quinta-feira, 25 de julho de 2019

OS DOIS PRINCÍPIOS DA VIDA EM INTIMIDADE COM DEUS

PRIMEIRO PRINCÍPIO

A vida de intimidade, sendo uma aspiração de nossa alma, já é uma antecipação da vida do céu. Em geral, a vida de intimidade é uma das aspirações mais urgentes de nossa natureza. Ensina a psicologia que o homem traz em si quatro inclinações sociais. Estas inclinações são as seguintes: a sociabilidade, ou o amor aos outros homens em geral; as afeições familiares, que não são mais que o amor aos nossos pais; as afeições patrióticas ou o amor aos nossos concidadãos e, finalmente, as afeições eletivas, particulares, como a amizade, o amor (Compayé: Psicologia aplicada à educação).

Não temos que analisar cada inclinação em particular; todas elas são uma aspiração à intimidade. Nós amamos os homens, amamos os nossos concidadãos, amamos os nossos pais, mas todos estes amores ainda são muito vagos; a alma, porém, aspira a uma vida mais íntima, que se esforça por realizar, seja pela amizade, seja pelo amor propriamente dito. O amor quer intimidade. Ele a quer, aqui na terra ou lá no céu. O amor terreno só pode ser parcial, imperfeito; contudo, ele pode atingir o cume, a plena realização de suas aspirações.

O amor do céu, não encontrando aqui na terra nada que o satisfaça, dá-se a Deus, entrega-se ao Bem supremo, desejando uma intimidade perfeita, intimidade ideal, sem nuvens, para realizá-la pouco a pouco, pela lembrança, pelo coração e pelo espírito. Se a vida de intimidade é uma necessidade para toda alma racional, a vida de união a Deus é uma aspiração de toda alma sinceramente cristã.

É esta necessidade que colocava nos lábios do imortal gênio de Hiponna, Santo Agostinho, estas palavras tão amorosas e tão cheias de saudade divina: 'Vós nos fizestes para Vós, meu Deus, e nosso coração está inquieto, enquanto não descansar em Vós'. Já aqui na terra Deus se dá a nós. Ele se dá, mas não se deixa ver ainda. Esta doação do tempo é envolvida em trevas e combatida por mil imperfeições. Ora, o que nos é necessário é um conhecimento que sacie o nosso espírito, repouse o nosso coração e dê à nossa alma o seu verdadeiro alimento - o próprio Deus: 'nós havemos de vê-lO, não mais através de um espelho, como aqui na terra, mas face à face, tal qual Ele é' (Jo 3, 2).

Desejamos pois o céu, porque ele é posse de Deus, é a intimidade com Deus, intimidade perfeita, sem sombras. Aspiramos por ele, porque somos feitos à imagem de Deus. E, trazendo em nós esta imagem divina, desfigurada pelo pecado, nós aspiramos contemplar-lhe o arquétipo, em toda a sua beleza, em toda a sua pureza e em toda a sua glória. Deste modo a vida de intimidade se torna uma das aspirações mais irresistíveis e mais atraentes de nosso ser. É uma necessidade de nosso coração, feito para amar e, que não encontrando na terra nenhum amor capaz de saciá-lo, eleva mais alto o seu ideal, procurando-o na beatitude eterna.

Esta aspiração é reconhecida, não somente pelas almas piedosas, mas também por todos os psicólogos, que a unem às inclinações ideais. Com efeito, estas inclinações ideais ou superiores referem-se a quatro objetivos: a ideia do verdadeiro, a ideia do belo, a ideia do bem e a ideia de Deus. Esta ideia de Deus, que geralmente chamamos o sentimento religioso, resume as três primeiras aspirações, abrange-as todas e lhes comunica todo o seu valor.

Nada mais verdadeiro, mais belo e mais nobre do que Deus. Eis porque o sentimento religioso exerce sobre o homem uma influência muito mais extensa e mais forte que qualquer uma das três primeiras aspirações. E é este sentimento, elevado a um grau intenso, que faz os santos, os verdadeiros heróis, pois todos eles souberam vencer o mundo e a vencer a si próprios. 

