quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

DO SERMÃO DAS BEM AVENTURANÇAS

Qual seja a doutrina de Cristo, suas santas sentenças o demonstram. Elas dão a conhecer os degraus da jubilosa ascensão àqueles que desejam chegar à eterna beatitude. Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3). Seria talvez ambíguo a que pobres se referia a Verdade, se dissesse: 'Bem-aventurados os pobres', sem acrescentar nada sobre a espécie de pobres, parecendo bastar a simples indigência, que tantos padecem por pesada e dura necessidade, para possuir o reino dos céus. Dizendo porém: 'Bem-aventurados os pobres em espírito', mostra que o reino dos céus será dado àqueles que mais se recomendam pela humildade dos corações do que pela falta de riquezas.

Não há dúvida de que os pobres alcançam mais facilmente que os ricos o bem da humildade; estes, nas riquezas, a conhecida altivez. Contudo em muitos ricos encontra-se a disposição de empregar sua abundância não para se inchar de soberba, mas para realizar obras de benignidade; e assim eles têm por máximo lucro tudo quanto gastam em aliviar a miséria do trabalho dos outros. A todo gênero e classe de pessoas é dado ter parte nesta virtude, porque podem ser iguais na intenção e desiguais no lucro; e não importa quanto sejam diferentes nos bens terrenos, se são idênticos nos bens espirituais. Feliz então a pobreza que não se prende ao amor das coisas transitórias, nem deseja o crescimento das riquezas do mundo, mas anseia por enriquecer-se com os tesouros celestes.

Exemplo de fidalga pobreza foi-nos dado primeiro, depois do Senhor, pelos apóstolos que, abandonando igualmente todas as posses à voz do Mestre celeste, se transformaram, por célebre conversão, de pescadores de peixes em 'pescadores de homens' (Mt 4,19). Eles tornaram a muitos outros semelhantes a si, à imitação de sua fé, quando nos filhos da Igreja primitiva era 'um só o coração de todos e uma só a alma dos que criam' (At 4,32). Desapegados de todas as coisas e de suas posses, pela pobreza sagrada enriqueciam-se com os tesouros eternos. Segundo a pregação apostólica, alegravam-se por nada ter do mundo e tudo possuir com Cristo.

O santo apóstolo Pedro, subindo ao templo, respondeu ao entrevado que lhe pedia esmola: 'Prata e ouro não possuo; mas o que tenho te dou: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda' (At 3,6). Que de mais sublime do que esta humildade? E mais rico do que esta pobreza? Não tem os auxílios do dinheiro, mas tem os dons do espírito. Saíra ele paralítico do seio de sua mãe; com a palavra Pedro o curou. Quem não deu a efígie de César na moeda reformou no homem a imagem de Cristo. Com este rico tesouro não foi socorrido só aquele que recuperou o andar, mas ainda as cinco mil pessoas que naquele momento creram na exortação do Apóstolo por causa do milagre da cura (cf. At 4,4). E o pobre que não tinha para dar a um mendigo, distribuiu com tanta largueza a graça divina! Da mesma forma como estabeleceu a um só homem em seus pés, assim curou a tantos milhares de fiéis em seus corações e tornou saltitantes em Cristo aqueles que encontrara entrevados.

Após ter proclamado a felicíssima pobreza, o Senhor acrescenta: Bem-aventurados os que choram porque serão consolados (Mt 5,4). Estas lágrimas que têm a promessa da consolação eterna nada têm a ver com a comum aflição deste mundo; nem tornam bem-aventuradas as queixas arrancadas a todo o gênero humano. É outro o motivo dos gemidos dos santos, outra a causa das lágrimas felizes. A tristeza religiosa chora o pecado dos outros ou o próprio. Não se acabrunha porque se manifesta a divina justiça, mas dói-se do que se comete pela iniquidade humana. Sabe ser mais digno de lástima quem pratica a maldade do que quem a sofre, porque a maldade mergulha o injusto no castigo. A paciência leva o justo até à glória.

Em seguida diz o Senhor: Bem-aventurados os mansos porque possuirão a terra por herança (Mt 5,5). Os mansos e quietos, humildes, modestos e aflitos a suportar toda injúria recebem a promessa de possuir a terra. Não se considere pequena ou sem valor esta herança, como se fosse diferente da celeste morada, pois não se entende que sejam outros a entrar no reino dos céus. A terra prometida aos mansos e a ser dada aos quietos é a carne dos santos que, graças à humildade, será mudada pela feliz ressurreição e vestida com a glória da imortalidade, nada mais tendo de contrário ao espírito na harmonia de perfeita unidade. O homem exterior será então a tranquila e incorruptível possessão do homem interior. Os mansos a possuirão numa paz perpétua e nada diminuirá de sua condição, quando o corruptível se revestir da incorruptibilidade e o mortal se cobrir com a imortalidade (1Cor 15,54); a provação se mudará em prêmio, o ônus de outrora agora será honra.

