LIII
DA CLEMÊNCIA E DA MANSIDÃO — VÍCIOS OPOSTOS: A IRA, A CRUELDADE OU FEROCIDADE
Que entendeis por clemência e mansidão?
São duas virtudes, uma destinada a moderar os castigos que hajam de impor-se, para que não excedam os limites da Justiça, e a outra destinada a moderar os movimentos interiores da ira (CLVII, 1)*.
A clemência opõe-se à severidade e a mansidão à vindita?
De maneira alguma, porque não têm o mesmo objeto e também porque, por caminhos distintos, propendem para o mesmo fim (CLVIII, 2 ad 1).
Que vícios se opõem à clemência e à mansidão?
A ira, a crueldade e a ferocidade (CLVIII, CLIX).
Que é a ira?
Um movimento do apetite irascível, que nos arrasta a tirar vingança, sem motivo ou contra a ordem e a razão (CLVIII, 2).
Quantas espécies compreende?
Três: a cólera dos violentos, que se irritam pelo motivo mais insignificante; a dos rancorosos, que guardam por muito tempo a recordação das injúrias; a dos obstinados, que não descansam enquanto não tiram vingança (CLVIII, 5).
A ira é pecado capital?
Sim, Senhor; porque o seu fim, a vingança, com a aparência de justa reparação, seduz e arrasta com facilidade os homens (CLVIII, 7).
Quais são as suas filhas?
A indignação, o orgulho, a vociferação, a blasfêmia, a injúria e a rixa (CLVIII, 7).
Existe algum vício contrário ao vício da ira?
Sim, Senhor; a apatia e a indolência, que se revelam em deixar impunes faltas que merecem corretivo (CLVIII, 8).
Que entendeis por crueldade?
A dureza de alma, que se manifesta na imposição de castigos ou penas injustas e irracionais (CLXI, 1).
Em que consiste a ferocidade?
Numa alegria e complacência selvagens, brutais e desumanas, nos sofrimentos do próximo, não os considerando como castigos merecidos, senão como meios de satisfazer rancores ou objeto de diversão. A ferocidade opõe-se diretamente à virtude da piedade (CLIX, 2).
São possíveis tais excessos?
Ainda que pareça incompreensível, aí está a história para demonstrá-lo. Povos houve, e se contam entre os mais civilizados em aparência, que achavam o mais saboroso prazer nas horripilantes cenas do anfiteatro.
LIV
DA MODÉSTIA E DA HUMILDADE — VÍCIO OPOSTO: O ORGULHO — PECADO DOS NOSSOS PRIMEIROS PAIS — NATURALISMO E LAICISMO
Qual é a última virtude agregada à temperança?
A modéstia (CLX, CLXX).
Que entendeis por modéstia?
Uma virtude que serve para refrear e moderar o apetite em matérias mais fáceis do que as da temperança, da continência, da clemência e da mansidão (CLX, 1, 2).
Logo, sobre que coisas exerce o seu influxo?
Sobre o desejo imoderado de grandezas, de saber e aprender; sobre os ademanes e movimentos do corpo e a maneira de vestir (CLX, 2).
Que nomes têm as virtudes deputadas para regular os movimentos afetivos relacionados com cada uma destas matérias?
As de humildade, estudiosidade e modéstia (Ibid).
Que entendeis por humildade?
Uma virtude que inclina o homem a reprimir e disciplinar a ambição de honras e grandezas, de forma que não queira nem procure senão as correspondentes à hierarquia em que Deus o colocou (CLXI, 1, 2).
Que consequências práticas devemos tirar desta definição?
A convicção íntima de que, prescindindo dos dotes que Deus graciosamente nos concedeu, a nada temos direito, já que, de colheita própria, só recolhemos como frutos, pecados; e pelo contrário, todas as honras e excelências pertencem aos outros, na proporção da medida com que a Deus aprouve fazê-los participantes das suas perfeições; além disso, ao reconhecermos em nós mesmos as boas qualidades e dons de Deus, devemos procurar que os outros homens honrem em nós a Deus, como neles nós O honramos (CLXI, 3).
Logo, a humildade é inseparável da verdade, e apoiado na verdade, pode um homem considerar-se inferior a todos os outros?
Com as preditas delimitações, sim, senhor (Ibid).
Que nome tem o vício oposto à humildade?
O de soberba ou orgulho (CLXII).
Que entendeis por soberba?
Um vício especial e, em certo modo, também geral, por cujo impulso, esquecendo e desprezando a lei, o homem se inclina a dominar e submeter tudo ao seu capricho, considerando-se superior a tudo quanto o rodeia (CLXII, 1, 2).
Por que dizeis que, sendo um vício especial, também é de alguma maneira geral?
