisamente de uma tal disposição da alma que se constitui e nasce o vício do Liberalismo. De resto podem-se distinguir muitas espécies de liberalismo, porque existem para a vontade mais de uma forma e mais de um grau na recusa da obediência devida a Deus ou àqueles que participam da sua autoridade divina.

45. A insurreição completa contra o império supremo de Deus e recusar-lhe absolutamente toda a obediência, quer seja na vida pública, quer na vida particular e doméstica, é a um tempo, sem dúvida alguma, a maior depravação da liberdade e a pior espécie de liberalismo. É sobre ela que devem cair, sem restrição, todas as censuras que até aqui temos formulado.

46. Imediatamente depois vem o sistema daqueles que, concedendo que se deve depender de Deus, autor e senhor do universo, pois que toda a natureza é regida pela sua Providência, ousam repudiar as regras da fé e da moral que, ultrapassando a ordem da natureza, nos vêm da própria autoridade de Deus; ou pretendem, pelo menos, que não é preciso tê-las em conta, principalmente nos negócios públicos do Estado. Qual a gravidade do seu erro e quão pouco de acordo estão consigo mesmos, também o vimos acima. É esta doutrina que deriva, como da sua fonte e princípio, o pernicioso erro da separação da Igreja e do Estado; quando, pelo contrário, é manifesto que estes dois poderes, embora diferentes na sua missão e na sua dignidade, devem todavia entender-se na concórdia da sua ação e na reciprocidade dos seus bons ofícios.

47. A este erro, como a um gênero, se liga uma dupla opinião. Muitos, com efeito, querem uma separação radical e total entre a Igreja e o Estado; consideram estes que, em tudo o que diz respeito ao governo da sociedade humana, nas instituições, nos costumes, nas leis, nas funções públicas, na instrução da juventude, se não deve fazer caso da Igreja como se ela não existisse; apenas deixam aos membros individuais da sociedade a faculdade de cumprirem particularmente, se quiserem, os deveres da religião. Contra estes conservam toda a sua força os argumentos pelos quais refutamos a opinião da separação da Igreja e do Estado, com a agravante de que é completamente absurdo que a Igreja seja, ao mesmo tempo, respeitada pelo cidadão e desprezada pelo Estado.

48. Os outros não põem em dúvida a existência da Igreja, o que lhes seria impossível, mas tiram-lhe o caráter e os direitos próprios de uma sociedade perfeita, e querem que o seu poder, privado de toda a autoridade legislativa, judicial e coercitiva, se limite a dirigir pela exortação e pela persuasão aqueles que de bom grado e por sua própria vontade se submetem a ela. E assim, nesta teoria, o caráter desta divina sociedade é completamente desvirtuado, a sua autoridade, o seu magistério, toda a sua ação é diminuída e restringida, ao mesmo temo que a ação e a autoridade do poder civil é por eles exagerada até ao ponto de quererem que a Igreja de Deus, como qualquer outra associação voluntária, seja colocada sob a dependência e dominação do Estado. Para os convencer de erro, os apologistas têm empregado poderosos argumentos que nós mesmo não deixamos no olvido, deles se conclui que, pela vontade de Deus, a Igreja possui todas as qualidades e todos os direitos que caracterizam uma sociedade legítima, soberana e, em todos os pontos, perfeita.

49. Muitos, finalmente, não aprovam esta separação da Igreja e do Estado, mas julgam que é necessário induzir a Igreja a ceder às circunstâncias, fazer com que ela se acomode e se preste ao que reclama a prudência destes tempos no governo das sociedades. Esta opinião é boa quando entendida de um certo modo equitativo de proceder, conforme com a verdade e com a justiça, a saber: que a Igreja, na expectativa certa de um grande bem, se mostre indulgente e conceda às circunstâncias do tempo o que pode conceder sem violar a santidade da sua missão. Mas sucede o contrário com as práticas e doutrinas que a relaxação dos costumes e os erros correntes introduziram contra o direito. Não pode haver época alguma sem religião, verdade e justiça; e como estas grandes e santas coisas Deus as colocou sob a guarda da Igreja, nada há tão estranho como pretender que deixe passar sem reparo o que é falso ou injusto, ou que se torne conivente com o que prejudicar a religião.