Em seguida diz o Senhor: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados (Mt 5,6). Esta fome nada tem de corpóreo. Esta sede não busca nada de terreno. Mas deseja ser saciada com a justiça e, introduzida no segredo mais oculto, anseia por ser repleta do próprio Senhor. Feliz espírito, faminto do pão da justiça e que arde por tal bebida. Na verdade não teria disso nenhuma cobiça, se não lhe houvesse provado a doçura. Ouvindo o espírito profético que lhe diz: 'Provai e vede como é suave o Senhor' (Sl 33,9), tomou uma porção da altíssima doçura e inflamou-se pelo amor das castíssimas delícias. Abandonando todo o criado, acendeu-se-lhe o desejo de comer e beber a justiça e experimentou a verdade do primeiro mandamento: 'Amarás o Senhor Deus de todo o teu coração, com toda a tua mente, com todas as tuas forças' (Dt 6,5; cf. Mt 22,37). Porque não são coisas diferentes amar a Deus e amar a justiça.

Por fim, como o interesse pelo próximo se une ao amor de Deus, também aqui o desejo da justiça é acompanhado pela virtude da misericórdia, e se diz: Bem-aventurados os misericordiosos porque deles terá Deus misericórdia (Mt 5,7). Reconhece, ó cristão, a dignidade de tua sabedoria e entende de que modo engenhoso foste chamado ao prêmio. A misericórdia te quer misericordioso, a justiça, justo, para que em sua criatura transpareça o Criador e, no espelho do coração do homem, refulja a imagem de Deus expressa pelas linhas da imitação. Firme é a fé dos que assim agem, teus desejos te acompanham e daquilo que amas gozarás sem fim.

Já que pela esmola tudo se faz puro para ti, chegas à bem-aventurança que é prometida como consequência. Diz o Senhor: Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus (Mt 5,8). Imensa felicidade, caríssimos, para quem se prepara tão grande prêmio. Que é, então, ter o coração puro? Entregar-se às virtudes acima descritas. Que inteligência poderá conceber e que língua proclamar quão grande seja a felicidade de ver a Deus? E, no entanto, isto acontecerá quando a natureza humana for transformada, de sorte que não mais em espelho ou enigma, mas 'face a face' (1Cor 13,12), verá aquela Divindade que homem algum pôde ver tal qual é. E obterá o que 'os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem subiu ao coração do homem' (1Cor 2,9), pelo gáudio indizível da eterna contemplação.

Com razão a bem-aventurança de ver a Deus é prometida aos corações puros. Pois os olhos imundos não podem ver o esplendor da verdadeira luz; será alegria das almas límpidas aquilo mesmo que será castigo dos corações impuros. Para longe então a fuligem das vaidades terrenas. Limpemos de toda iniquidade suja os olhos interiores, e o olhar sereno se sacie de tão maravilhosa visão de Deus. Merecer tal coisa, penso eu, é o fito do que se segue: Bem-aventurados os pacíficos porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9). Esta bem-aventurança, caríssimos, não consiste em um acordo qualquer nem em qualquer concórdia. É aquela de que fala o Apóstolo: 'Tende paz com Deus' (Rm 5,1) e o profeta: 'Grande paz para os que amam tua lei e para eles não há tropeço' (Sl 118,165).

Mesmo os mais estreitos laços de amizade e uma igualdade sem falha dos espíritos não podem, na verdade, reivindicar para si esta paz, se não concordarem com a vontade de Deus. Estão fora da dignidade desta paz a semelhança na cobiça dos maus, as alianças pecaminosas, os pactos para o vício. O amor do mundo não combina com o amor de Deus, nem passa para a sociedade dos filhos de Deus quem não se separa da vida carnal. Quem sempre com Deus tem em mente guardar com solicitude a unidade do espírito no vínculo da paz (Ef 4,3), jamais discorda da lei eterna, repetindo a oração da fé: 'Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu' (Mt 6,10).

São estes os pacíficos, estes os unânimes no bem, santamente concordes, que receberão o nome eterno de filhos de Deus, co-herdeiros de Cristo (Rm 8,17). Porque o amor de Deus e o do próximo lhes obterão não mais sentir adversidades, não mais temer escândalo algum. Mas terminado o combate de todas as tentações, repousarão na tranquila paz de Deus, por nosso Senhor que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina pelos séculos dos séculos. Amém.

(Papa São Leão Magno, século V)