quinta-feira, 17 de agosto de 2017

SOBRE O CONHECIMENTO DE SI MESMO

1. A alma de Cristo que deseja elevar-se até o cimo da perfeição, há de principiar por si mesma, isto é, esquecida de todas as coisas exteriores, deve penetrar no íntimo de sua consciência e ali discutir, examinar e ver, com diligente cuidado, todos os defeitos, todos os hábitos, todas as inclinações, todas as obras, todos os pecados passados e presentes. Se achar em si alguma coisa menos reta, chore-a sem demora na amargura de seu coração. E para melhor chegares a este conhecimento, saiba que todos os nossos pecados e males cometemo-los ou por negligência ou por malícia. Acerca destas três coisas, pois, deve versar o exame de todos os teus males; de outra forma jamais poderás chegar ao perfeito conhecimento de ti mesmo.

2. Portanto, se desejas conhecer-te a ti mesma e chorar os males cometidos, deves primeiro refletir se há ou houve em ti alguma negligência. Examina-te sobre a negligência com que vigias o teu coração, sobre a negligência com que passas o tempo, e examina-te também se em alguma obra não tens intenção pecaminosa. Estas três coisas cumpre observar com o maior cuidado: vigiar bem o coração, empregar utilmente o tempo e prefixar a toda obra um fim bom e conveniente.

Igualmente deves refletir sobre a negligência que tivestes na oração, na leitura e na execução da obra; porque nestas três coisas te deves exercer e aperfeiçoar com afinco, se queres produzir e dar bom fruto a seu tempo. Tão intimamente estas três coisas estão unidas, que de forma alguma é suficiente uma sem a outra. Outrossim, cumpre refletires sobre quanto és ou foste negligente em fazer penitência, em lutar e em progredir; porque é mister chorar, com suma diligência, os males cometidos, repelir as tentações diabólicas, e progredir de uma virtude para outra para que possas chegar à terra prometida. Desta forma, pois, o exame se ocupa com a negligência.

3. Se, porém, desejas conhecer-te melhor, deves, em segundo lugar, refletir se em ti dominou ou domina a concupiscência da voluptuosidade, da curiosidade ou da vaidade. Certamente então reina no homem religioso a concupiscência da voluptuosidade quando deseja coisas doces, isto é, manjares saborosos; quando deseja coisas frouxas; isto é, vestimentas pomposas; quando deseja coisas carnais, isto é, prazeres luxuriosos.

A concupiscência da curiosidade existe quando se deseja saber coisas secretas, quando se deseja ver coisas belas, quando se deseja possuir coisas raras. A concupiscência da vaidade, porém, impera quando deseja o favor dos homens, quando se busca o louvor humano, quando se almeja honra diante dos homens. Como veneno deve a alma fugir a tudo isso, porque tudo isso é a raiz de todo o mal.

4. Em terceiro lugar, se queres ter conhecimento certo de ti mesmo, deves diligentemente refletir se há ou houve em ti a malícia da ira, da inveja e da preguiça. Ouve, caríssima alma, o que te digo solicitamente. No homem religioso existe a ira quando no espírito, no coração, no afeto, nos sinais, no semblante, na palavra ou no clamor mostra a seu próximo indignação do coração, por mais leve que seja, ou rancor.

A inveja reina no homem quando se alegra com a desgraça do próximo e se entristece com a sua prosperidade, quando sente prazer com os males do próximo e se desfalece com a sua felicidade. A preguiça reina no religioso quando se é tíbio, sonolento, ocioso, lerdo, negligente, frouxo, dissoluto, indevoto, triste e tedioso. A tudo isto se deve detestar e fugir como a um veneno mortífero, porque nestas coisas consiste a perdição do corpo e da alma.

5. Se, portanto, ó caríssima alma, queres chegar ao perfeito conhecimento de ti mesma, 'torna a ti mesma, entra no teu coração, aprende a conhecer o teu espírito. Vê o que és, o que foste, o que devias ser, o que podias ser: o que foste pela natureza, o que agora és pela culpa, o que devias ser por teu trabalho, o que ainda podes ser pela graça'.

Ouve, ó caríssima alma, ouve o profeta Davi, como ele se faz o teu exemplo: 'Meditei', diz ele, 'de noite no meu coração, exercitei-me e espanei o meu espírito' (Sl 76,7) Meditava ele no seu coração; medita também tu no teu coração. Espanava ele o seu espírito; espana também tu o teu espírito. Trabalha nesse campo, presta atenção a ti mesmo. Se com insistência fazes este exercício, sem dúvida acharás um precioso tesouro escondido. Pois em virtude deste exercício cresce a plenitude do ouro, a ciência é multiplicada e aumentada a sabedoria.

Com este exercício, purificam-se os olhos do coração, aguça-se o engenho, dilata-se a inteligência. De nada adianta um reto juízo a quem não se conhece a si mesmo, quem não pensa na sua dignidade. Desconhece por completo que opinião deva fazer do espírito angélico e do divino quem não reflete antes sobre o seu próprio espírito. Se ainda não és capaz de entrar em ti mesmo, como serás capaz de elevares-te às coisas que estão acima de ti? Se ainda não és digna de entrar no primeiro tabernáculo, com que razão presumes entrar no segundo tabernáculo? (Ex 25, 28).

6. Se desejas elevar-te, como São Paulo, ao segundo e terceiro céu, hás de passar pelo primeiro, isto é, pelo teu coração. O modo como deves fazê-lo, ensinei-o acima. Mas também São Bernardo otimamente te informa quando diz: 'Se queres conhecer o estado de tua perfeição, examina, em discussão constante, a tua vida, e reflete diligentemente, quanto te adiantas e quanto te atrasas, quais são os teus costumes, quais as tuas inclinações, quão semelhante ou dessemelhante és a Deus, quão perto ou quão longe dEle estás'.

Ó como é grande o perigo do religioso que quer saber muitas coisas, mas não tem verdadeiro e sincero desejo de conhecer-se a si mesmo! Ó como está prestes a perder-se o religioso que é curioso em conhecer as coisas, solícito em julgar as consciências dos outros, mas ignora e desconhece a própria! Ó meu Deus, donde tanta cegueira num religioso? Eis, a causa é patente, ouve-a. Porque a mente do homem é distraída pelos cuidados, não volta a si pela memória; porque é obnubilada por fantasias e não volta a si pela inteligência; porque é arrastada por concupiscências ilícitas e não se restaura pelo desejo da suavidade intima e da alegria espiritual.

Por isto jaz totalmente submerso nessas coisas sensíveis, é incapaz de entrar em si mesmo e penetrar até à imagem de Deus no seu íntimo. Desta forma o espírito se lhe reduz à miséria; ignora e desconhece-se a si mesmo. Procura, pois, lembrares de ti e conheceres primeiro a ti mesmo, deixando de lado tudo o mais. Isto pedia também São Bernardo, dizendo: 'Deus me dê a graça de não saber outra coisa senão que me conheça a mim mesmo'.

(São Boaventura)