Ora, o sentimento religioso é essencialmente uma aspiração à vida de intimidade com Deus. O santo sente que por si mesmo nada pode: por conseguinte, apoia-se sobre Deus, a fim de alcançar tudo e todo poder por Aquele que o fortifica: omniapossum in eo qui me confortat [tudo posso naquele que me fortalece], dizia o grande Apóstolo.

Só no céu esta aspiração será plenamente satisfeita, porque lá somente é que poderemos possuí-lo, sem receio de nunca mais perdê-lo. Lá viveremos com Ele, viveremos dEle, seremos verdadeiramente de sua família: - será isto à verdadeira vida de intimidade que se chamará então 'visão beatifica'! Mas, até que a morte venha desligar os laços que nos prendem à terra, até que nos desembaracemos de tudo o que em nós existe de corruptível, já aqui na terra podemos fazer um esboço e de certo modo ir colocando os fundamentos de nossa intimidade já enunciado.

SEGUNDO PRINCÍPIO

Sendo a glória o aperfeiçoamento da graça, quanto mais estreita tiver sido nossa intimidade sobre a terra, tanto mais, com as devidas proporções, ela será intensa no céu. No céu todas as almas possuirão a Deus, todas vê-lo-ão, todas banhar-se-ão neste oceano de amor e de eterna felicidade, mas não todas elas em igual medida, nem em iguais profundidades: 'há muitas moradas na casa de Meu Pai', disse Nosso Senhor.

Na verdade compreende-se que a visão de Deus, a glória e a felicidade de uma seráfica Teresa de Jesus, de um apóstolo como São Francisco Xavier, de um amante da Cruz como São Pedro de Alcântara, de um pobre voluntário como São Francisco de Assis, de um apaixonado pela Santíssima Virgem como os santos Bernardos, Ligórios, Eudes, beatos de Montfort... compreende-se, digo, que a glória, seja superior a de um pecador convertido na última hora.

No céu, entre as moradas de um e de outro, deve haver uma distância incalculável. Aquele, cujo coração já era na terra qual chama ardente e brilhante, cuja ambição era amar e fazer amar a Deus, receberá uma coroa mais bela, ocupará um trono mais cintilante, gozará de uma visão divina mais intensa e mais clara, do que aquele que viveu em uma espécie de apatia, não dando a Deus senão os estritos deveres, quase sem fazer obras de maior superação.

É assim que, desde agora, nós podemos e devemos por os fundamentos de nossa vida de intimidade no céu. Podemos até, com o socorro da graça, fazê-la atingir uma intensidade tal que seja verdadeiramente uma antecipação da vida celestial. 'Prometendo um céu para a eternidade', diz muito bem São João Crisóstomo, 'Deus já nos deseja um céu sobre a terra'. E qual é este céu?

É a vida de intimidade, como ela existia antes do pecado entre Deus e nossos primeiros pais. 'O prazer (a vontade) de Deus', diz uma santa alma (Mère M. de Salles Chappuis) 'é fazer conosco o que Ele queria fazer antigamente antes do pecado'. 'A intimidade da terra conduz verdadeiramente à intimidade do céu' (F. Maucourant - Vida de intimidade com o bom Salvador).

E, além disso, 'a felicidade do céu não é outra coisa que uma grande familiaridade com Deus, elevada a um grau que ultrapassa toda a compreensão humana' (R.P. Coulé)  e, em outras palavras, como diz Santo Tomás, 'toda graça é um gérmen do que existirá na glória' e, consequentemente, segundo observa Santo Afonso de Ligório, 'a caridade nos bem-aventurados revestirá a forma que o amor tinha durante a vida terrena'.

Ao entrar no céu, o cristão não muda o coração; conserva-o somente concluído e aperfeiçoado. Lá Jesus se nós dá, como Ele o havia entrevisto e desejado aqui na terra: 'o que começardes aqui na terra', diz Bossuet, 'continuá-lo-eis na eternidade'. É o que o Espírito Santo nos faz compreender por estas conhecidas palavras: 'Cada um será premiado conforme tiver trabalhado' (Is 53, 2).

(Excertos da obra 'Princípios da vida de intimidade com Maria Santíssima, segundo os Santos, os Doutores e os Teólogos', pelo Pe. Júlio Maria)

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