É especial porque tem como fim próprio o desejo de dominar e sobressair-se, sem levar em consideração a subordinação e o respeito devidos a Deus; e é geral, porque este mesmo desejo é aproveitado por todos os outros pecados.
É muito grave o pecado da soberba?
É o mais grave de todos os pecados, porque envolve desprezo direto de Deus e, neste conceito, aumenta a gravidade de todos os outros, qualquer que seja a que tenham por si mesmos (CLXII, 6).
É e tem sido sempre a soberba o primeiro pecado?
Sim, senhor; porque envolve primária e essencialmente desprezo, aversão e separação de Deus, que nos outros pecados não é elemento constitutivo, mas simplesmente resultado; portanto, não pode existir pecado mortal que não pressuponha o da soberba ainda que dele se distinga (CLXII, 7).
É pecado capital?
É mais do que pecado capital; é o chefe e rei de todos os vícios e pecados (CLXII, 8).
Qual foi o pecado dos nossos primeiros pais?
O da soberba, como antes o tinha sido dos anjos rebeldes (CLXIII, 1).
Não seria antes o pecado da gula, da desobediência, da curiosidade ou da falta de fé na palavra de Deus?
Todos estes pecados, que, com efeito, acompanharam a primeira falta, foram consequência do pecado de soberba, antes do qual não podiam ter-se cometido (CLXIII, 1).
Por que dizeis que, antes de se ter cometido o pecado de soberba, não se podia cometer nenhum outro?
Porque o estado de inocência era acompanhado do dom da integridade, em virtude do qual todas as potências e faculdades guardavam perfeita subordinação, enquanto o espírito permanecesse sujeito a Deus; logo, para romper o equilíbrio foi necessário que a razão sacudisse o jugo divino, obtendo uma independência que não lhe pertencia, e nisto consiste o pecado da soberba (CLXIII, 1, 2).
Os pecados do naturalismo e laicismo, tão difundidos depois da reforma protestante, da renascença pagã e da revolução francesa, são pecados de soberba?
Sim, senhor; e daí provém a sua gravidade, por serem a reprodução do grito de rebelião que proferiram, primeiro, Satanás e os seus anjos, e, depois, os nossos primeiros pais.
LV
DA ESTUDIOSIDADE — VÍCIO OPOSTO: A CURIOSIDADE
Que entendeis por estudiosidade, segunda virtude anexa à temperança, sob a influência da modéstia?
A que preside e modera a afeição ao estudo e ao desejo de saber (CLXVI, 1).
Como se chama o vício oposto?
Curiosidade (CLXVII).
Em que consiste?
No desejo imoderado de saber o que nos não interessa ou o que nos pode ser prejudicial (CLXVII, 1, 2).
Comete-se este pecado com muita frequência?
Sim, senhor; quer na aquisição de toda classe de conhecimentos, quer na daqueles que só podem servir para procurar prazeres para os sentidos e fomentar as paixões (Ibid).
Logo, é pecado de curiosidade a afeição desmedida à leitura, sobretudo à leitura de novelas e romances, o assistir a festas profanas e espetáculos como teatros, cinematógrafos e outros do mesmo gênero?
Sim, senhor; e costuma ser também pecado de luxúria e sensualidade.
LVI
DA MODÉSTIA EXTERIOR
Qual é a última das virtudes anexas à temperança e conhecidas com o nome geral de modéstia?
A propriamente chamada virtude da modéstia (CLXVII - CLXX).
Que entendeis por virtude da modéstia?
O ápice da perfeição nos movimentos afetivos, cujo resultado é que todas as ações exteriores, como sejam movimentos, gestos, palavras, tom de voz, atitudes, etc, convenham ao decoro da pessoa e se acomodem às suas circunstâncias, estado e situação, de forma que nada destoe, senão que resplandeça em tudo a mais perfeita harmonia. Neste conceito se relaciona a modéstia com a amizade ou afabilidade e com a verdade (CLXVIII, 1).
Pertencem também à virtude da modéstia os atos relacionados com o jogo, as diversões e os recreios?
Sim, senhor; e neste caso, toma a virtude o nome de eutrapélia, ou virtude que preside às diversões e aos recreios, evitando que se peque seja por excesso, seja por defeito (CLXVIII, 2-4).
Está a cargo da modéstia o que se refere à maneira de vestir?
Sim, senhor; e neste sentido, rigorosamente, se chama modéstia (CLXIX).
Que normas prescreve?
Não ter afeição desmedida aos vestidos caros e faustosos, nem fazer ostentação de pobres e desalinhados (CLXIX, 1).
Logo, pecam contra a virtude da modéstia as pessoas mundanas, escravas dos exageros a que chamam moda, incentivo e frequente ocasião de pecado?
Pecam contra a modéstia e contra a castidade e são dignas de severa repreensão (CLXIX, 2).
* referências aos artigos da obra original
('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)