sexta-feira, 21 de novembro de 2025

CARTAS DO CLAUSTRO



Madre Maria José de Jesus nasceu em 1882, sob o nome de batismo de Honorina de Abreu, sendo a filha primogênita do historiador Capistrano de Abreu. Perdeu a mãe aos 9 anos. Em janeiro de 1911, aos 29 anos de idade, decidiu afastar-se da vida mundana para assumir a rigorosa vida monástica no Convento de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, onde viveu por 48 anos, até a sua morte, em 1959.

Madre Maria José de Jesus falava sete idiomas, entre eles o latim. Traduziu para o português as obras completas de Santa Teresa d'Ávila e a Imitação de Cristo de Tomás de Kempis. Foi priora do Carmelo de Santa Teresa por 27 anos, espaçados em 9 triênios, época em que liderou um importante processo de renovação dos costumes monásticos e fundação de novos conventos. Atualmente é considerada Serva de Deus pela Igreja Católica em vista dos trâmites que buscam sua beatificação.

A opção religiosa promoveu um sensível desgosto e desaprovação no pai, de formação racionalista e agnóstico, como ele mesmo confidenciou ao amigo Mário de Alenear, em carta datada de 18 de janeiro de 1911:

Acho porém o caso dela pior que a morte: a morte é fatal; chega a hora inadiável; em resoluções como a de agora há sempre a crença, certamente errônea, de que o desenlace podia ser outro, e é isto que dói. Só agora vejo como a queria. Passo os dias sem sair, pensando nela, joguete dos sentimentos mais contraditórios, desde a indignação até as lágrimas. Só com os filhos, à hora do jantar, converso sobre ela. O receio de que qualquer estranho se possa referir ao assunto dá-me arrepios... Mas basta de Honorina. Peço-lhe que nunca mais se refira a e te assunto, se eu em primeiro lugar não o abordar.

A correspondência constituía-se no único meio possível para uma comunicação entre pai e filha, pois Capistrano, contrário ao ingresso de Honorina na vida religiosa, mostrava-se irredutível em não mais retornar ao Convento de Santa Teresa. Nas cartas enviadas ao pai, Madre Maria José buscava confortá-lo pela dor sofrida com a separação imposta pelo claustro, assegurando-lhe ter alcançado a felicidade pessoal, como nesta carta de 10 de janeiro de 1925:

Ah, meu pai, o amor paterno é essencialmente desinteressado, por isso não lamente a dor que lhe causei, porque foi a minha felicidade neste mundo e espero que também no outro. Seu sacrifício foi bem recompensado ... Creia, meu bom pai, que me sinto tão feliz na vida religiosa que constantemente estou dizendo comigo mesma: se eu, em vez de ser uma, fosse mil, não deixaria um só dos meus eus no mundo, consagraria todos a Deus; e o mesmo digo se fosse milhões e milhões, quer de mulheres, quer de homens, e ainda que tivesse segura a salvação eterna, fosse qual fosse o estado que abraçasse. Veja, meu querido pai, que sua filha está contente, e fique também contente, pois a felicidade dos filhos é a felicidade dos pais.

Mas é a conversão do pai à fé católica que vai mover Honorina em orações, devoções e pedidos diretos feitos ao pai, por meio de cartas sucessivas e recorrentes ao tema em 1913, 1914, 1917, 1919, 1923, 1924, 1925 (foram 4 cartas abordando o assunto), 1926 e 1927 (mais duas cartas).

Meu Pai tenho duas coisas a pedir-lhe, ambas espirituais. A primeira é que se aliste na Confraria de Nossa Senhora das Vitórias, que há no Colégio dos Jesuítas. O Pe. Semadini disse-me que eu o convidasse. As obrigações são só dar o nome e rezar uma Ave-Maria todos os dias. Ora, eu tenho confiança que por essa Ave-Maria, V. se venha a converter, como a tantos outros tem acontecido (11 de agosto de 2013)

Não há [nada] como a devoção a Nossa Senhora. Eu, enquanto não amei a esta boa mãe, vivi uma vida péssima, e, se não perdi minha alma, foi porque Nosso Senhor, em sua misericórdia, me conservou a vida; logo que a ela recorro, tudo o que me parecia impossível se me tornou fácil e suave, e eu não só pude viver como boa cristã, mas logo aspirei à perfeição da vida religiosa. Desde então sempre tenho amado a minha Mãe do Céu o mais possível. A Ela recorro em tudo, e Ela me tem valido sempre. Experimente, meu querido Pai, e verá como Maria se mostrará Mãe de Deus pela sua onipotência, e Mãe nossa pelo seu amor.

Eu conheci alguma coisa do que o mundo em sua inexperiência da verdadeira felicidade chama prazer, goro, alegria, e louvo infinitos milhões de vezes a Misericórdia Divina que em sua predileção gratuita para comigo não me deixou conhecer mais; entretanto, eu digo, mil vezes mais feliz fui chorando meus pecados com tanta dor, que o coração quase se me partia, do que nos concertos, nos teatros, nos passeios, nessas diversas vaidades que enleiam o espírito mas não lhe dão verdadeira felicidade [...] Quantas vezes me tem acontecido dormir apenas poucas horas durante a noite e de madrugada, quando o corpo mais precisado estava de descanso, ser despertada pela matraca e pular da cama logo com grande alegria, feliz de começar o dia com sacrifício. Como é feliz nossa vida toda de sacrifício, de silêncio, de oração! Não me canso de louvar a Deus que tão misericordiosamente me escolheu para tanto bem, e peço à Sua Divina Majestade que algum dia toda a minha família partilhe a mesma felicidade de conhecer, amar e servir a Deus (23 de outubro de 1917)

Não fique aborrecido comigo e permita que lhe peça, meu bom Pai, que ao menos reze todos os dias, de manhã e de noite, uma Ave-Maria encomendando a Nossa Senhora a hora de sua morte (24 de fevereiro de 1925).

Capistrano de Abreu morreu em 13 de agosto de 1927, no Rio de Janeiro, sem ter-se convertido à fé católica, a despeito de todos os esforços e sacrifícios de Honorina em favor de sua conversão. Tamanhas divergências com o pai, deixaram Madre Maria José profundamente pesarosa, mas nem assim a religiosa arrefeceu em sua esperança. No mesmo dia em que o pai faleceu, Madre Maria José escreveu à sua irmã Matilde, indicando os fundamentos de seu consolo: 

Agora, vamos rezar muito por nosso Paizinho, não é, Matilde, na certeza de que Nosso Senhor não deixou de atender a tantos sacrifícios feitos por ele durante tantos anos e principalmente nestes últimos dias (13 de agosto de 1927). 

(com excertos do artigo 'Cartas do Claustro', de Virgínia Buarque, 2004)