Conclusões da doutrina católica

50. Destas considerações segue-se, portanto, que de nenhum modo é permitido pedir, defender ou conceder sem discernimento a liberdade de pensamento, de imprensa, de ensino, de religião, como se fossem outros tantos direitos que a natureza conferisse ao homem. Se em verdade a natureza os houvesse conferido, haveria o direito de nos subtrairmos à soberania de Deus, e nenhuma lei poderia moderar a liberdade humana. Segue-se também que estas diversas espécies de liberdade podem, por justas causas, ser toleradas, contanto que uma justa moderação as impeça de degenerarem até à licença e à desordem. Finalmente, nos países em que os usos puseram estas liberdades em vigor, os cidadãos devem servir-se delas para fazer o bem e ter a respeito delas os mesmos sentimentos que a Igreja tem; porque uma liberdade não se deve reputar legítima senão quando aumenta a nossa faculdade de fazer o bem. Fora disto, nunca.

51. Quando se está sob o domínio ou a ameaça de um governo que tem a sociedade debaixo da pressão de uma violência injusta ou que priva a Igreja da liberdade legítima, é permitido buscar outra organização política, sob a qual se possa proceder com liberdade. Com efeito, neste caso o que se reivindica não é essa liberdade sem medida e sem regra, mas sim um certo alívio para bem de todos; e o que se procura unicamente é chegar a que, onde toda a licença é dada ao mal, não se ponham obstáculos à prática do bem.

52. Além disto, preferir para o Estado uma constituição temperada pelo elemento democrático não é em si contrária ao dever, com a condição todavia de que se respeite a doutrina católica sobre a origem e o exercício do poder público. Das diversas formas de governo, contanto que sejam em si mesmas aptas para proporcionar o bem aos cidadãos, a Igreja não rejeita nenhuma, mas quer, e a natureza põe-se de acordo com ela para o exigir, que seja constituída de tal modo que não viole o direito de ninguém e respeite particularmente os direitos da Igreja.

53. É louvável tomar parte na administração dos negócios públicos, a menos que em certos lugares, por circunstâncias particulares de coisas e de tempo, se não imponha outro modo de proceder. A Igreja mesma aprova que todos unam os seus esforços para o bem comum, e que cada um, segundo a sua possibilidade, trabalhe para a defesa, conservação e aumento da coisa pública.

54. A Igreja também não condena que se queira libertar o país do poder estrangeiro ou de um déspota, contanto que isto se possa fazer sem violar a justiça. Finalmente, muito menos ela censura aqueles que trabalham para dar aos municípios o beneficio de se regerem pelas suas próprias leis, e aos cidadãos todas as facilidades para o aumento do seu bem-estar. Para todas as liberdades civis isentas de excesso, a Igreja teve sempre o costume de ser uma fidelíssima protetora, o que é atestado principalmente pelas cidades italianas, que encontraram sob o regime municipal a prosperidade, o poder e a glória, quando a influência salutar da Igreja, sem encontrar oposição alguma, penetrava todas as partes do corpo social.

Exortação final

55. Estes ensinamentos que, inspirados pela fé e pela razão, o dever do nosso cargo apostólico nos levou a transmitir-vos, Veneráveis Irmãos, serão úteis a um grande número, temos nisto confiança, graças principalmente à união dos vossos esforços com os nossos. Pela nossa parte, na humildade do nosso coração, elevamos para Deus os nossos olhares suplicantes, rogando-lhe instantemente que se digne espalhar entre os homens a luz da sua sabedoria e do seu conselho, a fim de que, pela virtude destas graças, eles possam ver a verdade em pontos de uma tal importância, e, consequentes, com uma inquebrantável constância saibam conformar, em todos os tempos, a sua vida particular e pública com a mesma verdade.

Como penhor dos favores celestiais e em prova da nossa benevolência, nós vos concedemos, com um terno afeto, a vós, Veneráveis Irmãos, assim como ao clero e ao povo de que cada um de vós tem a direção, a bênção apostólica no Senhor.